Território Aduaneiro

Sanções comerciais em tempos de guerra: percepções sob o viés aduaneiro

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

22 de março de 2022, 9h26

Como se pode perceber, nossa coluna semanal tem buscado explorar e conjugar questões teóricas e jurídicas[1] com as práticas e contextos fáticos atuais do comércio exterior[2]. Seguindo essa lógica, nada mais justo do que tentar trazer algumas ponderações sobre as implicações da atual guerra entre Rússia e Ucrânia ao comércio internacional.

Spacca
Muitos veículos e artigos especializados já apontaram os efeitos que a guerra vem trazendo e ainda trará ao comércio mundial, com escassez de matérias-primas estratégicas e aumento significativo de preços, como é o caso dos combustíveis e fertilizantes. Outros, por sua vez, já se ocuparam em indicar quais seriam os possíveis ganhos a curto e médio prazo para o Brasil, em termos de acesso a mercados, bem como os riscos à indústria nacional e aos exportadores, caso o conflito se estenda por tempo indeterminado[3].

O que nos parece relevante neste momento é explorar o universo de regras e procedimentos aduaneiros que circundam as sanções comerciais[4] impostas sob justificativa de segurança internacional, seja do ponto de vista internacional, com foco na viabilidade de tais medidas diante das regras multilaterais de comércio — principalmente da OMC, que prezam pela não-discriminação e exclusão de barreiras às importações e às exportações —, seja do ponto de vista aduaneiro (operacional), cujo foco reside nas decisões e movimentos políticos nacionais. 

De início cabe esclarecer que, conceitualmente, o termo sanção internacional refere-se a medida imposta por um governo soberano a outra pessoa jurídica pertencente à sociedade internacional, seja ele governo ou organização. Todavia, no linguajar cotidiano, outros tipos de medidas que possuam finalidade e efeitos semelhantes, ainda que aplicados por autoridades administrativas nacionais e dentro de espaços meramente regulatórios, também acabam sendo englobadas pela expressão. Como se verá adiante, ambas as situações serão endereçadas no presente artigo.

Quanto ao primeiro ponto, relativo à possibilidade de coexistência legal entre sanções comerciais e as regras multilaterais da OMC, cabe destacar que tanto Rússia, quanto Ucrânia, afirmam haver violação das regras multilaterais de comércio por parte do vizinho, uma vez que a guerra trouxe uma série de barreiras e sanções para ambos os lados.

Enquanto os posicionamentos do lado russo ainda se concentram no contexto político-diplomático, a Ucrânia já se manifestou formalmente à OMC por meio de carta enviada por sua missão permanente em Genebra ao Conselho Geral, em 02 de março de 2022. Segundo consta no documento, a Ucrânia não só defende que as violações sofridas caracterizam o direito de uso da exceção contida no artigo XXI do Gatt, que trata das exceções ao livre comércio e a não discriminação diante de situações que ameacem a segurança nacional, como convoca os demais membros da Organização a assumirem posturas similares no sentido de impor sanções comerciais à Rússia, além de votarem por sua suspensão da OMC por violação de seu propósito e princípios basilares.

Em uma análise preliminar, o artigo XXI do Gatt — e seus correspondentes artigos XIVbis e 73 do Gats e do Trips, respectivamente — foi concebido para endereçar questões de segurança e, ao mesmo tempo, limitar as possíveis exceções às regras multilaterais gerais, de forma a garantir a proteção e a manutenção das indústrias e do comércio diante de qualquer circunstância.

O fato é que o texto do Artigo XXI do Gatt sempre foi visto como ambíguo[5], o que, aliado a ausência de jurisprudência substancial do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), faz desta norma uma grande zona cinzenta, sem conceitos e limites claros sobre as situações e medidas que legitimariam o uso da exceção sem que isso representasse violação ao direito da OMC.

Curiosamente, a única disputa enfrentada pelo OSC cuja decisão traz luz a algumas das discussões sobre o artigo XXI se refere justamente ao caso Russia — Measures Concerning Traffic in Transit (DS512)[6], em que a Ucrânia contestava medidas restritivas impostas pela Rússia como consequência do conflito pela Crimeia, de 2014. O resultado, entretanto, foi favorável à Rússia, uma vez que o painel entendeu que existiria uma situação de emergência nas relações internacionais reconhecida por ambas as partes e que as medidas impostas pela Rússia teriam sido aplicadas dentro uma plausibilidade mínima e visavam, de fato, proteger interesses relacionados a segurança nacional do país.

