Opinião

Tema de Repercussão Geral 1.127 e modulação de efeitos

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16 de março de 2022, 18h04

"The past is in one respect a misleading guide to the future: It is far less perplexing."[3]
J. Robert Oppenheimer

No último dia 8 de março, o STF encerrou o julgamento (virtual) do RE 1.307.334 (Tema RG 1.127). O Supremo Tribunal Federal entendeu pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em locação comercial, calcando-se, essencialmente, no fundamento de que a Lei 8.009/1990 3º VII não faz distinção entre as locações residenciais e comerciais.[4]

Ao fazê-lo, o Tribunal encaminha para o fim uma discussão que se tornou conturbada no âmbito da sua própria jurisprudência. Como vem ocorrendo com cada vez mais frequência, surge uma questão que, para nós, deve ser respondida afirmativamente: é necessária a modulação dos efeitos da tese fixada? A questão, suspeitamos, será certamente suscitada por meio de embargos de declaração.

Antes de apresentarmos as razões de nossa posição, é necessário que compreendamos melhor a controvérsia.

Como se sabe, a Lei 8.009/1990 3º VII excepciona a impenhorabilidade do bem de família nas hipóteses em que a obrigação decorra de fiança concedida em contrato de locação. Apesar de polêmica, a constitucionalidade do dispositivo foi defendida por nomes como o brilhante Lenio Streck, que sustentava ser a exceção à regra geral da impenhorabilidade nada mais do que uma opção política legítima.[5]

Em que pese a tese da não recepção ter logrado algum êxito inicial em casos específicos (v.g. RE 352.940 e RE 449.657, ambos de Relatoria do ministro Carlos Velloso), prevaleceu na jurisprudência do STF o entendimento de que a exceção teria sido recepcionada pela Emenda Constitucional n° 26/2000 que, alterando a CF 6º caput, incluiu a moradia como direito fundamental social.

Na consolidação desse entendimento, foram paradigmáticos o RE 407.688/AC[6] e, posteriormente, o RE 612.360/SP[7] (Tema RG 295). Se, no primeiro julgado, a solução do caso obteve a legitimidade de uma decisão do Plenário do Tribunal, no segundo, a tese adquiriu vinculação formal por preencher o requisito da repercussão geral, cuja observância pode ser garantida pela via da reclamação (CPC 988 §5º II).

Nada obstante e, de forma algo surpreendente, em 2018 a 1ª Turma do STF decidiu, ao julgar o RE 605.709/SP[8], que a tese fixada no Tema RG 295 estaria restrita aos casos em que o fiador tivesse prestado a garantia em contratos de locação residencial, sendo, portanto, inconstitucional a penhora nos casos em que a avença tivesse objeto comercial.

O julgado teve dois fundamentos essenciais, para além do já conhecido argumento da não recepção do dispositivo pela EC n° 26/2000: (a) necessidade de tratamento isonômico de fiador e locatário, no sentido de que o primeiro estaria em desvantagem em relação ao segundo (argumento também defendido pelo Min. Eros Grau no RE 407.688 em seu voto vencido);[9] e (b) moradia como limite à livre iniciativa.

O caso poderia ter tido pouca repercussão; tratou-se, na época, de um julgado de órgão fracionário que destoava da jurisprudência firme do Plenário, num caso que – devido a questões de direito intertemporal – não se submetia ao regime da repercussão geral e, portanto, não teria força vinculativa formal. Afinal, na feliz expressão de Georges Abboud, somente o Plenário é o juiz natural da superação ou manutenção de seus próprios posicionamentos.[10]

Contudo, o RE 605.709 — que, por assim dizer, já representava o posicionamento da maioria da 1ª Turma do Tribunal — encontrou eco em outros julgados, inclusive da 2ª Turma, v.g. AgRgRE 1.228.652 (por unanimidade)[11] e, mais recentemente, AgRgRE 1.304.844 (por maioria) [12] e AgRgRE 1282005 (por unanimidade)[13], além de decisões monocráticas.[14]

Em termos técnicos, poder-se-ia argumentar que ambas as Turmas do STF passaram a realizar uma arguição de nulidade parcial sem redução de texto da Lei 8.009/1990 3º VII, para excluir da exceção a hipótese da locação comercial.

