Pós-lavajatismo em debate

Fixação de competência do juiz tem de ser aprimorada, diz Simone Schreiber

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21 de março de 2022, 10h44

Violações ao princípio do juiz natural, denúncias midiáticas apresentadas em calhamaços de centenas de páginas e o uso "criativo" dos acordos de colaboração premiada. Essas foram algumas das distorções praticadas por agentes públicos durante a onda anticorrupção, segundo a desembargadora Simone Schreiber, que participou do evento "O combate ao crime além da 'lava jato'", transmitido pela TV Conjur.

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Fixação de competência e delações devem ser aprimoradas, diz Simone Schreiber

Relatora no Tribunal Regional Federal da 2ª Região dos processos da "lava jato" no Rio de Janeiro, a desembargadora lembrou que, durante a operação, uma abordagem "ampliativa" do conceito de conexão probatória contido na legislação processual permitiu a distribuição de processos para juízos mais favoráveis à força-tarefa.

"O Código do Processo Penal tem uma definição muito fluida de conexão probatória, o que acaba gerando uma grave violação do princípio do juiz natural. Cabe ao Judiciário impedir isso, naturalmente. Mas isso acontece muito, e talvez a questão do juiz de garantias nos ajude, porque a fixação da competência do juiz é feita na fase de investigação, e aí ali já se fixa a competência com prevenção", disse Schreiber.

Outra prática adotada em meio à onda punitivista foram os chamados megaprocessos — denúncias que reuniam centenas de páginas e que costumavam vir acompanhadas de campanhas midiáticas e propaganda institucional dos órgãos envolvidos. Na prática, contudo, inviabilizavam o trabalho do julgador.

A desembargadora falou ainda sobre os problemas relacionados à colaboração premiada, instituto que permite aplicação seletiva e que muitas vezes não traz provas que possam ser corroboradas. "As penas, os favores, os prêmios que estavam sendo negociados muitas vezes são excessivos, o que gerava um certo desvirtuamento", disse.

Transmitido no último dia 7, o debate foi mediado pelo advogado Pierpaolo Bottini e contou ainda com a participação do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes; do procurador-geral da República, Augusto Aras; e do advogado Walfrido Warde.

Leia abaixo a íntegra da fala de Simone Schreiber:

