Opinião

Necessidade de avaliação atuarial para defesa dos aposentados e pensionistas

Autor

  • Rosana Cólen Moreno

    é procuradora do Estado de Alagoas membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (Clate) especialista em Regimes Próprios de Previdência pela Damásio Educacional coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso-Unesco) e denominada "Desigualdades Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe" educadora professora instrutora palestrante consultora e participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires (UBA).

22 de março de 2022, 7h02

Nos anos em que há pleito eleitoral, é comum nos depararmos com projetos de leis com propostas de reajuste salarial, inclusive sob o manto de reestruturação de carreiras. Contudo, nem sempre a questão que envolve os gastos públicos é devidamente observada. Harrison Leite [Manual de Direito Financeiro. 10ª ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 553] observa que "dentre as despesas, despontam-se as relativas a pessoal, que têm forte caráter eleitoral, dada a tendência dos administradores públicos para admissões políticas sem qualquer conteúdo público. Não raras vezes, infla a máquina pública, sem se ater à necessidade da boa prestação do serviço público".

Ocorre que a maioria das proposições legislativas acabam tendo reflexos nos benefícios previdenciários concedidos com o instituto da paridade.  Nesta senda, com o aumento nos subsídios/vencimentos refletindo diretamente nos proventos e nas pensões com paridade, surge a questão da suportabilidade dos fundos previdenciários.

No entanto, a matéria é relegada pelos governantes que no afã de conceder os aumentos, não se direcionam para a problemática do aumento vegetativo referente ao déficit dos fundos previdenciários públicos dos servidores públicos. Tal descaso faz com que reforma após reforma previdenciária a culpa para a majoração das alíquotas das contribuições (como recentemente ocorreu com a edição da EC nº 103/2019) sempre seja jogada nas costas do servidor público, que além de suportar o peso do déficit, é taxado como o único culpado por este.  

Dentro do universo considerável de proventos e pensões com paridade, o Supremo Tribunal Federal acabou estendo para as pensões concedidas com fundamento no artigo 3º, da EC 47/05 (RE 603580) e aposentadorias antes da edição da CF/88, o que antes da decisão causava certa polêmica (RE 1212388 AgR). Todavia, ressalta o STF que a circunstância de o benefício previdenciário ter sido concedido após a publicação da Emenda Constitucional nº 41/2003 não é, por si só, fundamento suficiente para se concluir pela paridade (Rcl 30153 AgR). É que deve ser analisada a incidência factual da paridade (como por exemplo, as regras gerais de aposentadoria da EC 41 não dão direito à paridade).

O artigo 169 da Constituição traz uma série de implicâncias e obrigações a serem observadas pelos entes federativos no que diz respeito à despesa com pessoal ativo, inativo e pensionistas, sendo que qualquer alteração na política remuneratória que gere aumento de despesa de pessoal deve guardar previsão tanto a Lei de Diretrizes Orçamentárias  LDO, como a Lei Orçamentária Anual  LOA. Como largamente cediço, a Lei Complementar referida no dispositivo é a Lei de Responsabilidade Fiscal  LRF, Lei Complementar nº 101/2000, que ingressou no mundo jurídico para orientar gestão responsável. Para o STF, instituiu um inovador modelo regulatório das finanças   públicas, baseado em medidas gerais de transparência, de   programação   orçamentária, de controle e de acompanhamento da execução de  despesas e de avaliação de resultados, destinadas, entre outros pontos, a  incrementar a prudência na gestão fiscal e a sincronizar as decisões   tomadas pelos Estados e pelos municípios com os objetivos macroeconômicos estabelecidos nacionalmente pela União (ADI 6.357).

Ressalte-se que o STF por ocasião do julgamento da ADI 6.129 MC, firmou o entendimento de que a exclusão das despesas com proventos e pensões do limite de despesa com pessoal seria inconstitucional.

Noutra senda, para não serem incluídas nos limites estabelecidos pelo artigo 19 da LRF, as parcelas das despesas com inativos e pensionistas devem ser custeadas: 1) pela arrecadação de contribuição dos segurados; 2) da compensação financeira; 3) de transferências destinadas a promover o equilíbrio financeiro-atuarial do Regime Próprio de Previdência Social  RPPS referente.

Sobre a primeira exceção temos as contribuições sociais cobradas dos servidores públicos não são suficientes para cobrir o déficit financeiro que é pago diretamente pelo Tesouro sob a forma de insuficiências financeiras. A afirmação vale para todos os estados e alguns municípios (alguns municípios apresentam superávit, aqueles recentemente criados).

A segunda exceção trabalha sobre a hipótese da compensação financeira prevista no artigo 201, §9º da CF/88. Contudo, a compensação financeira também não cobre as insuficiências financeiras, inclusive porque somente é feita da União para o ente federativo. Estados com estados, municípios com municípios ou estados com municípios não têm (ainda) compensação financeira entre si (Lei 9.796/99).

Por fim, a terceira exceção diz respeito às transferências voluntárias a serem operacionalizadas pelo órgão do Ministério do Trabalho e Previdência  MTP, que é a Secretaria de Previdência. Neste sentido, vide a Nota Técnica nº 48/2021 exarada pela Câmara dos Deputados e intitulada Regularidade Previdenciária nas  Transferências Voluntárias.

