Diário de Classe

ADIs 6.581 e 6.582 e a revogação automática da prisão preventiva

Autores

19 de março de 2022, 8h00

Recentemente foram divulgadas notícias sobre a formação de maioria dos votos no Supremo Tribunal Federal para reafirmar a tese de que a falta de revisão no prazo de 90 dias não justifica a revogação automática da prisão preventiva [1], isso porque o Plenário esteve julgando, na semana passada, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.581 e nº 6.582. As ADIs pedem, no geral, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 316, p. único, do Código de Processo Penal [2], inserido pelo denominado pacote "anticrime" (Lei nº 13.964/19).

A questão é interessante de ser analisada porque reflete problemas que, cotidianamente, são objetos de críticas por teóricos do Direito, tais como a produção acrítica de normas, descoladas da realidade do sistema judiciário brasileiro e, posteriormente, as manobras interpretativas feitas pelo Poder Judiciário para afastar os efeitos dessa norma e reduzir os seus impactos, utilizando de fundamentos consequencialista.

Para entender melhor a cronologia dos fatos e, consequentemente, o objeto da discussão, cumpre "iniciar pelo começo": onde tudo começou e onde conseguimos chegar.

Em outubro de 2020, os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux ocuparam os "tabloides" da imprensa nacional por ocasião de uma curiosa
"queda de braço" jurisdicional envolvendo um conhecido líder da facção criminosa PCC, André do Rap, caso que pode ser considerado, em alguma medida, como o "paciente zero" da questão envolvendo a interpretação do parágrafo único do artigo 316.

Como visto, o referido dispositivo foi inserido no CPP em 2019, pelo pacote "anticrime", e determina ao órgão emissor da decisão que decreta a prisão preventiva que ele revise a necessidade de sua manutenção (à luz dos requisitos do artigo 312 do CPP) a cada 90 dias, de ofício, mediante decisão fundamentada, sob pena de torná-la ilegal. À época, o ministro Marco Aurélio deferiu medida liminar, no âmbito do HC nº 191836/SP, para relaxar a prisão preventiva de André, pois tal custódia, embora mantida em julgamento de recurso de apelação, ultrapassara o prazo legal de 90 dias sem que houvesse a revisão dos seus pressupostos de manutenção por parte do órgão emissor da decisão, nos termos da já citada disposição do CPP. Eis, portanto, que o fundamento utilizado pelo ministro para a concessão da liminar foi, precisamente, a interpretação literal do parágrafo único do artigo 316.

Seu raciocínio foi simples: se o fato de não haver revisão da prisão preventiva dentro do prazo nonagesimal (de 90 dias), de ofício, pelo órgão emissor da decisão, faz com que ela se torne ilegal, então, no caso de André, a prisão estava ilegal. Se a prisão estava ilegal, ela deveria ser revogada. E assim ele determinou.

No entanto, o ministro Luiz Fux, na posição de presidente do STF suspendeu os efeitos da liminar concedida por Marco Aurélio, o que foi feito na Suspensão Liminar nº 1.395. Alguns argumentos foram utilizados pelo ministro, entre os quais: 1) o de que a concessão da liminar teria representado "supressão de instância", pois a questão da inobservância do prazo nonagesimal não havia sido objeto de apreciação pelas instâncias antecedentes daquele caso; 2) o de que a soltura do paciente representaria grave comprometimento da "ordem" e da "segurança pública". Além disso, o ministro presidente, na ocasião, fez referência a diversos precedentes em que a turma revogou decisões liminares, de maneira a afastar a caracterização de constrangimento ilegal pelo mero descumprimento do prazo de 90 dias sem que houvesse revisão [3].

Assim, percebe-se que, a partir daí, surge uma questão que, no fim das contas, diz respeito à correta leitura do parágrafo único do artigo 316 do CPP: a mera inobservância, pelo órgão emissor da decisão, do prazo de 90 dias para revisão, enseja, automaticamente, a revogação da prisão preventiva?