Simone Schreiber — Queria fazer algumas pequenas considerações sobre o nosso tema. Eu nesse momento tenho um processo sob minha relatoria da chamada operação "lava jato", então eu já tenho algumas impressões sobre esse método, esse modelo da "lava jato", que eu agreguei a outras impressões. Eu vou pontuar alguns problemas que eu identifico, apenas pra gente poder pensar em modelos alternativos. Primeiro eu queria ressaltar que todos falaram aqui disso, principalmente o doutor Walfrido, o Pier, sobre a questão dos controles não passarem necessariamente pelo Poder Judiciário. O Poder Judiciário age se os filtros, se os controles que não integram a estrutura do Poder Judiciário falham, então nós temos o Coaf, temos a Controladoria Geral da União, temos o Tribunal de Contas da União, nós devemos ter órgãos de controle fora do Poder Judiciário para que se identifiquem situações de corrupção e haja soluções para situações de corrupção. Eventualmente, quando esses controles falham é que efetivamente o Ministério Público deve agir, a Polícia Federal deve agir, a Polícia Civil deve agir para que sejam punidos, então apurador e punidos os crimes de corrupção. Então o Judiciário não está bem, não funciona tão bem, ele tem uma estrutura burocratizada, sabemos disso, e isso faz parte do devido processo legal, porque é interessante que toda a eficiência da operação "lava jato", toda a propalada eficiência da operação "lava jato" dispensa o processo. A eficiência, e aí há um artigo do então juiz Sergio Moro como presidente da Associação de Juízes Federais, que foi publicado em O Estado de São Paulo, não tenho aqui a referência porque eu estou com muita informação aqui, em que ele diz, o título do artigo era: "O problema é o processo". E é exatamente essa a premissa da operação "lava jato". Na verdade, a população identifica uma eficiência porque as pessoas estão presas, as pessoas estão expostas, as situações de corrupção estão expostas, mas isso tudo decorre das medidas cautelares iniciais, não decorre necessariamente de condenações porque os processos caminham devagar. E sobre isso, isso ocorre mais fortemente nesses processos da chamada operação "lava jato" porque eles são megaprocessos ou maxiprocessos, como a gente denomina hoje na doutrina. Vários autores escrevem sobre isso, o professor Diogo Malan, por exemplo, escreve sobre isso da dificuldade do gerenciamento e da condução desses maxiprocessos. Então isso é um modelo que causa muito impacto porque ele vem junto com uma campanha de publicidade, de mídia, de propaganda institucional das corporações envolvidas. Evidentemente, todos têm uma assessoria de comunicação e é um modelo que não é eficiente. Não é eficiente porque ele só funciona se ele prescinde do processo. Nesse sentido, tem alguns pontos que eu acho que nós temos que pensar, até porque nós temos um Código do Processo Penal aí no forno, o projeto de lei do novo Código do Processo Penal está no Congresso Nacional, 8.045, se não me engano, é o número. E eu estava dando uma olhada nesse projeto de lei quando eu estava pensando no que eu falaria hoje, e a gente tem questões ali que a gente pode melhorar. Então, ponto número um, parece que todos dizem isso e com razão. O ministro Gilmar Mendes hoje já falou sobre isso e ele identifica essa questão no Supremo Tribunal Federal, o problema da conexão, de eventuais ações estratégicas do Ministério Público para provocar uma distribuição dirigida para determinado juízo, e isso se identificou claramente na operação "lava jato". Há precedentes. Primeiro é relatado pelo ministro Dias Toffoli, vou me dispensar aqui de falar os números dos casos, agora o tempo ficou limitado aqui, pra gente ir mais rápido. Mas o Supremo, em determinado momento, começou a identificar uma questão relacionada com um tratamento muito ampliativo, digamos assim, da conexão probatória. Nós temos uma questão, o Código do Processo Penal tem uma definição muito fluida de conexão probatória, que é a questão da própria administração influir na prova de outro. O professor Gustavo Badaró tem um artigo muito bom na Revista Brasileira de Ciências Criminais sobre esse tema, em que ele mostra que esse conceito fluido demais de conexão probatória acaba gerando uma grave violação do princípio do juiz natural. Ele não estabelece parâmetros seguros para a fixação de competência, então eu tenho algumas questões da minha vivência diária, o Ministério Público adota estratégias para a distribuição de feitos e a Polícia Federal também, e quando eu falo que o Ministério Público adota estratégias eu quero dizer que não necessariamente eu estou aqui desqualificando a atuação do Ministério Público. Porque quando os advogados de defesa agem estrategicamente no processo, eles são desqualificados, mas todas as partes agem estrategicamente. Eu acho que o problema está em mitificar a ação do Ministério Público, porque ele é uma