Território Aduaneiro

Aduaneiro Tributário ou Tributário Aduaneiro?

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

15 de março de 2022, 9h00

Um dos temas mais relevantes do universo aduaneiro é a definição da base de cálculo do imposto de importação: o valor aduaneiro. Na semana passada, esta coluna tratou do tema no artigo da lavra do amigo Leonardo Branco, cuja leitura recomenda-se [1]. Na véspera daquela e desta publicação, acompanhamos o Seminário de Direito Tributário Aduaneiro promovido na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). A definição de valor aduaneiro e os debates do congresso motivaram reflexões sobre os pontos de intersecção entre o Direito Aduaneiro e o Direito Tributário, a sua importância para a boa compreensão das normas jurídicas vigentes (direito positivo) e do seu estudo no campo da dogmática ou da ciência do Direito [2]. E, mais ainda, por entendermos que essas discussões e reflexões podem ser úteis para aqueles que trabalham, cotidianamente, com o tema, estando sujeitos às fiscalizações aduaneiras, cobranças de tributos e multas.

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Um ângulo que devemos mirar nessa reflexão é aquele que põe foco no fenômeno fático regulado por tais normas e esse é o movimento de mercadorias transpondo fronteiras, saindo e entrando de territórios aduaneiros [3]. Em outras palavras, o tráfego internacional de mercadorias [4]. Esse fato é o principal objeto das normas aduaneiras e de estudo pelo Direito Aduaneiro. Exercer o controle aduaneiro desse fluxo internacional de mercadorias é a função essencial da aduana [5].

Nesse sentido, o jurista argentino Ricardo Xavier Basaldúa afirma que a doutrina aduaneira moderna reconhece, de forma geral, que a função de controle sobre o tráfego internacional de mercadorias constitui a função essencial das aduanas. Leciona que outras funções reconhecidas a ela, como arrecadação dos tributos e aplicação de proibições às importações e às exportações, requerem que, previamente, as mercadorias sejam submetidas ao seu controle, e que "la función de control constituye, entonces, una función esencial de las aduanas, a llevarse a cabo em primera instancia, pues sin su ejercicio no cabe la realización o el cumplimiento de las demás funciones de les están encomendadas com relación al tráfico internacional de mercaderías" [6].

Não sem razão, sendo esse o papel principal a ser desempenhado pela aduana, em um ambiente repleto de ameaças e volumes crescentes de tráfego internacional de mercadorias, surgem impostergáveis discussões sobre o controle aduaneiro eficiente e a necessidade de seu aprimoramento. Persegue-se, por isso, continuamente, seja exercido com maior grau de eficiência, inteligência, agilidade, previsibilidade, menor custo, de modo harmonizado e transparente. Surgem, então, procedimentos e soluções como: gestão de riscos aduaneiros, o uso massivo da tecnologia, o controle prévio e a posteriori das operações de comércio exterior, o single window e o AEO (Authorized Economic Operator) normatizados, notadamente, em tratados internacionais e incorporados pelos países [7].

Em nosso ordenamento, a função primeva das aduanas — o controle aduaneiro —, foi elevado ao altiplano constitucional. Encontra-se tutelado no artigo 237 da Lei Maior: "A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda". Sua interpretação e aplicação já foi pilar de julgamentos relevantes pelo Supremo Tribunal Federal, nos Recursos Extraordinários nº 203.954-3 e 204.365-6, em que se discutiu, respectivamente, a possibilidade de restrição à importação de veículos e de pneus usados por ato infralegal. Os ministros da Corte Suprema fizeram a interpretação da disposição reconhecendo, em seu texto, a proteção à função essencial da aduana, qual seja, exercer o controle aduaneiro. Esse o bem jurídico tutelado pelo dispositivo constitucional em tela [8]. Há no mesmo, em seu conteúdo, uma atribuição de competência e uma elevada carga axiológica. Uma proposição normativa de que tudo se deve fazer para viabilizar, concretizar e assegurar o seu exercício. Nesse sentido, podemos pensar em um princípio constitucional do controle aduaneiro. Nessa linha, observamos que a ministra do STJ, Regina Helena Costa, também o elegeu como princípio específico do Direito Aduaneiro, nominando-o princípio da universalidade do controle aduaneiro [9].

