Tribunal do Júri

A soberania dos veredictos frente à possibilidade de revisão criminal no Júri

Autores

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Mayara Tachy

    é defensora pública do Distrito Federal titular do Tribunal do Júri mestranda em Direito pela UnB pós-graduada em Direito Público e professora de Processo Penal e Direito Penal.

19 de março de 2022, 13h25

Em mais uma oportunidade o Superior Tribunal de Justiça enfrenta o importante tema sobre a soberania dos veredictos. A questão, no entanto, envolve a análise sobre a decisão proferida pelo tribunal do júri após o seu trânsito em julgado e quando o órgão de segunda instância poderá ou não reformar a decisão do Conselho de Sentença para absolver o acusado sem que seja submetido a novo julgamento.

Spacca
Resta consolidada na doutrina e jurisprudência a possibilidade de ajuizamento da revisão criminal contra decisão condenatória proferida pelo tribunal do júri, não havendo qualquer afetação à soberania dos veredictos, até porque, na expressão de Hermínio Marques Porto, “a soberania dos veredictos tem seu sentido (…) e seus efeitos restritos ao processo enquanto relação jurídico-processual não decidida.”[1]

Ademais, a coisa julgada penal não pode ser obstáculo à rediscussão de condenações injustas e erros judiciários, face a dignidade da pessoa humana e a proteção constitucional que deve resguardar o direito de liberdade da pessoa inocente.

Nessa linha, a revisão criminal será admitida, para qualquer decisão condenatória transitada em julgado, quando “a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos (art. 621, I, CPP), quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos (art. 621, II, CPP) e  quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena (art. 621, III, CPP).

O destaque na discussão ocorre diante da necessidade de correção ao decreto condenatório transitado em julgado proferido pelo Conselho de Sentença face a existência de novas provas.

Esse tema não é novo e, ainda, produz diversas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais[2].

Por um lado, há o entendimento que a compatibilização entre a soberania dos veredictos e a revisão criminal resulta na necessidade de nova apreciação da matéria pelo Conselho de Sentença, quando a revisão for julgada procedente, formando apenas o juízo rescindente. É dizer, não poderia o Tribunal de segunda instância absolver, desde logo, o condenado. Assim, Antonio Scarance Fernandes aponta que: “é possível garantir a soberania dos veredictos e a revisão criminal. Se há prova nova, ainda não apreciada pelos jurados e que pode, por meio de um juízo prévio de probabilidade, alterar o quadro condenatório, o correto seria cassar a decisão e encaminhar o réu a novo julgamento. O mesmo aconteceria se ficasse demonstrado ser falsa a prova dos autos. Estaria respeitada a soberania dos jurados e não ficaria o réu impossibilitado reverter a situação formada em seu desfavor.”[3]

Por outro lado, é tema consolidado na jurisprudência dos Tribunais Superiores de que a soberania dos veredictos não impede a desconstituição da decisão condenatória por meio de revisão criminal, através do juízo rescisório[4]. A interpretação não se mostra difícil de reflexão, na medida em que a soberania dos veredictos se caracteriza como garantia fundamental aos indivíduos (ao acusado no caso concreto), não podendo, por si só, servir – a soberania – como obstáculo ao direto à liberdade do condenado, também protegido pela Constituição.

É por isso que, nesse conflito aparente de princípios, deve prevalecer aquele que garante o ius libertatis do acusado com a maior brevidade possível, sem a necessidade de maiores trâmites burocráticos que visam supostamente atender a uma compatibilização com a soberania dos veredictos. Compreender de forma distinta seria afastar-se do conteúdo teleológico das normas constitucionais, que se encontram ambas previstas no artigo 5º, que estabelece direitos e garantias individuais ao acusado em face do Estado, não o oposto.

Vale relembrar outra normal de igual estatura constitucional que repudia o erro judiciário e serve de fundamento para a previsão da desconstituição excepcional da coisa julgada por meio da revisão criminal, atribuindo até mesmo responsabilidade civil ao Estado em razão do erro[5].

Logo, a densidade normativa-constitucional da soberania dos veredictos, em consonância com os outros princípios estruturantes do tribunal do júri – plenitude de defesa; sigilo das votações; competência “mínima” para julgar os crimes dolosos contra a vida – se inclina pela proteção do acusado em franca compatibilização com o direito de liberdade.