Ao que parecia, o STF estava reinterpretando o Tema RG 295 para redefinir seu alcance e conteúdo, na linha do entendimento plasmado na Rcl 4374[15], e endossado por parcela da doutrina nacional.[16]

Contudo, ainda que nos pareça mais acertada a posição prevalente na tese fixada no Tema RG 1.127, fato é que desde 2018 criou-se uma situação curiosa na qual ambas as Turmas do Tribunal já pareciam compreender de forma bastante clara que o RE 605.709 seria distiguishing em relação ao Tema RG 295, sem, contudo, necessariamente prover reclamações para garanti-lo[17], a exceção de algumas decisões monocráticas.[18]

Outrossim, o entendimento fixado no RE 605.709, compreendido como uma releitura que o STF fez do próprio posicionamento anterior, repercutiu na jurisprudência dos Tribunais dos Estados, gerando expectativas e consolidando pautas de conduta.[19]

Diante disso, é inegável que, ao menos desde 2018, criou-se uma situação em que ambos os posicionamentos – constitucionalidade e inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador em locação comercial — pareciam encontrar eco na jurisprudência do STF, o que significa que uma aplicação retroativa indiscriminada da tese pode induzir a uma violação da confiança que os jurisdicionados depositam no Poder Público.

O princípio subjacente a essas preocupações é o da segurança jurídica, que enuncia a obrigação de garantir a certeza da ordem social, mantendo-a estável, coerente e isonômica.[20] Sem essas características, não há Estado Constitucional de Direito, no qual sempre estão implicadas as expectativas de estabilidade e previsibilidade. A primeira não garante que as decisões dos poderes públicos, uma vez adotadas, não podem ser alteradas de forma arbitrária; a segunda nos assegura que os efeitos jurídicos dos atos normativos serão certos e, portanto, calculáveis.[21]

Nesse contexto, como já de há muito anota Georges Abboud, a modulação de efeitos se define como mecanismo/ferramenta para assegurar a preservação dos direitos fundamentais. Ela deverá ser aplicada quando os efeitos retroativos de uma decisão acarretem lesão aos interesses/direitos dos cidadãos que tinham expectativa (palavra-chave) de terem suas relações jurídicas regulamentadas pelo entendimento superado.[22]

Por essas razões é que propomos, no curto espaço desta coluna, que a aplicação da "nova" tese fixada pelo STF obedeça a tal imperativo, preservando, em sede de embargos de declaração, os efeitos gerados pela sua posição anterior, antes de sua "superação" pelo RE 1.307.334, já que o entendimento atual, se retroagir automaticamente, poderá atingir as relações jurídicas consolidadas sob o anterior, e não só entre os envolvidos no processo, como entre terceiros.

Assim, além de ressalvar os casos já transitados em julgado, entendemos que o Tribunal deve fixar uma data razoável a partir do qual o novo entendimento possa produzir sua eficácia plena de forma a não desconstituir ou prejudicar situações já consolidadas, com fundamento na Lindb 23.

A discussão excede o bizantismo acadêmico: sem segurança jurídica, não há direito.

[3] J. Robert Oppenheimer, "The Open Mind", in: Atom and Void: Essays on Science and Community, Princeton: Princeton University Press, 1989, pp. 76-84 (p. 77).

[4] Nos termos do voto do relator, fixou-se a seguinte tese: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial".

[5] Cf. Lenio Luiz Streck, “A questão da (im)penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação e o julgamento do Recurso Extraordinário 407.688”, in: Lenio Luiz Streck, 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF, 1. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2018, Cap. 4. Destacamos: “Logo, a regra da exceção estabelecida pelo art. 3º, VII, da Lei 8.009/90 não tem nada de inconstitucional. A responsabilidade do fiador não nasce por uma necessidade sua, como se fosse ele a parte mais fraca de uma relação jurídica imperativa. O fiador não é vulnerável na relação jurídica negocial em que prestada a fiança. Não se trata de um “contrato de adesão”. Consequentemente, tem o fiador plena liberdade para sujeitar — se assim quiser — seu patrimônio de modo indistinto à responsabilidade patrimonial por uma dívida que sequer por ele foi contraída.”