Por sua vez, a condição de regularidade previdenciária vem expressa no artigo167, X, XII e XIII, da CF/88  e o artigo 167-A da CF/88 (EC 109/21), trouxe uma série de implicações e sanções quando o limite máximo de gastos com pessoal é desrespeitado.

Sobre a indicação da fonte de custeio, temos que uma coisa é reajustamento (que acompanha índice inflacionário) e aumento de subsídio/vencimentos que é política salarial. No primeiro caso, não restam dúvidas de que, por se tratar de expressa previsão constitucional (RE 220613), não há que se falar em fonte de custeio (artigo 24, §1º, III da LRF). Sobre a majoração de subsídio/vencimentos (artigo 195, §5º da CF/88) o STF entendeu que, quando há expressa previsão constitucional (no caso paridade), não há necessidade da apresentação da respectiva fonte de custeio (AI 795.765-AgR e RE 220.742).

E sobre a obrigatoriedade de avaliação atuarial acompanhar os projetos de leis seria uma obrigação ou mera prudência?

Sabemos que é praxe no Brasil que os projetos de lei que disponham sobre aumento dos subsídios/vencimentos de servidores não venham acompanhados de relatório atuarial, nem que a unidade gestora do regime próprio de previdência (que em tese é detentora dos dados, estatísticas, provisões matemáticas, etc.)  seja ouvida para que possa se manifestar acerca da possibilidade veiculada. Desta forma, a solvência (leia-se sobrevivência) dos fundos não é considerada, o que vem a gerar aumento no déficit sem a correspondente contrapartida (fonte de receita).

Tal atitude política não leva em consideração o caput do artigo 40 da CF/88 com suas diretrizes previdenciárias nem tampouco as disposições contidas na Lei 9.717/98, com status de lei complementar por força do artigo 9º da EC 103/19. Nos termos do §1º do dispositivo, o equilíbrio financeiro e atuarial deve ser comprovado. E essa comprovação se faz por intermédio de avaliação atuarial. Esse é o ponto chave.

A avaliação atuarial é responsável pela demonstração das necessidades de custeio do plano previdenciário. É pela avaliação atuarial que conhecemos as responsabilidades e compromissos presentes e futuros do plano de benefícios, que diz respeito exponencialmente à cobertura dos eventos, ou seja, à solvência dos planos.

Sobre a necessidade da apresentação da avaliação atuarial no incremento de receitas (como aumento de alíquotas) o STF decidiu pela desnecessidade (ARE 875.958, com repercussão geral e SL 1339.

Contudo, a tese fixada pelo STF diz respeito à problemática inversa da aqui invocada, que diz respeito ao incremento de despesa, ou seja, sobre o crescimento das insuficiências financeiras face ao aumento de subsídios/vencimentos que reflitam nos proventos e nas pensões.

No Brasil, acostumou-se a pensar que como o Tesouro é responsável pela cobertura das insuficiências financeiras — daquilo que o plano de benefícios não pode honrar. Esse pensamento gira em torno do Tesouro como provedor dos recursos previdenciários e vem povoando a mente dos servidores públicos desde sempre, sob o cobertor do Estado do Bem-Estar Social. Para mudar paradigmas medidas legislativas foram propostas, Lei Complementar 178/21, que promoveu profundas mudanças na LRF.

O Estado-provedor (Welfare State) há muito cedeu espaço para o Estado-mínimo. Neste, a questão previdenciária assumiu outra faceta. No entanto, em numa ou outra leitura, a demanda previdenciária deve ser tratada com responsabilidade, sem condutas temerárias. Não há espaço para impor sempre ao Tesouro a obrigatoriedade de seguir adotando a máxima de que o Estado deve sempre arcar com insuficiências financeiras que crescem em sentido vegetativo e que minimiza e por vezes inviabiliza políticas públicas.

Não se trata de adesão a um ou outro sistema protetivo (Estado-provedor ou Estado-mínimo), mas sim de análise da situação real e atual que envolve as políticas previdenciárias. A questão não é tão simples como culturalmente fora enraizada no pensamento da gestão pública. Por conta dessas condutas que não prezam para o desafogamento dos recursos do Tesouro, é que são promovidas sistematicamente reformas a serem suportadas pelos servidores públicos, bem como outras medidas severas.

A falta de planejamento na gestão pública, inclusive no que se refere à solvabilidade dos fundos previdenciários, espelha outra questão crucial: o aumento das desigualdades socais. A acentuação do endividamento dos fundos previdenciários é endividamento que alcança a todos.