parte que age estrategicamente. Então essa pretensa imparcialidade do Ministério Público, que age sempre buscando a justiça de qualquer forma, uma sentença justa seja ela qual for, é um pouco uma mitificação. O Ministério Público age estrategicamente tentando fixar a competência e buscar o juiz competente. Cabe ao Judiciário impedir isso, naturalmente. Mas isso acontece muito, e talvez a questão do juiz de garantias nos ajude, porque a fixação da competência do juiz é feita na fase de investigação, e aí ali já se fixa a competência com prevenção. E com essas questões relacionada à super conexão, nós tivemos um problema, que foi uma exagerada personificação do juiz responsável pela operação, a proximidade indevida entre o juiz e as partes, e os órgãos de persecução. Então nós tivemos ali um problema e eu acredito que a mudança do Código do Processo Penal seja um momento importante e eu li o projeto de lei e ele está repetindo muitas, é impressionante como se faz um novo projeto de lei de um novo Código do Processo Penal e várias regras ali estão repetidas ali, inclusive essa questão da fixação da competência por conexão probatória. Eu acho que seria interessante neste momento nós pensarmos em mudanças nesse regramento legal da conexão. Por outro lado, e aqui eu até li em alguns lugares, ministro Gilmar, eu quero pontuar o seguinte: me parece que é muito importante que a questão da competência seja resolvida no início do processo. E eu estava olhando também nesse aspecto a questão do Código, a parte pode opor uma exceção de competência do juízo no início. Tem um prazo para isso, que é o prazo de resposta. Ou seja, no início a questão se põe. E hoje no Código do Processo Penal atual, a decisão do juiz que se afirma competente não é recorrível. Então a defesa evidentemente, para levar a discussão sobre competência para os tribunais de segundo Grau e tribunais superiores, tem que se valer do Habeas Corpus. E como o ministro Gilmar dizia no último precedente do Supremo que ele decidiu, ou da reclamação constitucional ou do habeas corpus, ela vai ter que se valer de outros instrumentos para discutir competência. Eu acredito que se nós tivéssemos um sistema em que se pusesse necessariamente a discussão sobre competência do juízo na fase inicial do processamento, estabelecendo prazos para a defesa discutir o tema, embora, claro, que a questão da competência absoluta é uma questão importante relacionada ao juiz natural e até a incompetência relativa, há autores que defendem efetivamente. Toda a questão da competência judicial no processo criminal está relacionada diretamente ao princípio do juiz natural, uma questão imprescindível, necessária, a gente em algum momento estabelecer qual é o juízo competente. Então acho que a gente está tendo agora uma questão importante que é discussão sobre competência do juízo, ou corrida tardiamente, porque em alguns processos já há até sentenças proferidas, nós vemos vários casos desse. E talvez seja bom a gente melhorar esse mecanismo pra gente poder estabelecer logo de início uma discussão sobre qual é afinal o juiz competente. Então, minhas questões: primeiro, juiz de garantias. Eu acho que vai contribuir muito para a melhoria desse sistema, no que nos compete ao Poder Judiciário. A questão da discussão sobre juízo competente tem que se fazer o quanto antes pra gente poder ter ali um funcionamento melhor do sistema, e o processo andando para a frente e não tendo atos anulados e etc. Outra questão que algumas pessoas aqui já falaram, alguns dos palestrantes que me antecederam, a questão da colaboração premiada, efetivamente, o Supremo Tribunal Federal tem uma jurisprudência muito permissiva quanto à colaboração premiada, tem o precedente do Supremo Tribunal Federal em que se estabeleceu que a colaboração premiada é um negócio entre partes, que a pessoa delatada não pode discutir os termos da colaboração e isso fez com que nós tivéssemos grande criatividade nos acordos de colaboração premiada. Eu acredito, que além do que o ministro Gilmar agora falou, sobre por que esses acordos de colaboração são inadequados, muitas vezes não trazem provas suficientes de corroboração, então eles não estão sendo suficientes até para lastrear condenações, nós temos visto isso também na Justiça. Na verdade, houve um excessivo uso e um uso muito criativo e sem uma limitação estabelecida pelo Poder Judiciário, pela própria legislação do uso da colaboração premiada. Então a colaboração premiada vem para ficar, ela estabelece uma mudança de paradigma no Processo Penal Brasileiro, ela deve ser utilizada, é um importante meio de apuração, repressão, de desbaratamento de organizações criminosas, nós já tivemos uma alteração da legislação agora em 2019, tivemos uma mudança de orientação do Supremo em um precedente também, relatado pelo ministro Gilmar, em que já se repensou essa questão de que ninguém pode discutir