Assim, em análise preliminar e considerando os elementos de convicção trazidos pelo painel como fundamentação de sua decisão naquele caso, em especial a questão de que as medidas devem ser consideradas plausíveis; devem se referir a situações concretas de guerra ou grave tensão nas relações internacionais, ou seja, não serem percepções unilaterais e "auto-declaradas", mas reconhecidas em um contexto maior; e que devem ser consideradas necessárias à proteção de interesses essenciais à segurança nacional do membro, parece-nos que as medidas impostas pela Ucrânia neste momento, bem como aquelas aplicadas por países aliados, não violariam diretamente o Gatt.

Por outro lado, o pedido de suspensão, ou exclusão da Rússia da OMC, é questão de maior controvérsia, seja pelo fato de que não existe norma objetiva para tanto, seja pelo fato de que, de maneira geral, o requerimento pauta-se muito mais em questões de segurança e direitos humanos do que na violação de regras comerciais propriamente ditas. Assim, é improvável que esse tipo de medida possa ser considerada, ou mesmo votada, sem que uma reforma normativa seja realizada — situação que, como bem se sabe, é praticamente inviável diante do momento delicado que a OMC enfrenta.

Quanto ao segundo ponto, referente à perspectiva operacional/aduaneira no contexto nacional, ainda que no contexto brasileiro — pautado em uma política externa multilateral e pacífica e em uma política comercial de incentivo às exportações de forma geral — não seja comum falar em aplicação de sanções comerciais por razões de segurança, deve-se pontuar que existe um instituto de direito aduaneiro que trata desse tipo de medida, chamado comumente de "controle de exportação".

O controle de exportação pode ser entendido como um conjunto de regras e procedimentos específicos, adotados por determinado país com o objetivo de restringir e regular as operações de exportação de certos produtos para destinos específicos, sujeitando os exportadores a tais limitações, restrições, licenças específicas e até penalidades em caso de descumprimento.

Ainda que o controle de exportação como forma de impor e controlar sanções comerciais a terceiros países seja prática mais comum nos Estados Unidos e na União Europeia — o que pode ser, inclusive, observado atualmente nas medidas já impostas contra a Rússia —, o Brasil também faz uso desse tipo de medida, ainda que de forma bastante pontual.[7]

Como exemplos de controle de exportação em razão de questões de segurança internacional pelo Brasil, pode-se citar a internalização e aplicação das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU), disciplinado pela Lei nº 13.810/2019 e regulado pelo Decreto nº 9.825/2019.

A partir destas normas, o Brasil regulamentou o procedimento de internalização, via decreto presidencial das resoluções sobre sanções da ONU, permitindo controle e restrição de uma série de atividades de pessoas físicas e jurídicas, seja em termos de comércio exterior de bens, seja para trânsito e outras atividades envolvendo serviços e fluxos de capital. Com efeito, um grande número de órgãos anuentes do comércio exterior acaba participando do processo, a depender das restrições impostas e de sua natureza. Atualmente, encontram-se em vigor um pequeno número de sanções, como é o caso da Líbia e da Somália — cujas medidas iniciais foram impostas em 2011 e 2002, respectivamente, e vêm sendo renovadas desde então.

Por outro lado, tem-se também no Brasil um procedimento mais difuso para controle de exportações, que não depende da declaração expressa de sanções internacionais, e que versa, basicamente, sobre produtos de defesa (Prode)[8] e bens sensíveis[9].

Apesar do Simulador de Tratamento Administrativo do Portal Único de Comércio Exterior não indicar a existência deste tipo de controle e licença pré-exportação, todos os produtos listados pelo Ministério da Defesa como Prode e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) como bens sensíveis devem, necessariamente, passar por um controle de exportação prévio, que antecede o pedido de Licenças, Permissões, Certificados e Outros Documentos (LPCO) e, portanto, do início do despacho de exportação.

O controle de exportação nestes casos se inicia por canais paralelos, fora do Portal Único, e consiste em solicitar ao Ministério das Relações Exteriores (MRE) autorização para “negociações preliminares” (NegPrel)[10]. A partir do pedido efetuado, cabe ao Itamaraty analisar os produtos a serem potencialmente vendidos ao exterior, seu destinatário, finalidade e país de destino, com vistas a verificar potenciais implicações políticas, jurídicas e de segurança.

Em uma segunda etapa, posterior à autorização concedida pelo MRE para que a venda internacional seja concluída, tem-se a operacionalização da exportação, iniciada com o pedido de LPCO, em que os órgãos anuentes supra mencionados farão análise específica dentro de sua competência, podendo, mais uma vez, vetar a exportação caso a operação não esteja devidamente documentada, ou haja qualquer indício de violação de obrigações internacionais contidas em tratados que versem sobre armas, terrorismo ou outro tipo de ameaça à paz e à segurança internacionais.

