Observatório Constitucional

A teoria de Catherine MacKinnon e reavaliação do direito

Autor

  • Cristina Maria Gama Neves da Silva

    é advogada e sócia do Lacombe e Neves da Silva Advogados Associados mestre pela University of California Berkeley especialista em Direito Constitucional e Teoria Crítica em Direitos Humanos presidente da Elas Pedem Vista membro do LiderA observatório eleitoral diretora de políticas afirmativas do Ibrade integrante do grupo de pesquisa Observatório Constitucional e GPScotus ambos do IDP e diretora jurídica do Instituto Gloria.

19 de março de 2022, 8h00

A teoria jurídica feminista (feminist jurisprudence) se propõe a reavaliar o Direito sob a perspectiva de quem foram seus principais articulares e suas teorias, vindo a constatar que mulheres estão em posição de subordinação na esfera jurídica. Com base nesse pressuposto, essa teoria fundamentalmente apresenta um ponto de vista feminista sobre direito, política e a sociedade, através da experiência, análise e vivência feminina. Nos Estados Unidos, Catherine MacKinnon tem sido a interlocutora mais importante desse movimento acadêmico nas últimas três décadas.

MacKinnon se formou pela Smith College (B.A.) em 1969, após cursou Direito na Yale University (JD), onde também obteve seu PhD em teoria política em 1987. Foi professora em diversas universidades dos Estados Unidos e do Canadá e desde 1990 é professora na faculdade de Direito da Univeristy of Michigan.

Desde 1970 MacKinnon tem atuando em processos judiciais, iniciativas legislativas e desenvolvimento de políticas públicas no âmbito de direito das mulheres. Em Harassment of Working Women formulou a teoria de que o assédio sexual é uma forma de discriminação de gênero, inclusive seu livro tem sido a base para decisões judiciais e legislativas ao redor do mundo no reconhecimento da temática. A partir dos anos 80, MacKinnon trabalhou com a ativista e escritora feminista Andrea Dworkin em uma série de iniciativas legislativas para reconhecer que a pornografia viola a dignidade da pessoa humana. A jurista também tem atuado para estipular o estupro como uma forma de genocídio sob o direito internacional.

MacKinnon se alinha a Simone de Beavoir quando assenta em sua teoria que o mundo foi criado e normatizado pela perspectiva masculina e essa perspectiva é o dogma social (power to create the world from one's point of view is power in its male form [1]). Assim aborda a desigualdade sexual como sendo relacional, ou seja, a vivência social da mulher é uma experiência de subordinação para e por homens. Com isso, entende que ser uma mulher em uma sociedade patriarcal significa ser sexualmente desejada por homens, se subjugada por homens, ser definida por homens e viver através de ideais impostos pela perspectiva masculina, por isso conclui que a característica que mais determina a mulher, inclusive superando o biológico, é a sua subordinação social. Por tal razão vê a dominação masculina como a forma de poder mais penetrante e persistente da história, pois a submissão da mulher é forçada e ela sempre existiu.

Diante da subordinação feminina, MacKinnon entende que mesmo que haja uma igualdade formal da lei, homens e mulheres não detêm o mesmo status social. Com isso conclui que libertar as mulheres da discriminação não as livra da subordinação, razão pela qual defende ser essencial estipular conceitos feministas para desigualdades, acesso e discriminação, pois defende que a mulher somente alcançará a dignidade plena quando essa dignidade for conceituada por si própria.

Outro aspecto importante da teoria de MacKinnon é a análise da sexualidade. Para a professora a objetificação da mulher é o primeiro processo de submissão a ela imposto, o que resulta em alienação. Ao seu ver, a escravidão, degradação, violência e inferioridade da mulher funcionam como barreiras de compreensão quanto a subordinação feminina, por isso defende ser fundamental a conscientização das mulheres em relação a sua sexualidade, história, cultura, comunidade e forma de poder, pois se todas as mulheres tivessem consciência da desigualdade de gênero ou todas as mulheres seriam feministas ou até mesmo o feminismo não seria necessário.

Na teoria política e econômica, MacKinnon entende que nem o marxismo nem o liberalismo são suficientes para as mulheres e por isso defende uma metodologia pós-marxista feminista, em seus próprios termos, que confronte a relação entre estado e sociedade dentro de uma teoria social adequada as especificidades dos sexos.

Quanto ao liberalismo argumenta que o Estado é masculino e suas leis veem e tratam mulheres como os homens veem e tratam mulheres. Assim, o Estado liberal constitui uma ordem social de interesse dos homens onde a sexualidade da mulher é controlada em todos os níveis. Ou seja, o ponto de vista do homem é imposto como política governamental.

Quanto ao marxismo, MacKinnon reconhece que existem similaridades com o feminismo, pois ambos são teorias sociais baseados em dominação e desigualdade, ambos enxergam a experiência e força do grupo dominado como fonte de autoridade e conhecimento e ambos vislumbram sua teoria como política. Através de um paralelo com o marxismo conceitua que a sociedade é divida em dois eixos (homens e mulheres) e que essa divisão configura todas as relações sociais. A seu ver a sexualidade é o processo social que cria, organiza, expressa e direciona o desejo e é com base nesse arranjo que mulheres e homens se estabelecem como seres sociais e se relacionam. Nesse paralelo, conclui que o trabalho está para o marxismo como a sexualidade está para o feminismo. Contudo, a grande crítica de MacKinnon ao marxismo diz respeito a negação da existência de desigualdade de gênero dentro das classes sociais e a omissão de que o trabalho doméstico é trabalho (women become as free as men to work outside the home while men remain free from work within [2]).