os termos da colaboração, a legalidade do acordo de colaboração. Que efetivamente o acordo de colaboração premiada interfere na esfera jurídica das pessoas delatadas. Então, da maneira como era dito antes, ninguém discutia, porque quem firmou o acordo de colaboração não tem interesse jurídico em discutir esse acordo. As penas que estavam sendo negociadas, os favores, os prêmios que estavam sendo negociados muitas vezes serão excessivos, o que gerava um certo desvirtuamento desse instituto da colaboração premiada. Então, eu concordo com o doutor Walfrido, com o ministro Gilmar e com o doutor Augusto Aras, é importante nós repensarmos ou avançarmos ainda em uma regulamentação desse instituto da colaboração premiada. Nós sabemos que já houve uma mudança aí no pacote anticrime, porque efetivamente isso causou uma certa… E é interessante porque a "lava jato" pretende, uma das virtudes da operação "lava jato" seria diminuir a seletividade da Justiça Penal. Quem é entusiasta da operação “lava jato” diz que a Justiça Penal não é mais seletiva porque atingiu pessoas de maior poder político e econômico. Contudo, esse modelo do acordo de colaboração premiada, esse modelo da Justiça Penal pautado em colaboração premiada é extremamente seletivo, porque ele dá uma discricionariedade, uma autonomia para o Ministério Público de decidir com quem colabora, com quem não colabora, quais são as penas que são aplicadas ou não aplicadas, enfim, prêmios e etc. Que não tem uma controlabilidade, não sei se agora na gestão do doutor Augusto Aras, eu também posso estar desinformada, se o Conselho Nacional do Ministério Público já estabeleceu mais parâmetros de atuação para os integrantes do Ministério Público que firmam esses acordos de colaboração. Só para terminar, que eu acho que também já falei muito, eu estava falando da questão desses megaprocessos… eu estou muito impressionada, porque eu acredito que o juízo que originariamente é relator da operação “lava jato” no Rio de Janeiro está muito inviabilizado, chega uma hora em que a estrutura da vara não responde, então os advogados têm vindo impetrar habeas corpus, mandados de segurança dizendo: "Olha, houve uma operação há três anos, as respostas não foram nem apreciadas ainda pelo juiz de primeiro grau, meu cliente está preso…" Atualmente eu acredito que as prisões já foram revogadas, mas… "está com tornozeleira eletrônica, estava impedido de viajar, seu patrimônio está constrito…" Só que a gente tem a questão dos prazos razoáveis, principalmente quando as pessoas estão sujeitas às medidas cautelares, pessoais e patrimoniais. Então, eu quero repetir, eu até tinha buscado um precedente do nosso tribunal sobre uma questão sobre gestão da prova, a prova está toda em poder do Ministério Público, tudo o que foi angariado de provas, os advogados não tem acesso às gravações, aos arquivos de mídia que contém informações bancárias importantes, porque isso está sendo gerenciado pelo Ministério Público. Não está na secretaria do juízo, então um juiz de primeiro grau disse assim: "olha, o Ministério Público tem que receber o advogado para disponibilizar essa prova". Eu pergunto, o que essa prova está fazendo, se o processo está instaurado e a ação penal está em curso, está ainda em poder do Ministério Público. Então nós temos questões gerenciais que são relacionadas com essa questão dos megaprocessos que acabam causando atraso. O que eu acho que deveria haver, e só para encerrar, eu disse em uma outra oportunidade: denúncias de setecentas páginas, como tem, denúncias de trezentas páginas, não são viáveis. Se um juiz cível recebe uma petição inicial de setecentas páginas em um processo cível, ele vai devolver para a parte, dar uma oportunidade para a parte fazer uma versão da petição inicial que seja viável, seja viável para processamento porque ninguém consegue analisar uma petição de setecentas páginas. Eu acho que o Ministério Público devia pensar um pouco nas suas estratégias, efetivamente, porque se não for uma eficiência que se resuma, que se restrinja às cautelares, que tem esse aspecto espetaculoso, como disseram aqui, espetacular, e que para a opinião pública aquilo ali resolveu, mas não é o caso. Então nós temos que ter algumas estratégias voltadas para o processo criminal que em um prazo razoável apure as responsabilidades, respeite os direitos de defesa, direito de prova, direito de duplo grau etc. E que chegue a um termo e um prazo razoável e que as pessoas tenham suas responsabilidades efetivamente apuradas e cumpram as suas penas… eu acho que é assim que a Justiça Penal vai funcionar melhor no chamado combate à corrupção. Evidentemente, nós não integramos essa força-tarefa de combate, mas o Judiciário tem uma função muito importante para viabilizar a punição de crimes de corrupção no país. Então, Pier, eu não sei se eu falei muito, estou disponível para prosseguir aqui no debate