Posteriormente, ainda em outubro de 2020, o tribunal do STF referendou a liminar do ministro Fux, ou seja, confirmou a suspensão da liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio, até o julgamento do HC nº 191.836, que ocorreu no mês seguinte. Ou seja, já nessa ocasião, portanto, o STF deu uma resposta negativa à questão formulada, firmando o entendimento de que a mera inobservância do prazo de 90 dias para revisão não enseja a revogação automática da prisão preventiva, mas cria, tão somente, a necessidade de fundamentá-la periodicamente.

Nas palavras do próprio ministro, "o parágrafo único do artigo 316 não fala em prorrogação da prisão preventiva, não determina a renovação do título cautelar. Apenas dispõe sobre a necessidade de revisão dos fundamentos da sua manutenção. Logo, não se cuida de prazo prisional, mas prazo fixado para a prolação de decisão judicial" [4].

Ao identificar a controversa, o Partido Trabalhista Brasileiro ajuizou a ADI nº 6.581 em face do dispositivo, requerendo a sua declaração de inconstitucionalidade, argumentando, em suma, que a revogação automática de prisões preventivas com base em interpretação literal do disposto pelo artigo 316 do CPP ocasionaria lesão ao "direito à segurança" e "direito à paz social" (artigos 6º e 144 da CF). Também, a Associação dos Magistrados Brasileiros postulou, no âmbito da ADI nº 6.582, pela operação de interpretação conforme à Constituição no sentido da impossibilidade da revogação automática da prisão apenas pelo transcurso do prazo nonagesimal, defendendo que o texto do artigo 316, porquanto maculado pelo "vício da polissemia", abarcaria interpretações irrazoáveis e desproporcionais. Assim, as questões jurídicas a serem respondidas eram: 1) inconstitucionalidade genérica do parágrafo único do artigo 316 do CPP; 2) inconstitucionalidade da revogação automática da prisão preventiva; 3) competência, constitucionalmente adequada, para a revisão da prisão no prazo nonagesimal.

Assim, o julgamento das mencionadas ADIs chegou ao fim, tendo o STF, por maioria e com base na tese encabeçada pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, decidido pela procedência das ações, concedendo a interpretação conforme à Constituição do parágrafo único do artigo 316, fixando, entre outras duas, a seguinte tese: "A inobservância da reavaliação prevista no parágrafo único do artigo 316 do CPP, após o prazo de 90 dias, não implica a revogação automática da prisão preventiva, devendo o juízo competente ser instado a reavaliar a legalidade e a atualidade de seus fundamentos".

Com o resultado do julgamento das ADIs, poder-se-ia dizer que o problema foi resolvido. Não nos parece ser o caso, porquanto a resposta dada pela corte gera, sem sombra de dúvidas, outros problemas a serem enfrentados.

Isso porque o caso se trata de um evidente exemplo de afastamento da norma pelo Judiciário com fundamento em princípio abstratos, objetivando reduzir as consequências que podem ser geradas por essa mesma norma. Da leitura do dispositivo, não restam dúvidas acerca da sua real interpretação: a prisão se torna ilegal quando inobservado o prazo nonagesimal para sua revisão e, sendo ilegal, ela deve ser revogada. Assim, ao fixar a tese de que a revogação não se dá de forma automática, a Suprema Corte retira a utilidade da norma, uma vez que a consequência prevista em decorrência do descumprimento do prazo nonagesimal deixa de ter efeitos.

Veja, não estamos defendendo que o cumprimento literal do parágrafo único do artigo 316 não enseja problemas para o Poder Judiciário. Essa é a consequência de um Legislativo que, ao tentar resolver o problema das prisões preventivas ilegais (e, talvez, de uma mora judiciária em avaliar a necessidade de manutenção dessas prisões), cria outro. O parágrafo único é uma clara tentativa de obrigar o Judiciário a revisar a manutenção das prisões, prescrevendo uma consequência em caso de descumprimento do seu prazo. No entanto, talvez os impactos gerados pela norma ao sistema judiciário devessem ter sido mais bem refletidos quando da produção da norma. Não sendo o caso, o problema, inevitavelmente, cai nas mãos do Judiciário, que precisa dar uma resposta.