Contudo, no enfrentamento do tema, a 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça no Agravo em Recurso Especial nº 1830788, através do voto condutor pelo Relator Ministro Jesuíno Rissato (desembargador convocado do TJDFT) em 26.10.2021, indicou que a soberania dos veredictos não está pautada como tema exclusivo, mas, também, a nova análise probatória realizada após a decisão condenatória transitada em julgado. Nessa linha, entendeu que “o acolhimento da pretensão revisional, na seara criminal, deve ser excepcional, cingindo-se às hipóteses em que a suposta contradição à evidência dos autos ou inocência pela prova nova seja patente, estreme de dúvidas, dispensando a interpretação ou análise subjetiva das provas constantes dos autos. A fundamentação baseada apenas na fragilidade das provas produzidas não autoriza o e. Tribunal a quo a proferir juízo absolutório, em sede de revisão criminal, pois esta situação não se identifica com o alcance do disposto no art. 621, incisos I e III, CPP.”

Realiza distinção aqui o Tribunal da Cidadania, para casos em que a prova nova é determinante em relação àqueles em que ela gera apenas uma fragilidade no arcabouço probatório que poderia ou não ensejar a absolvição do acusado. Nesse último caso, entendeu pela necessidade de submissão a novo julgamento pelo corpo de jurados:

“No caso dos autos, analisando a prova nova – exumação de cadáver -, em conjunto com todo o arcabouço probatório, o v. acórdão demonstra a fragilidade do conjunto probatório, como se constata da conclusão de que "Aqui, fulmina-se o animus necandi. Portanto, insisto, não houve homicídio doloso. No máximo, haveria conduta culposa" (fl. 519), assim, evidente que a prova nova não se mostrou hábil à apontar contradição às provas dos autos ou plena demonstração da certeza da inocência  do acusado.”

Na realidade, o caso concreto traz questões interessantes sobre a nova análise probatória quanto a conduta do acusado (condenado), e também sobre a prova do próprio elemento subjetivo do tipo.

O acusado foi condenado pelo tribunal do júri pela prática de homicídio duplamente qualificado, confirmado pelo Tribunal de Justiça local.

Importante notar que todo o quadro probatório para o julgamento da revisão criminal se inclinou na análise da prova técnico-pericial. Isso se deu, porque, no processo de formação do conhecimento dos fatos não houve exame de necropsia, mas uma equipe de três médicos realizou o laudo cadavérico pela ausência de perito oficial (art. 159 §1º.,CPP). Neste ato, foi realizado um simples exame externo do cadáver, não havendo necessidade, segundo os médicos, de exame interno. Na conclusão do laudo, e de posse da radiografia do crânio da vítima, a equipe interpretou que aquela lesão teria sido causada por um projétil de arma de fogo.

Após o trânsito em julgado da decisão condenatória, a defesa produz prova nova (exumação do corpo e exame de necropsia) e realiza o confronto da lesão do crânio da vítima com a arma do acusado (policial militar). Constata-se, ao final, que os projetis disparados por aquela arma não poderiam gerar a lesão na vítima.

A partir da análise individualizada da prova testemunhal e pericial, concluiu-se que houve conduta do acusado (disparo de arma de fogo), mas essa conduta não gerou – diretamente – o resultado morte da vítima. Por isso, a revisão criminal ajuizada perante o Tribunal de segunda instância foi julgada procedente para desconstituir a decisão condenatória e absolver o acusado.   

Após a análise integral da prova pericial, concluiu o acórdão impugnado que “Noutras palavras, somente poderia ter sido gerado por um tiro indireto. Para

sermos ainda mais claros, para que fosse gerado esse ferimento irregular, seria necessário que o projétil, antes de atingir a vitima, sofresse deformação.

Em resumo, a arma não estava apontada diretamente para a vítima. Ao contrário, estava sim apontada para outra superfície dura, de onde ricocheteou ou, mais provavelmente, defletiu, antes de alcançar a vítima.

ANIMUS NECANDI (AUSENTE). Aqui, fulmina-se o animus necandi.

Portanto, insisto, não houve homicídio doloso. No máximo, haveria conduta culposa.”