Diante desse complexo e pouco conhecido procedimento, verifica-se que o Brasil possui em sua legislação aduaneira mecanismos diretos e indiretos para aplicar "sanções" ou "medidas" comerciais silenciosas e com pouco impacto político, exercendo de forma casuística seu controle de exportação. Assim, ao descortinar essa realidade, resta o questionamento: o Brasil, atualmente, apesar da postura contida no cenário político internacional, já aplicou ou vem aplicando alguma restrição à exportação contra Rússia e/ou Ucrânia?

[1] Vale citar os artigos sobre a discussão entre as interseções entre Direito Aduaneiro e Direito Tributário sob diferentes perspectivas, publicados colegas Liziane Angelotti Meira e Fernando Pieri.  

[2] A exemplo dos últimos artigos de minha autoria para a coluna,  sobre o fim do ATA Carnet no Brasil e a Acessão do Brasil à OCDE; além dos artigos sobre as Previsões sobre o Cenário Aduaneiro de 2022  e as implicações da BR do Mar, publicados pelos colegas Rosaldo Trevisan e Leonardo Branco, respectivamente.

[3] A este respeito, o Secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Lucas Ferraz, se posicionou em entrevista publicada pelo Jornal Valor Econômico no dia 14/03/2022 enfatizando que “no curto prazo, caso haja aumento das barreiras tarifárias para importações de commodities minerais e metálicas, além de cerais, provenientes da Rússia, é mesmo possível que que as exportações brasileiras possam ser impulsionadas […]. Contudo, no longo prazo, a escalada da guerra e seu prolongamento certamente afetarão negativamente as taxas de crescimento da economia global, comprometendo quaisquer ganhos setoriais de curto e médio prazos que venham a acontecer”.

[4] As sanções internacionais (unilaterais ou multilaterais) são ações usadas como forma de expressar desaprovação e punir de maneira não militar governos ou organizações estrangeiras a fim de atingir um objetivo político ou comercial. Assim, as sanções são impostas para pressionar determinado país a mudar sua postura em relação a alguma ação vista por outros como problemática. Existem vários tipos de sanções possíveis: diplomáticas, desportivas, econômicas e comerciais. No caso das comerciais, relevantes ao presente artigo, estas se apresentam como uma forma de pressão econômica, mas não representam um bloqueio geral às relações comerciais entre nações, e sim limitações ou barreiras ao comércio de determinados bens e serviços na forma de aumento de tarifas, limitação de volume de exportação e importação ou imposição de obstáculos administrativos às trocas comerciais com determinado destino/origem.

[5] LINDSAY, Peter. The Ambiguity of GATT Article XXI: Subtle Success or Rampant Failure? Duke Law Journal, vol. 52, n. 6, pp. 1277-1313, 2003.

[6] WTO. Russia – Measures Concerning Traffic in Transit (DS512). Disponível em <https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds512_e.htm>. Acesso 18 mar 2022.

[7] Para mais detalhes sobre a atuação no Brasil neste tema, recomenda-se a seguinte obra: WATSON, Andréa. O Brasil e as Restrições às Exportações. FUNAG: Brasília, 2016. Disponível em <http://funag.gov.br/loja/download/1171-O-Brasil-e-as-restricoes-as-exportacoes_FINAL.pdf>. Acesso 17 mar 2022.

[8] Segundo a Política Nacional de Exportação e Importação de Produtos de Defesa, estabelecida pelo Decreto 9.607/2018, são considerados produtos de defesa (Prode) os “bens, serviços, obras ou informações, inclusive armamentos, munições, meios de transporte e de comunicações, fardamentos e materiais de uso individual e coletivo utilizados nas atividades finalísticas de defesa, com exceção daqueles de uso administrativo.

[9] Os chamados bens sensíveis são “materiais, equipamentos e suas tecnologias passíveis de utilização em programas de desenvolvimento e fabricação de armas de destruição em massa, bem como seus vetores”, ou, de forma mais objetiva, são “bens de uso duplo [potencial civil e bélicas] e os bens de uso na área nuclear, química e biológica”, conforme dispõe a Lei n. 9.112/95.

[10] Como não existe regulamentação do processo de autorização para negociações preliminares pelo MRE, as informações disponíveis são aquelas contidas no Decreto 9.607/2018 (PRODE) e nas Resoluções MCTI n. 28/2020 e CIBES n. 36/2021 (bens sensíveis), além de instruções fornecidas pelo departamento competente, o DIPROD/MRE, mediante provocação.

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!