Senso Incomum

Ano 7-CPC: Quando no Direito (não) enxergamos o que (não) queremos

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17 de março de 2022, 8h00

Sétimo aniversário do Código de Processo Civil. Há coisas demais e coisas de menos na sua interpretação e aplicação. Por exemplo, por qual razão o artigo 926 não "pegou"? E o drible no inciso VI do parágrafo 1º. do artigo 489? Eis um mistério.

Spacca
Darcy Ribeiro dizia que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente — os cientistas — para desvelar a obviedade do óbvio.

Porém, há coisas que nem precisariam ser desveladas. Quando as obviedades do óbvio são tão óbvias que até a obviedade fica óbvia. Vejamos: o artigo 525 do Código de Processo Civil, ao prever a inexigibilidade do título fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional, ou fundado em interpretação de lei ou ato normativo tido como incompatível com a Constituição Federal, fala em decisão do Supremo Tribunal (parágrafos 12 e 15). Também o artigo 535, §5º e §8º, alude ao Supremo Tribunal.

Mas qual teria sido a dúvida a ponto de necessitar de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas? Onde está escrito "STF" poderia ser lido "qualquer tribunal"?

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo (ler aqui reportagem da ConJur, com anexo do acórdão), em incidente, teve que dizer que "de forma expressa, os dispositivos limitam sua aplicação às decisões do Supremo Tribunal Federal". A decisão foi unânime, para alivio da comunidade jurídica. Concordamos que "Supremo Tribunal Federal" ainda é o "Supremo Tribunal Federal".

Bom, estando lá a questão, o TJ-SP tinha de decidir. O que impressiona é como se formam esses "pequenos monstros hermenêuticos".

A tese aprovada diz exatamente o que diz a lei. Ficou decidido que TJ não é STF. A tese, portanto, é correta. Mas é tautológica.

Isso também leva à discussão dos precedentes. Embora haja uma corrente doutrinária que insiste em dizer que os Tribunais Superiores constroem precedentes por ato de vontade (portanto, algo como autorictas nos veritas facit precedentes — um arrematado positivismo primitivo pré-século 19), eu continuo na inglória luta para afirmar uma certa textualidade nos arts. 10, 371, 489 e 926 do CPC. Precedentes não nascem precedentes e nem são feitos para o futuro. Enfim, essa história é longa. O que é isto, o precedente? Tese é precedente?

Bem que o STJ podia fazer uma "tese" dizendo que onde está escrito, no inciso VI do parágrafo 1º. do artigo 489 do CPC, "não se considera fundamentada a decisão que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar uma existência de definição no caso em julgamento ou superação do entendimento", deve-se ler exatamente o que diz o dispositivo. Na democracia não é proibido fazer sinonímias. Eis um interessante exemplo de limites textuais-contextuais em uma dada interpretação.

Na especificidade: por qual razão o legislador diferenciou "enunciado de súmula" de "jurisprudência" e de "precedente"? Ora, súmula é resultado de precedentes, isso para começar a discussão.

Por qual razão podemos usar apenas súmulas (quais? Só as SV?) ou precedentes vinculantes para invocar o inciso VI? Quer dizer que se o STF tem uma decisão em habeas corpus ou o STJ decide uma matéria em HC ou mandado de segurança ou em furto ou roubo e essa decisão não pode ser considerado um precedente cabível no âmbito do aludido inciso VI (atenção: o CPP tem o mesmo dispositivo)?

Por que o legislador teria feito um dispositivo de tamanha quase-inutilidade? Se o artigo 926 diz que devemos manter a estabilidade, a coerência e a integridade, exatamente por isso é que o inciso VI introduziu a inversão do ônus argumentativo.

Isto porque, se a parte (o cidadão, o réu, o autor) — mais fraca sempre diante do Estado — invoca um precedente (aqui entendido no sentido verdadeiro e não no sentido imputacional com que setores da doutrina entendem o conceito de precedente) é ônus do juiz dizer que ele não é aplicável.

Essa foi a ideia da feitura do CPC (sei que não se deve invocar a vontade do legislador, porém é possível fazer uma interpretação negativa, isto é, depois que o legislador claramente aponta para um caminho, é vedado ao intérprete dizer o contrário, conforme ensina C. Baldus).

Assim, por qual razão o Tribunal pode transformar o texto do dispositivo que diz enunciado de súmula, precedente e jurisprudência em "precedentes persuasivos"? O que é isto 1 precedente persuasivo? Há um belo texto de Pablo Malheiros explicando muito bem essa temática (ler aqui).

O texto não é tudo; mas também não pode ser nada. Há textos e contextos. Se o legislador, excepcionando a garantia da coisa julgada, exigiu declaração de inconstitucionalidade e ali colocou como órgão emissor o STF, por certo que não há espaço para atribuições de sentido que transformam, em uma superinterpretação, Pinóquio em menino Jesus, pela simples circunstância de ser filho de um carpinteiro. Assim como não se pode negar que Capitu era uma mulher.

Do mesmo modo, se o legislador diferenciou sumula de jurisprudência e de precedente é porque

  1. pode ser qualquer súmula que esteja em vigor;
  2. não necessariamente necessita ser SV (aliás, qual seria o sentido de uma obviedade desse jaez dizer que o juiz não pode contrariar SV?);
  3. precedente deve ser entendido não no sentido imputacional (algo feito pelo Tribunal para decidir casos no futuro), e, sim, no sentido de que cada julgado pode ou não ser um precedente (porque um precedente não tem certidão de nascimento);
  4. se o legislador disse "jurisprudência", o sentido é amplo; uma decisão que em sede de habeas corpus diga que não basta a palavra da vítima… (é um exemplo), pode servir como precedente invocável nos termos do inciso VI dos artigos 489 — CPC — e 315 — CPP.

Ou isso ou iremos negar validade aos dispositivos. O problema é que se o Tribunal encarregado de cuidar da lei ordinária diz o que a lei não diz, para quem poderemos reclamar?

Nos sete anos do CPC, a maior luta é fazer cumprir a textualidade mais singela que se conhece desde o século 19.

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