Analisando o caso concreto e as discussões sobre a viabilidade de rediscussão da matéria decidida pelo tribunal do júri podemos extrair algumas conclusões:

1º) a decisão condenatória se mostrou equivocada;

2º) não houve decisão manifestamente contrária à prova dos autos, mas sim uma prova pericial inexata. Logo, a “culpa” do erro decisório não deve ser reputada ao Conselho de Sentença[6];

3º) Deve ser fomentada a postura defensiva ativa para que seja concretizado o efetivo contraditório em prol da proteção de inocentes. O caso concreto se mostra ilustrativo na atividade defensiva em busca de novas provas (exumação do cadáver);

4º) A análise atomística da prova[7] deve ser uma prática processual para que seja viável o controle da legalidade e critério de fiabilidade das informações obtidas pelos elementos de prova.

A conclusão final da análise do caso concreto e da decisão proferida pela 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça merece destaque:

O que se extrai da reflexão do tema enfrentado é que não é cabível a generalização de preceitos normativos, especialmente princípios constitucionais que estruturam garantias fundamentais. É dizer, não se pode criar a responsabilidade normativa da soberania dos veredictos para, por si só, reconhecer resultados em casos concretos[8].

Na hipótese em destaque, a soberania não pode prejudicar a revisitação da decisão condenatória transitada em julgado. Mas, por outro lado, o equívoco decisório (pelo Conselho de Sentença) não pode resultar nem sempre resultará em absolvição através da revisão criminal, embora seja lícito ao Tribunal fazê-lo em alguns casos.

Cada caso concreto levará a um caminho a ser seguido, tendo como norte as garantias constitucionais. E, se estamos enfrentando um caso do tribunal do júri, não podemos concluí-lo, ainda que os veredictos sejam soberanos, sem que a análise individualizada da prova seja realmente realizada para extrairmos o resultado normativo específico.

Depreende-se, portanto, que o efeito decisório da revisão criminal para cassar a decisão condenatória (juízo rescindente) determinando que o acusado seja submetido a novo julgamento ou que seja, desde logo absolvido (juízo rescisório), dependerá do resultado probatório e não, apenas, do reconhecimento ou não da soberania dos veredictos.

Post scriptum: Por mais uma oportunidade destacamos a importância da prova penal e seus efeitos, ainda que o enfrentamento da discussão se refira à tomada de decisão pelo Conselho de Sentença.


[1] “Assim, transitada em julgado a sentença do Juiz Presidente, é cabível a revisão do processo findo (art. 621), e o que foi decidido na esfera revisional “não fere a soberania do Júri”. PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 38.

[2] As referências atualizadas e a individualização dos posicionamentos podem ser vistas em MION, Ronaldo de Paula. Tribunal do Júri e Revisão Criminal. In Manual do Tribunal do Júri. A reserva democrática da justiça brasileira. Denis Sampaio (org.) 1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2021, pp. 379/388.

[3] FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 191/192. No entanto, seguindo a posição majoritária na doutrina, em livro em coautoria com Ada Grinover e Antonio Magalhães Gomes Filho, afirmam que “hoje não resta dúvida que a soberania dos veredictos é preceito estabelecido como garantia do acusado, podendo ceder diante de norma que visa exatamente garantir os direitos de defesa e a própria liberdade. Portanto, é juridicamente possível o pedido de revisão dos veredictos do júri.” GRINOVER, Ada Pelegrini, GOMES FILHO, Antonio Magalhães e FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no Processo Penal. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 247.

[4] 6ª. Turma do STJ, REsp. 1.304.155/MT, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20.06.2013, DJe 01.07.2014. Ainda que se refira ao reconhecimento da fragilidade probatória (6ª. Turma do STJ, AgRg no REsp 1.154.436/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 11.12.2012); Primeira Turma do STF, ARE 674151/MT, Rel. Min. Celso de Mello, Dje 18/10/2013.

[5] Art. 5º. (…) LXXV – o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;

[6] Inserimos essa conclusão porque, invariavelmente, o Júri figura, no “banco dos réus” quando há equívoco decisório.

[7] Enfrentamos o tema no artigo “A imprescindível existência de elemento probatório para a decisão condenatória” publicado no CONJUR em 22.10.2021.

[8]  Essa interpretação vem sendo relativizada por uma posição contrária às propostas de proteção constitucional, como pode ser observado pelos votos dos Ministros Luis Roberto Barroso e Dias Toffoli no RE 1.235.340 (Tema 1.068) que se resumem na Tese 1 "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, membro honorário do IAB e professor de Processo Penal.

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    é defensora pública do Distrito Federal, titular no tribunal do júri, mestranda em Direito pela UnB, pós-graduada em Direito Público e professora de Processo Penal e Direito Penal.

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