Pós-lavajatismo em debate

'Lava jato' deixou ao Brasil legado legislativo nocivo, alerta Walfrido Warde

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18 de março de 2022, 21h21

Os abusos cometidos pela "lava jato" foram anulados na Justiça, mas as leis que os chefes da operação manejaram a pretexto de combater a corrupção ainda estão por aí e podem produzir novos danos ao tecido social, à política e à economia, segundo afirmou o advogado Walfrido Warde no debate "O combate ao crime além da 'lava jato", transmitido na semana passada pela TV Conjur.

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Para Warde, instituições devem adotar um modelo estrutural de combate à corrupção

Autor do livro "O espetáculo da corrupção: Como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país", Warde afirmou que duas leis, em particular, criaram um ambiente propício ao punitivismo que marcou a operação: a chamada Lei de Delação (ou Lei de Organização Criminosa) e a Lei Anticorrupção, ambas de 2013.

"Elas permitiram o acoplamento de prisões cautelares, as delações premiadas. Passaram, desde 2018, por uma reação significativa da comunidade jurídica, mas as regras, os institutos, as estruturas, as categorias jurídicas inauguradas em 2013, naquelas leis, ainda estão aí".

O advogado esclarece, contudo, que o esforço empreendido por magistrados do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais para conter os instrumentos do "lavajatismo" não tem o objetivo de abolir a luta anticorrupção.

"Ao contrário, é para desfulanizar, despolitizar o combate à corrupção, é para criar um modelo estrutural de combate", disse o advogado.

As instituições, porém, terão de tomar medidas mais concretas para consolidar essa mudança. Warde sugere, em primeiro lugar, estabelecer o que, de fato, é corrupção. Depois, ele propõe rever a questão do financiamento de campanhas eleitorais.

"Nós ainda temos uma enorme dificuldade de definir efetivamente qual é o tipo de corrupção. Não há que se pensar que em um país de dimensões continentais como o Brasil a política se fará apenas com orçamento destinado ao financiamento público de campanha", observou Warde.

Transmitido no último dia 7, o debate foi mediado pelo advogado Pierpaolo Bottini e contou ainda com a participação do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes; do procurador-geral da República, Augusto Aras; e da desembargadora federal Simone Schreiber (TRF-2).

Leia abaixo a íntegra da fala de Walfrido Warde:

Walfrido Warde Escrevi em 2018, entre os turnos da eleição de 2018, um livro sob o título "O Espetáculo da Corrupção", em que eu singelamente denunciava o que me parecia um combate irresponsável e irrefletido contra a corrupção. Um combate que produzia efeitos colaterais muito adversos, basicamente três: o esgarçamento do tecido social levava à polarização da sociedade, que ainda se apresenta como uma realidade entre nós; uma deterioração da política, uma demonização da política sob a premissa de que não há saída fora da política; em terceiro lugar, uma destruição dos sistemas econômicos. Basicamente, aquele modelo de combate à corrupção, ao qual nós comumente chamamos de lavajatismo, o ambiente da "lava jato", levou à destruição de todo o mercado de infraestrutura no Brasil. E frente a essa reflexão em 2018, muitas águas rolaram desde então, muitas coisas aconteceram desde então e uma reversão de abusos da operação "lava jato" se operou no Brasil, aconteceu no Brasil. Todavia, é importante em um momento em que nós discutimos o combate ao crime, o combate à criminalidade no ambiente pós-"lava jato", que nós reconheçamos que as leis que a operação "lava jato" e seus protagonistas manejaram de maneira esgarçada, de maneira enviesada ainda estão aí. As leis de 2013, a chamada Lei de Delação ou Lei de Organização Criminosa, e a Lei Anticorrupção ainda estão aí. As leis que permitiram o acoplamento de prisões cautelares, as delações premiadas, ainda estão aí. Elas passaram desde 2018 uma reação significativa da comunidade jurídica a serem manejadas de maneira distinta, mas as regras, os institutos, as estruturas, as categorias jurídicas inauguradas em 2013, naquelas duas leis, ainda estão aí. É evidente que sob uma nova interpretação proposta ou determinada pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça, pelos Tribunais Regionais Federais desde 2018, sobretudo. Mas, se nós podemos dizer que a operação "lava jato" de alguma forma já não existe mais, e isso reconhecido pelos seus próprios protagonistas, nós não podemos dizer que o lavajatismo esteja morto e sepultado, como uma forma de punitivismo extremo alheio às garantias e ao projeto constitucional. E isso se dá especialmente sob um contexto que ainda é grave, de falta de disciplina adequada para alguns aspectos que são absolutamente essenciais, me parecem essenciais, no combate à corrupção. Em primeiro lugar, nós ainda temos uma dificuldade muito grande de definir o que é a corrupção no Brasil. Não nos esqueçamos de que o juiz Moro, ao falar sobre as contribuições ociosas de campanha, dizia que aquilo era corrupção, já o ministro Moro entendia que aquilo talvez não fosse corrupção, entendia que aquilo talvez fosse um ilícito tributário ou um ilícito de natureza eleitoral. Nós ainda temos uma enorme dificuldade de definir efetivamente qual é o tipo de corrupção e isso se torna ainda mais importante se nós observarmos como o financiamento da política é frouxamente regulado no Brasil. O julgamento da Adin 4.650, que baniu, que proibiu o financiamento empresarial de campanha, para dar lugar ao financiamento público, predominantemente público de campanha, com a possibilidade de financiamento de pessoa física, abriu espaço, a bem da verdade, para todo um campo de financiamento oficioso. Não há que se pensar que em um país de dimensões continentais como o Brasil, em que fazer política custa dinheiro, viajar pelo país custa dinheiro, que a política se fará apenas com orçamento destinado ao financiamento público de campanha. Nós bem sabemos, até mesmo em razão de denúncias realizadas na doutrina sobre a matéria, que as organizações criminosas vivem financiando a política no Brasil. A candidatura de vereadores, de deputados, de senadores, governadores, quiçá, de um presidente da República. Nós precisamos rever urgentemente o regramento do financiamento da política no Brasil. Talvez seja o caso de que, com a presença do ministro Gilmar aqui, isso possa ser discutido, debatido, de rever a interpretação que o Supremo deu ao artigo 9º da Constituição Federal na Adin 4.650. Talvez seja o caso de refletir sobre a volta de um financiamento privado, um financiamento empresarial com limites, sob a premissa de que nós não conseguiremos estancar o financiamento empresarial sub-reptício da política no Brasil. Outro aspecto importante é a questão da detecção da corrupção. Nós bem sabemos, e bem denunciou o ministro Gilmar na sua fala inicial, que a operação "lava jato" se mostrou eficiente na detecção da corrupção com o acoplamento de prisão cautelar longa e delação premiada, em um contexto de tortura psicológica. Então fica mais fácil detectar ilícitos dessa forma, aliás talvez ilícitos culpativos, ilícitos inexistentes. Será que não é o caso de uma regulação da delação premiada e das colaborações premiadas? Nós não devemos refletir uma legislação específica para isso? Criando condições, criando critérios? É evidente que nós temos um projeto constitucional que deveria prescindir de uma regulação fina nesses casos, mas o projeto constitucional foi em alguma medida esquecido durante o período "lava jato" e poderá vir a ser novamente em outros tempos, talvez com pessoas menos responsáveis novamente. E, portanto, se nós não temos certeza com relação à utilização e emprego das técnicas de detecção de crimes, mais uma vez vem o clamo da sociedade com relação à impunidade. Portanto, com a concreção da norma. É evidente que a nós, garantistas, se opõe a pecha de uma certa frouxidão, justamente porque ainda bate no coração da população brasileira um desejo de punição. E esse desejo de punição talvez decorra de uma má calibragem desses mecanismos de concreção da norma penal. E, por último, o quarto pilar do combate à corrupção seriam mecanismos de continuidade, de solução de continuidade para a empresa, aquilo que nós denunciávamos em 2018. Em 2019 eu voltei a denunciar, dessa feita com o ministro Valdir Simão, em um livro sobre acordo de leniência. Ou seja, as empresas brasileiras envolvidas em corrupção, em episódios de corrupção, têm muita dificuldade de resolver a sua vida com o Estado brasileiro por meio de um acordo de leniência único. Ainda é necessário fazer acordos de leniência em múltiplos guichês, não há um guichê único, então imaginem uma companhia aberta em um setor financeiro que possa ter praticado um ilícito que envolva questões concorrenciais, aí ela vai ter de fazer leniência no Cade, na CVM e no Banco Central, no Ministério Público e na CGU eventualmente. Como é possível? Nesse meio tempo a empresa vai à falência.

Pierpaolo Bottini E nos Estados Unidos, não é, Walfrido? Além de tudo…

Walfrido Warde Isso. Porque os Estados Unidos têm uma competência que é global, universal. Exatamente, então nós ainda vivemos, nós passamos pela "lava jato" e nós experimentamos os seus malefícios, que eu resumi no começo da minha fala, mas nós não demos conta de nos livrar dos instrumentos do lavajatismo e não é nos livrar dos instrumentos do lavajatismo para abolir o combate à corrupção. Ao contrário, é para desfulanizar o combate à corrupção, é para despolitizar o combate à corrupção, é para criar um modelo estrutural de combate à corrupção, em que estejam sentados, tenham assento num órgão de produção de regulação fina no combate à corrupção, Ministério Público, Judiciário, a sociedade civil, a polícia, as empresas. Nós precisamos tratar com seriedade a corrupção no Brasil, até porque é importante bem compreender quais são os efeitos da corrupção. A corrupção, ao fim e ao cabo, produz desigualdade social, permite uma competição desigual nos mercados, a ascensão de poder econômico por agentes e, portanto, leva à desigualdade, à profunda desigualdade a que nós estamos infelizmente acostumados no Brasil. É importante refletir sobre a corrupção, sobre o seu combate, mas é importante também nós olharmos para o passado e concluirmos que mudou o manejo das leis, mas as leis não mudaram. Essas leis de 2013 ainda estão aí, ainda poderão voltar a produzir danos drásticos ao tecido social, à política e à economia no Brasil. Muito obrigado.

Clique aqui para ler a íntegra da participação do ministro Gilmar Mendes
Clique aqui para ler a íntegra da participação do procurador-geral da República, Augusto Aras

Veja abaixo ou clique aqui para assistir à íntegra do debate "O combate ao crime além da 'lava jato'":

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