O aumento de subsídios/vencimentos sem avaliação atuarial (o que nos afigura como imprescindível no caso de majoração indireta de proventos e pensões) pode significar, por exemplo, instituição de contribuições extraordinárias (artigo 149, §§ 1º, 1º-A, 1º-B e 1º-C, da CF/88). Ou modificação na base de cálculo, como ocorreu no estado de Alagoas que através da Lei Complementar Estadual nº 52/19, instituiu alíquota de 14% a incidir sobre a parcela dos proventos e pensões que fossem superiores a um salário mínimo. No entanto, os aposentados se insurgiram com a medida, fato que ocasionou a melhoria da incidência conforme os ditames da Lei Complementar Estadual nº 54/21, passando a incidir  sobre  a  parcela  dos  proventos  ou  pensão  que  superem  o limite  máximo  estabelecido  para  os  benefícios  do  Regime  Geral de  Previdência  Social  de  que  trata  o  art.  201  da  Constituição Federal

O exemplo nos dado por Alagoas afigura-se bem instigante, posto que, acaso venha ocorrer reestruturação nas carreiras de servidores públicos com reflexo nos aposentados e pensionistas, uma das medidas imediatas e concretas pode ser a volta das alíquotas incidentes sobre um salário mínimo.

Analisando os fatos e os dispositivos acima, temos que uma das consequências da não realização de avaliação atuarial séria nos PLs e que venha a comprometer a saúde financeira de fundos previdenciários pode ser a volta das alíquotas anteriormente aplicadas, além da instituição de alíquotas extraordinárias, como dito acima. Ou seja, a culpa pela má gestão sempre foi e continua sendo do servidor, seja na atividade ou na inatividade.

O que se tem é um total descaso com os fundos previdenciários públicos, uma vez que o inativo, como a própria terminologia já indica, perde sua força laborativa e passa a ser somente número no sistema de capital. O inativo é para os olhos do financista um estorvo, pois não passa de número, de dados, de déficit, de despesa, de engessamento nas contas públicas.

Não se pode desprezar que é tema de debate inserto no endividamento público e que exige tratamento responsável não apenas imediato aumento de insuficiências financeiras a serem suportadas pelo ente federativo, nos termos do §1º do artigo 2º da Lei nº 9.717/98.

Não é preciso qualquer esforço hercúleo para se chegar a singela digressão de que toda despesa exige uma receita para a realização daquela ser possível.

Todavia, o comando constitucional que diz sobre a revisão geral anual (artigo 40, §8º da CF/88) não é praticado pelos entes federativos e quando se está na iminência de novas eleições, os parlamentos quedam tumultuados com novas propostas de aumentos de subsídios/vencimentos com cunho transparentemente eleitoreiro.

No que toca ao descaso com os fundos previdenciários dos servidores públicos o que temos hoje é a esperança da previdência complementar vir a desafogar as contas públicas previdenciárias. Mas não se pode olvidar que a previdência complementar é diretamente relacionada aos maiores subsídios/vencimentos, que quanto maiores são, mais possibilidade de serem rentáveis. O servidor pequeno não é considerado no universo rentista, pois não apresenta rentabilidade (juros).

Sabemos que dantes eram concedidas aposentadorias com muitos privilégios, até mesmo alguns que não faziam parte da vida ativa do servidor público. No entanto, tal desiderato não pode servir de parâmetro para penalização dos nossos atuais aposentados. Aposentado não quer dizer apenas o servidor (trabalhador) que deixou de produzir. É a pessoa que por ter passado um período largo de sua vida produzindo foi agraciado com um benefício que lhe proporcione vida digna quando não se encontra mais em condições de produzir. O aposentado é a pessoa que tem de cuidar da saúde com maior intensidade, posto que cientificamente falando, a idade avançada é fator de degeneração física e mental.

Em conclusão temos que os projetos de lei com vistas ao aumento de subsídios/vencimentos devem vir acompanhados do respectivo relatório atuarial anual. Esse é um procedimento que deve ser adotado como mudança de paradigma, ou seja, para afastar a velha máxima de que o Estado é provedor das insuficiências financeiras e por assim ser a majoração nos projetos e nas pensões não devem ter maiores questionamentos.

Ora, se a Base Normativa da previdência pública dos servidores exige avaliação atuarial, a mesma deve ser conhecida e aplicada. Via transversa, o que se tem é aumento do déficit financeiro-atuarial sem qualquer contrapartida, sem quaisquer medidas direcionadas ao equacionamento desse déficit.

Assim, vamos caminhando sempre no sentido de ser a aposentadoria e a pensão benefícios mínimos (até chegarem à inexistência) quando pagos pelo Tesouro. A ideia dos direitos sociais (previdência pública) não pode ser confundida com direitos individuais (previdência privada e complementar à pública). São universos totalmente diferentes.

É forçoso e lamentável constatar que os aumentos de subsídios/vencimentos em tempos de eleições são festejados, mas no fundo guardam maldades a serem suportadas pelos próprios beneficiários, que são os servidores públicos, como aqui visto.

Autores

  • é procuradora do Estado de Alagoas, membro da Confederação Latino-americana de trabalhadores estatais (Clate), especialista em Regimes Próprios de Previdência pela Damásio Educacional, coordenadora da Comissão Internacional Avaliadora instituída pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso-Unesco) e denominada "Desigualdades, Exclusão e Crises de Sustentabilidade dos Sistemas Previdenciários da América Latina e Caribe", educadora, professora, instrutora, palestrante, consultora e participante do programa de doutorado em Direito Constitucional pela Universidad de Buenos Aires (UBA).

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