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Demora na regulamentação de leis gera "purgatório jurídico" no Brasil

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21 de março de 2022, 7h29

Uma lei é aprovada e sancionada no Brasil. Ela representa um marco regulatório para determinado setor, ou seja, busca norteá-lo com novas disposições importantes. No entanto, muitas dessas inovações dependem de medidas regulatórias ou outros atos posteriores para ser plenamente aplicadas. Passam-se os anos, mas a regulamentação nunca é completamente finalizada. Este período de espera é como um "purgatório jurídico".

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Regulamentação de leis já publicadas no Brasil leva anos

O exemplo genérico acima demonstra a realidade de diversas normas brasileiras publicadas nos últimos anos. Desde o mais recente Marco Legal do Mercado de Câmbio até a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que já vem sendo aplicada em alguns aspectos, diversos marcos regulatórios nacionais ainda aguardam a regulamentação plena.

O advogado Brunno Morette, sócio do escritório Cascione Pulino Boulos Advogados na área de Societário, Fusões e Aquisições e Private Equity, indica que o purgatório jurídico acaba limitando o potencial das normas e "muitas vezes evitando ou retardando até o limite do possível a tomada de decisão com base nos novos dispositivos".

Leis na fila
A LGPD foi promulgada em agosto de 2018. A própria lei previa um período de transição (que foi alterado algumas vezes) para as empresas se adequarem às novas regras. As punições passaram a ser aplicadas apenas em agosto de 2021. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) também vem publicando resoluções relativas à lei.

Entretanto, muitos pontos previstos na LGPD ainda não foram regulamentados. Segundo Morette, ainda é necessário, por exemplo, um maior detalhamento sobre as formas de elaboração e manutenção do registro de operações de tratamento de dados pessoais, bem como o nível de proteção de países estrangeiros para fins de transferência internacional de dados.

O mesmo vale para as alterações na legislação societária introduzidas pela Lei 14.195/2021, como a dispensa de residência no Brasil para ser diretor de sociedade brasileira. E também para certos pontos do Marco Legal do Saneamento (apesar de a norma ter sido regulamentada em parte pelo Decreto 10.710/2021), tais como aspectos tarifários referentes aos subsídios para baixa renda e compartilhamento de ganhos entre empresas e usuários. Ainda, o novo Marco Legal das Ferrovias está pendente de regulamentação sobre o transporte desvinculado da exploração da infraestrutura por agente ferroviário, bem como questões relativas à desapropriação.

Alan Santos/PR
Leis sancionadas pelo presidente Jair Bolsonaro estão sem regulamentaçãoAlan Santos/PR

Outra "vítima" do purgatório jurídico é a Nova Lei de Licitações e Contratos. Estão sujeitos à regulamentação dispositivos que tratam do Portal Nacional das Contratações Públicas; das funções do agente de contratação, da comissão de contratação, da equipe de apoio e do fiscal de contrato; do leilão e das condições de seleção para a contratação de obras, bens e serviços; e do sistema de registro de preços.

Já no caso do novo Marco Legal do Câmbio, boa parte de sua aplicação depende da revisão ou edição de normas infralegais, relacionadas à compensação privada de créditos entre residentes e não residentes e à estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações no território nacional.

Processo natural
Apesar de utilizar a expressão, Morette não considera que o purgatório jurídico seja algo necessariamente negativo ou de cunho político: "É normal que haja um certo tempo entre a mudança ou a criação de uma lei até a interpretação consolidada dela. E algumas leis eventualmente necessitam de algum tipo de adequação, seja do mercado ou da administração, para poder fazer cumpri-la".

Ou seja, o fenômeno seria apenas parte do constante processo de desenvolvimento e amadurecimento da legislação, e não um problema a ser resolvido. "Teoricamente o próprio tempo vai resolver", acrescenta.

Tal visão se baseia na ideia de que essas leis buscam apenas abrir caminho para uma mudança no setor, e não trazer disposições específicas. Assim, a função dos marcos regulatórios seria apresentar princípios e direções, enquanto questões mais detalhadas ficariam reservadas à regulamentação. "Não se pode fazer algo muito fechado, mesmo porque a realidade vai sendo alterada e o Direito tende a acompanhá-la também", diz Brunno.