A crítica hermenêutica do Direito, matriz teórica fundada pelo professor Lenio Streck, de há muito vem denunciando o equivocado enfrentamento da relação entre texto legal e norma jurídica que vem sendo operado na prática. Nessa linha, imperioso destacar que, para a CHD, a diferença entre texto e norma é uma diferença ontológica, no âmbito da qual o texto é o ente ao passo em que a norma é o ser, e a relação entre ser e ente é uma relação intersubjetiva. É dizer, portanto, que "(o) ser não é uma generalidade (…). Com o ser chegamos aos entes. O ser existe para dar sentido aos entes. Não vemos o ser; vemos o ente no seu ser (…)" [5].

Assim, o texto (ente), muito embora não se identifique com a norma (ser, ou ser-no mundo), estabelece as fronteiras e limitações hermenêuticas para a realização da norma no mundo, por meio da interpretação. O texto, portanto, ainda que não seja tudo, jamais poderá ser concebido como um nada, no que diz respeito à decisão judicial. Volvendo, desse modo, ao caso particular do parágrafo único do artigo 316 do CPP, quais são os limites impostos pelo seu texto? Se o texto diz Y, pode o Judiciário, na pretensão de reduzir os impactos da norma, fixar uma interpretação X?

Ora, o dispositivo em questão expressa claramente que a prisão preventiva não revisada no prazo de 90 dias será considerada ilegal, devendo, portanto, ser revogada. Todavia, na contramão do texto, o STF decidiu por conceder interpretação conforme, para estabelecer, em verdade, que a inobservância do prazo nonagesimal não torna a prisão ilegal, por si só.

Não teria o STF, ao fim e ao cabo, feito letra morta do disposto pelo parágrafo único do artigo 316 do CPP? Se a revogação da prisão preventiva pela inobservância do indigitado prazo fere a "ordem pública", "direito à segurança" e outros direitos fundamentais, não seria, então, inconstitucional a disposição em questão? Ainda que fosse esse o caso e fosse possível ventilar a possibilidade de lesão ao fantasma da "ordem pública", seria uma inconstitucionalidade do tipo "a norma não agradou a alguns segmentos da política e nem ao STF". Uma inconstitucionalidade sem parametricidade. Afinal, o que fazer com a garantia de presunção de inocência (artigo 5, LVII, CF/88) de que são titulares pessoas presas preventivamente por anos a fio[6]? "Fixa-se prazo para revisão da prisão preventiva e estabelece-se a ilegalidade da prisão que ultrapassar tal prazo sem a devida revisão", respondeu o Congresso Nacional. Mas e se o prazo não for observado, indaga-se? "Surge o dever do magistrado de revisar os pressupostos de manutenção da prisão e o prazo não é peremptório", redarguiu o STF. No entanto, poder-se-ia indagar novamente: "a quem cabe legislar?". Nos parece correto afirmar que o real problema não foi — nem de longe — solucionado, de modo que a situação permanece — e permanecerá — a mesma.

Em uma palavra final, ainda que se esteja diante de um problema deveras complexo, pode-se afirmar, com certa segurança, que, independentemente de qualquer disposição do CPP, ou qualquer decisão do STF, a responsabilidade pela garantia de uma duração razoável ao processo penal não é do acusado, mas do Estado. Quando a soltura de determinado acusado/investigado representa, em alguma medida, perigo à "ordem pública", agiganta-se o ônus das instituições de garantirem que a prisão de tal cidadão será mantida, nos termos da lei. Cabe, portanto, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público manterem-se atentos em situações como, por exemplo, a de André do Rap, não por André do Rap, mas por todos aqueles cidadãos que, sob o jugo do processo penal e da investigação criminal, têm ocupado celas do — superlotado — sistema carcerário, sem que se pese sobre si sequer uma sentença condenatória [7].

 


[1] HIGÍDIO, José. Preventiva sem revisão em 90 dias não causa revogação automática, reafirma STF. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, 8/3/2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mar-08/preventiva-revisao-90-dias-nao-causa-revogacao-automatica.

[2] Artigo 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

[3] Quanto à celeuma instaurada pelas decisões mencionadas, ver: https://www.conjur.com.br/2020-out-12/lenio-streck-revisar-prisao-cada-90-dias.

[5] STRECK, Lenio. Martin Heidegger. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barreto (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 427.

Autores

  • Brave

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Brave

    é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista de iniciação científica pela FAPERGS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!