Pierpaolo Bottini – Para encerrar, eu vou passar à minha querida desembargadora Simone, para as considerações finais, mas também fazer uma pergunta. E aí não é de ninguém que está acompanhando, não. Essa é minha mesmo, desembargadora Simone. Porque eu fiquei realmente muito impressionado pela menção a algo que nos incomoda muito no dia a dia e que depois foi classificado pelo doutor Augusto Aras como, até anotei aqui, um document dump, que é justamente a apresentação de denúncias com centenas de páginas e não como uma falta de cuidado, mas muitas vezes como uma estratégia de dificultar o direito de defesa. Porque muitas vezes a gente vê denúncias sobre um ponto específico, mas nas suas introduções tratam de como se formataria as organizações criminosas, são introduções que no fundo são recorta-e-colas que valem para todos os casos, no único intuito às vezes de impressionar aquele que vai julgar. Que, de repente, se depara com uma petição de trezentas ou quinhentas páginas, e muitas vezes se impressiona, acreditando que tudo aquilo são efetivamente narrativas sobre aquele caso, quando, na verdade, não são. Então eu queria só buscar esse gancho e esse ponto na fala da senhora e saber de que forma o Judiciário tem lidado com essa situação? Ou seja, há possibilidade, por exemplo, e aí falo de um juiz de primeiro grau, a senhora como desembargadora talvez até nesse ponto seja importante essa visão, que o juiz de primeiro grau rechaçar uma denúncia, rejeitar uma denúncia, ou pelo menos pedir ao Ministério Público ou à acusação, podemos falar de queixa-crime aqui também, que efetivamente apresente uma denúncia que possibilite o direito de defesa e não trate, não utilize essa estratégia que a gente sabe que é uma estratégia desigual nessa luta entre Estado e cidadão que é o processo penal. Eu queria realmente indagar de você enquanto desembargadora qual seria a medida concreta para que esse tipo de estratégia e como você mesmo disse, é natural que as partes tenham estratégias durante o processo de produção probatória e de qualificar o seu debate. Mas, quando a gente fala em Direito Penal, a gente está falando certamente do Estado contra um cidadão, então até que ponto essa estratégia oportuna para o representante do Estado é legítima e de que forma que ela poderia ser, pelo menos, prevenida e não repetida. Então, passo a palavra agradecendo, para que você também faça as suas considerações finais.