[6] STF, Tribunal Pleno, RE 407688/AC, relator ministro Cezar Peluso, j. 8.2.2006, DJ 6.10.2006.

[7] STF, Tribunal Pleno, RE 612360/SP, relatora minista Ellen Gracie, j. 13.8.2010, DJ 3.9.2010.

[8] STF, 1ª T., RE 695709/SP, relator minisro Dias Toffoli, j. 12.6.2018, DJ 18.2.2019.

[9] Cf. "Se o benefício da ressalvado quanto ao fiador em chegar a uma obrigação de situação absurda: pagar prestações devidas da aluguéis, em impenhorabilidade. viesse a ser uma relação de locação, poderíamos locatário que O fito de não cumprisse poupar a para pagar com razão de aquisição de casa própria, gozaria proteção da impenhorabilidade. Gozaria dela mesmo em caso de execução procedida pelo fiador cujo imóvel resultou penhorado por conta do inadimplemento das suas obrigações, dele, locatário. Quer dizer, sou fiador; aquele a quem prestei fiança não paga o aluguel, porque está poupando para pagar a prestação da casa própria, e tem o benefício da impenhorabilidade; benefício da impenhorabilidade." RE 497.688, cit., p.10/48 do acórdão.

[10] Georges Abboud, Processo Constitucional Brasileiro, 5. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, n. 3.6.2., p. 605.

[11] STF, AgRgRE 1.228.652, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 29.11.2019.

[12] STF, AgRgRE 1.304.844, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 22.3.2021.

[13] STF, AgRgRE 1282005, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 29.3.2021.

[14] V.g.STF, decisão monocrática, RE 1256594, rel. Min. Edson Fachin, j. 9.3.2020.

[15] STF, Tribunal Pleno, Rcl 4374/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.04.2013. Destacamos: “Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição”

[16] Cf. Georges Abboud, Processo Constitucional Brasileiro, cit., n. 4.11.7.5.1, p. 1.050; Fábio Lima Quintas e Alcebíades Galvão César Filho. A Reclamação Constitucional como veículo de modificação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, in: Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, 2018, v. 10, n 19, pp. 498-522, jul-dez./2018.

[17] V.g. STF, AgRgRcl 39533; AgRgRcl 38822; EdClrRcl 37807.

[18] V.g. STF, decisão monocrática, Rcl 35372, rel. Min. Marco Aurelio Mello, j. 4.12.2020; STF, decisão monocrática, Rcl 39821, rel. Min. Gilmar Mende, j. 3.4.2020.

[19] Para apenas alguns exemplos: TJDFT 0718167-9120198070000, rel. Des. José Divino, j. 10.2.2021; TJGO, AI 6919064720198090000, rel. Des. Gerson Santana Cintra, j. 16.3.2020; TJMG AI 10702000323486002, rel. Des. Evangelina Castilho Duarte, j. 22.8.2019; TJAM AI 4003436-4720198040000, rel. Des. João de Jesus Abdala Simões, j. 26.9.2019; TJPR AI 0047985-8020198160000, rel. Des. Francisco Carlos Jorge, j. 30.11.2021.

[20] Carlos Blanco de Morais, Justiça constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 2005, t. II, p. 284.

[21] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e teoria da Constituição. 4ª Ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 263.

[22] Georges Abboud e Pedro França Aires. “Os EDivAREsp 600.811/SP contra o dogma da coisa julgada: crítica e proposta de interpretação conforme à Constituição”, in: Revista de Processo. vol. 324, ano 47, p. 17-34. São Paulo: Ed. RT, fevereiro, 2022, p. 31. Ver, também, Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro, 5.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, cap. 3, 3.28.9, p. 875 e, do mesmo autor, Modulação de efeitos como categoria consequencialista: das funções tradicionais às contemporâneas, in: Suprema: Revista de Estudos Constitucionais, Brasília, v. 1, n. 2, p. 363-393, jul./dez. 2021.

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