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Regulamentações podem ser de atribuição do Congresso ou de órgãos do ExecutivoCreative Commons

Dessa forma, haveria até mesmo um aspecto positivo na existência do purgatório jurídico. Por outro lado, o maior prejuízo seria a incerteza e falta de previsibilidade causadas. 

Morette apenas chama a atenção para o fato de que há momentos da história do país nos quais são promovidas mais reformas e atualizações da legislação, e assim o purgatório jurídico fica mais evidente. O momento atual seria um exemplo disso, o que se nota pelas leis mencionadas. Mas uma concentração semelhante de normas no purgatório também ocorreu no governo FHC, entre os anos 1990 e 2000.

Maiores prejuízos
Já o advogado Marco Aurélio Marrafon, doutor e mestre em Direito do Estado e professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), enxerga o purgatório jurídico como nocivo.

"O tempo do debate legislativo é muito importante, para que não saiam leis feitas às pressas. Mas, uma vez que a lei caminhar para sua plena vigência, ela tem de ganhar eficácia social, para entrar na vida das pessoas", afirma.

O purgatório demonstraria uma negligência do Parlamento e dos órgãos governamentais. Para Marco, "o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida". Ou seja, as determinações das leis deveriam ser aplicadas o mais rápido possível. Assim, a falta de concretização das leis devido à demora burocrática excessiva levaria à perda de legitimidade do poder estatal. 

Marrafon indica que o purgatório se estende também a questões da própria Constituição de 1988. Ele lembra que 425 dispositivos constitucionais exigem regulamentação direta, mas 155 ainda não foram regulamentados. Além disso, 64 deles sequer foram colocados em debate no Legislativo, mesmo após mais de 30 anos da promulgação da Constituição.

Rosinei Coutinho/SCO/STF
Quando regulamentação não acontece, Judiciário pode agirRosinei Coutinho/SCO/STF

Ainda segundo o professor, caso as falhas das instituições gerem prejuízos aos cidadãos, cabe ao Judiciário fazer interpretações que regulamentem as regras. Para ele, a via judicial não é a adequada, mas é a possível, e assim se torna válida.

Um exemplo disso foi o julgamento do Supremo Tribunal Federal, em 2007, sobre o direito de greve do servidor público, previsto pelo inciso VII do artigo 37 da Constituição. A corte consolidou a aplicação, por analogia, das regras válidas para a iniciativa privada, conforme a Lei de Greve.

Regulamentação excessiva
O professor Carlos Ari Sundfeld, um dos fundadores da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), prefere se referir ao fenômeno como um purgatório administrativo. Isso porque ocorre com leis que atribuem poderes à administração pública sobre a economia, as relações privadas ou seu próprio funcionamento.

A diferença fica clara no caso da LGPD. Parte do tema da norma é tratado por regras de Direito privado, e por isso certos pontos já vêm sendo aplicados. Porém, o legislador optou por também criar mecanismos de interferência da administração pública, que acabam exigindo regulamentação.

"Sempre existirá legislação. Pode-se fazer legislações mais complicadas ou mais simples. O Brasil as está fazendo cada vez mais complicadas", assinala o professor. Assim, é difícil garantir a eficiência do governo: "A legislação é tão complicada que não consegue ser implementada com um mínimo de facilidade ou prazo razoável".

Falta de regulamentação acontece até mesmo com dispositivos da Constituição

Na visão de Sundfeld, o movimento regulatório é um problema constante no Brasil. "Nós ainda não assentamos a ideia de que a administração pública não é capaz de fazer tudo", aponta.

Isso se perpetua também devido à falta de pesquisa para avaliar a eficácia e o resultado da regulamentação. Como aponta Sundfeld, o excesso de regulamentação pode até mesmo causar um efeito oposto e incentivar os cidadãos a descumprir as normas.

Já em outros países, isso vem sendo muito questionado, com incentivo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Mundial. Nos EUA, por exemplo, há uma mobilização para vetar interferências muito significativas da administração pública na aviação comercial.

De acordo com o professor, a solução para os problemas causados pelo purgatório passa por um movimento de desregulamentação administrativa. Ou seja, seria necessária uma simplificação jurídica: primeiro com uma desconstitucionalização, e depois com a deslegalização.

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