Simone Schreiber – Pier, então, eu acredito que os juízes, e aí eu não estou falando só de operação "lava jato" porque, como disse o ministro Gilmar e o doutor Augusto Aras também, esse é um modelo que se potencializou na operação "lava jato", mas já existia. Eu quando ingressei em uma vara criminal foi em 2007, se não me engano, e depois no tribunal. Porque eu sou juíza desde 93, estou fazendo um pouco de confusão, mas depois de doze anos em uma vara cível eu fui para uma vara criminal. Muito bem, eu queria dizer o seguinte: entrei na vara criminal, tinha uma juíza substituta e ela me disse assim: "amanhã vai ter uma operação", e eu não sabia o que era operação, nunca tinha ouvido falar nisso. Operação é um termo que está no Código do Processo Penal, e aí essa operação, que se chamou Operação Monte Éden, para mim foi um impacto enorme, porque efetivamente a denúncia era uma denúncia ininteligível, extremamente… A operação foi deflagrada quando eu entrei na vara, muitas pessoas foram presas e era uma denúncia impossível, e aquele processo eram fatos que se passavam lá em São Paulo, não estavam nem no Rio de Janeiro. Também tinha uma estratégia de fixação de competência no Rio de Janeiro, por uma suposta conexão com uma questão que era nos Campos de Goytacazes e aquela denúncia não viabiliza nada porque as pessoas tinham dificuldade de compreender o que estava escrito na denúncia. Eu acho que os juízes têm que ter, esse é um papel do juiz… É claro que o Ministério Público é o autor da ação penal e vai delimitar qual é o objeto da acusação para escrever a denúncia, mas o juiz vai controlar eventuais abusos na acusação ou a qualidade da denúncia. Se a gente fala de aptidão da denúncia ou inépcia da denúncia, e é papel do juiz tanto no processo civil, quanto no processo penal, eu sou criticada porque gosto de partir dessas comparações com o processo civil, porque embora conheça a compreensão dos professores de processo penal que nós não devemos permitir determinadas contaminações do processo civil no processo penal, eu acredito que os juízes cíveis são mais ponderados. Eles não têm talvez essa postura, a crítica muitas vezes em relação à atuação da parte autora, eu acho que o juiz tem que ter coragem de dizer: "Olha, essa petição inicial é inepta, essa denúncia é inepta. Então ela deve ser indeferida". E até tem uma discussão no processo penal se o juiz deve dar uma oportunidade de aditamento, porque no processo civil isso está previsto e no processo penal talvez o juiz fazendo isso estivesse se coadjuvando, digamos assim, a parte autora na questão da delimitação da acusação, talvez nem isso devesse fazer. Mas evidentemente que uma denúncia que é rejeitada porque é inepta não impede o oferecimento de uma nova denúncia, isso daí é um fato. Queria dizer o seguinte… bom, então essas denúncias são impossíveis assim, mas é um esforço que a gente faz porque ninguém aqui quer inviabilizar a apuração de crimes ou a responsabilização de pessoas. E como as denúncias que são geralmente recebidas no primeiro grau dificilmente são rejeitadas, acho que desde que eu entrei no tribunal eu vejo muito mais casos de restrição de denúncias, pois quando os juízes verificam que nos tribunais tem desembargadores que prestigiam a posição do juiz mais independente, e mais cuidadosa na análise dessas denúncias, eles passam já a ter, se sentirem um pouco mais à vontade e seguros para exercerem esse tipo de controle que eles devem efetivamente exercer. E, evidentemente, que a rejeição da denúncia é recorrível, o Ministério Público não está cerceado, pode levar a questão para o tribunal e o tribunal decidir se é o caso ou não de rejeitar a denúncia, mas o juiz deve ter esse papel mais efetivo, sim. Só para encerrar eu queria comentar a questão, claro que eu não quis dizer que o Habeas Corpus tem que ser restringido, de jeito nenhum. Eu sou super entusiasta do Habeas Corpus. Eu acho que a gente pode fazer o sistema funcionar melhor com um sistema de precedentes em que os juízes e os tribunais de segundo grau se sintam vinculados aos precedentes. Então o Superior Tribunal de Justiça tem súmulas sobre dosimetria de penas que são reiteradamente desrespeitadas pelos tribunais de segundo grau. Uma vez o ministro [Rogério] Schietti há pouco tempo fez uma fala muito forte e importante, assertiva, sobre o absurdo que é tribunais de segundo grau desrespeitarem orientações do Superior Tribunal de Justiça sobre dosimetria. Então acho que o sistema funcionaria muito melhor inclusive, e aí funcionando melhor, funciona também melhor para identificar e apurar e responsabilizar pessoas por corrupção, se houvesse um respeito aos precedentes, então com isso nós já teríamos um sistema mais uniforme e mais igual, mas isonômico. Porque uma vez fixadas as orientações pelo Supremo e pelo STJ, os tribunais de segundo grau e os juízes deveriam se adequar, então tem um excesso de autonomia, é isso o que a gente está falando do Ministério Público. Os juízes também deveriam se sentir vinculados, embora sejam independentes. Outra questão é a prerrogativa de foro, concordo com o ministro Gilmar, eu acho que a prerrogativa de foro, na verdade, os processos começam no primeiro grau, às vezes demoram mais para ser resolvidos do que os que estão diretamente nos Tribunais Superiores, então é uma prerrogativa mais ou menos, porque você tem uma restrição muito menor no direito de recorrer das decisões. Tem vantagens e desvantagens, mas é importante também a fixação desses parâmetros para que a gente possa trabalhar porque a gente às vezes não fica seguro se esse caso se adequa ou não se adequa ao que o Supremo determinou sobre parâmetros para decidir se as pessoas têm ou não tem prerrogativa de foro. Então, fundamental, repito, que questões de competência sejam bem definidas para que a gente possa trabalhar com segurança e consagrar ou fazer, ou concretizar melhor o princípio do juiz natural. E é isso, talvez tinha alguma outra coisa que eu queria dizer, da minha felicidade de participar desse debate com o doutor Augusto Aras e com o ministro Gilmar, e com você, Pier, e com o doutor Walfrido também. Eu acho que era isso, será que eu fiquei devendo alguma coisa ou falei tudo o que precisava? Vamos adiante com as nossas… Ah, e falar para o doutor Aras que esses casos estão acontecendo o seguinte, acho que como é uma coisa de muita quantidade, como o doutor Aras falou, essa questão dessa quantidade de megabytes de informações de coisas, que é o que caracteriza esses processos, por uma questão operacional eles estão no Ministério Público, mas eles não são sigilosos. É que o advogado para ter acesso, o juiz diz assim: "Ah, está lá com o Ministério Público" e aí começa uma dificuldade de comunicação, que eu acho que também se potencializou na pandemia de disponibilização dessas informações. Eu tenho tido reclamações de advogados em relação a isso, e por isso que eu falei "Eu não entendo por que essas coisas não estão nas Varas", porque são elementos de processos já instaurados, é isso.

Pierpaolo Bottini – Obrigado, desembargadora. Eu acho que sobre esse tema a gente sempre acha que falta alguma coisa, porque o número de questões é muito grande.

Clique aqui para ler a íntegra da participação do ministro Gilmar Mendes
Clique aqui para ler a íntegra da participação do procurador-geral da República, Augusto Aras
Clique aqui para ler a íntegra da participação do advogado Walfrido Warde

Veja abaixo ou clique aqui para assistir à íntegra do debate "O combate ao crime além da 'lava jato'":

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