Outro ponto fundamental em sua teoria diz respeito ao assédio sexual. MacKinnon argumenta que sendo o homem a referência de ser humano, as leis relativas à matéria são embasadas na perspectiva masculinidade. Tanto que, a seu ver, o direito penal tem sido esquizofrênico, pois pune os homens por expressarem a imagem de masculinidade criada para a sua identidade, na qual foram treinados, validados e venerados para terem. Ademais, acentua que as teorias de estado perante questões essencialmente femininas — estupro, pornografia, prostituição, assédio sexual, discriminação sexual, aborto, igualdade entre outros — são abordadas apenas pela perspectiva punitiva e não adentram a questão social, pois não buscam entender os motivos das mulheres serem estupradas e/ou agredidas.

A jurista define o assédio sexual como "a imposição indesejada de exigências sexuais no contexto de uma relação desigual de poder". Assim, conclui que o problema não decorre da atração sexual excessiva de homens por mulheres e sim da relação de poder, tanto que compara o poder econômico no assédio sexual à força física no estupro. Para MacKinnon o assédio sexual perpetua uma estrutura interligada pela qual as mulheres são mantidas sexualmente em escravidão para os homens e posicionadas na base do mercado de trabalho, pois a dominação econômica que os homens têm em relação às mulheres no ambiente de trabalho seria equivalente à que eles detêm em suas casas. Em sua teoria defende que historicamente as mulheres têm trocado serviços sexuais pela sua sobrevivência, seja através da prostituição, do casamento ou do assédio sexual que ao fim institucionalizam a desigualdade sexual com arranjos de diferentes maneiras.

Por isso MacKinnon defende uma teoria jurídica abrangente para se impedir a persistência do assédio sexual. Se parece óbvia a injustiça de se exigir favores sexuais para se manter ou ser promovida no emprego, traduzir essa percepção em teoria jurídica não é tarefa simples. MacKinnon apela à lei para eliminar não apenas a discriminação sexual, mas também a maioria das manifestações de sexismo da sociedade, embora reconheça que apenas o direito não é suficiente para acabar com a desigualdade de gênero.

Christine Gosil Cooper [3] ressalta que parte das afirmações mais marcantes e desafiadoras de MacKinnon não são embasadas em fontes documentais acadêmicas. Por exemplo, foi a partir de uma publicação de uma enquete na Redbook em 1976 no qual 90% das entrevistas relataram experiências de assédio sexual no trabalho que o público passou a se interessar pelo tema. À época a imprensa condenou a prática, porém alguns tribunais não foram convencidos tratar-se de prática discriminatória sexual e ilegal. Daí a relevância também de se pensar num método jurídico feminista — tema amplamente estudado por Katherine Barlett — que visa superar as deficiências das teorias tradicionais em prol de uma teoria jurídica completa para a intervenção do sistema de justiça.

De forma, introdutória esse artigo apenas se propôs a apresentar alguns pontos centrais da teoria de Catherine MacKinnon, que tem ecoado além da academia norte-americana e influenciado diversos movimento acadêmicos ao redor no mundo, como por exemplo o constitucionalismo feminista no Brasil, que tem como suas principais interlocutoras as professoras Christine Peter, Melina Fachin e Estefânia Queiroz.

Não há dúvida que Catherine MacKinnon permanece como uma das mais importantes juristas da atualidade, tendo a sua teoria um enorme impacto no estudo teórico fora do âmbito do liberalismo e marxismo e sendo suas análises de extrema importância no campo feminista que busca uma teoria anti-capitalista, anti-liberal, anti-marxista. Muito além da esfera feminista, seu trabalho também influenciou nos anos recentes negros, latinos e a comunidade LGBTQIA+. Por todo seu trabalho feito, em especial na percepção de que a vivência e percepção de determinado grupo considerado minoritário deve ser compreendida, inserida e respeitada dentro das instituições jurídicas e sociais, MacKinnon é certamente um dos maiores nomes e sua contribuição ao Direito é revolucionária.

Bibliografia
– https://www.law.umich.edu/FacultyBio/Pages/FacultyBio.aspx?FacID=camtwo
– MACKINNON, Catherine.
"Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda for Theory". 7 Sigs: Journal of Women in Culture and Society (1982)
– MACKINNON, Catherine. "Feminism, Marxism, Method, and the State: Toward a Feminist Jurisprudence" 8 Sigs: Journal of Women in Culture and Society (1983): 635
– COOPER, Christine Godsil. Review of Sexual Harassment of Working Women by Catharine A. MacKinnon. University of Chicago Law Review: Vol. 48: Iss. 1, Article 9, 1981. Disponivel em https://chicagounbound.uchicago.edu/uclrev/vol48/iss1/9


[1] "Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda for Theory". 7 Sigs: Journal of Women in Culture and Society (1982)

[2] "Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda for Theory”. 7 Sigs: Journal of Women in Culture and Society (1982)

[3] COOPER, Christine Godsil. Review of Sexual Harassment of Working Women by Catharine A. MacKinnon. University of Chicago Law Review: Vol. 48: Iss. 1, Article 9, 1981. Available at: https://chicagounbound.uchicago.edu/uclrev/vol48/iss1/9

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    é advogada e sócia do Lacombe e Neves da Silva Advogados Associados, mestre pela University of California Berkeley, especialista em Direito Constitucional e Teoria Crítica em Direitos Humanos, presidente da Elas Pedem Vista, membro do LiderA, observatório eleitoral, diretora de políticas afirmativas do Ibrade, integrante do grupo de pesquisa Observatório Constitucional e GPScotus ambos do IDP e diretora jurídica do Instituto Gloria.

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