No contexto, para avaliar a presença de um princípio, valem as lições de Alexy: "os princípios são normas que determinam que algo seja realizado no mais alto grau que seja efetiva e juridicamente possível. Os princípios são, portanto, comandos de otimização" [10]. Reforça a ideia o fato de que um princípio coexiste com tantos outros do texto constitucional, sendo o conflito entre eles mera colisão, a ser resolvida com um cedendo diante do outro, sem que nenhum deles perca sua validade. É o caso, por exemplo, do controle aduaneiro em face dos princípios da livre iniciativa (artigo 170, caput, CF/88), vedação ao confisco (artigo 150, IV, CF/88), devido processo legal (artigo 5º, LIV, CF/88) e do direito de propriedade (artigo 5º, II, CF/88) [11].

Nesse universo aduaneiro introjeta-se um efeito tributário na medida em que se prevê, em conformidade com a ordem jurídica vigente, que a entrada de produto estrangeiro no território nacional configura hipótese de incidência de tributos (ex: imposto de importação, PIS e Cofins sobre importação). Podemos observar que do fato aduaneiro, por si só, poderia não ocorrer o nascimento de uma obrigação tributária, se assim não estivesse descrito na norma tributária vigente. Entretanto, antecedendo à questão tributária, a entrada de um produto originário de outro país no território nacional exige conhecer sua origem, sua descrição, quem a importa, quem a exporta, seu valor, a origem dos recursos utilizados, se há necessidade de autorizações específicas; sanitárias, do Exército, ou de algum outro órgão estatal, se ameaça à saúde, à economia ou à segurança da sociedade, enfim, é fato afeito a esse espaço do controle exercido pela aduana, espaço do Direito Aduaneiro, de controle e regulação.

Se, em sobreposição a esse fato, a lei elege sua realização a gerador de obrigação tributária, percebemos que se introduz no ambiente aduaneiro o tributo e com ele, claro e necessariamente, os princípios conformadores da atividade tributante. Há, a nosso ver, um fato aduaneiro, mais amplo e complexo, que tem institutos e conceitos próprios, regido, especialmente, por um princípio específico, o do controle aduaneiro, que deve nortear e deverá ser avaliado nas interpretações e aplicações normativas decorrentes. Sem essa premissa e reconhecimento, faltam instrumentos para a boa compreensão, discussão e aplicação das normas aduaneiras e aduaneiras tributárias.

Exemplo disso é a dificuldade de um olhar estritamente tributário captar, em todas as nuances, e cogitar como válida, a possibilidade de, independente de qual for o canal de seleção para conferência aduaneira, haver, em fase de revisão aduaneira, uma reclassificação tarifária de mercadorias [12]. Assim também, a questão da aplicação de multas isoladas e autônomas por falta de informação, ou informações inexatas, porque a conduta do interveniente limita o controle aduaneiro, havendo, ou não, tributo a ser recolhido. É ver, ilustrando, que a descrição inexata de uma mercadoria pode não alterar o tributo a recolher, mas pode mudar o tratamento administrativo, submetendo-a, ou não, a licenciamento prévio ao embarque, ou a medidas de defesa comercial. Outrossim, a própria aplicação dos princípios constitucionais tributários no campo aduaneiro imprescinde dos conceitos próprios dessa seara, como no caso de questionamentos relativos à exigência de tributos em determinados regimes aduaneiros especiais [13].

Uma nota importante e oportuna. Ao reconhecer o universo aduaneiro, no qual se dão os fatos geradores dos tributos, quanto esses, certamente, devem ser respeitados todos os limites à atividade tributária, estabelecidos nos princípios e regras em vigor. Afinal, não se trata de uma união de conjuntos, nem de incorporação, ou fusão, mas de intersecção. Sobre esse campo e as relações entre o Direito Aduaneiro e o Tributário, destacamos o estudo desenvolvido por Rosaldo Trevisan. Nessa tratativa, o autor define o Direito Aduaneiro Tributário como o "segmento do Direito Aduaneiro que estuda os tributos aduaneiros" e como Direito Tributário Aduaneiro o "segmento do Direito Tributário que estuda os tributos niveladores vinculados a operações de comércio exterior, e os tributos devidos em função de operação interna necessária à importação" [14]. Na linha argumentativa que estamos desenvolvendo, considerando o universo aduaneiro no qual se verificam os fatos geradores de todos os tributos, especialmente, sejam eles os tributos aduaneiros (II e IE), ou os niveladores (IPI, PIS, Cofins, ICMS), incluiríamos, todos, no segmento do Direito Aduaneiro Tributário.

Não que o nome mude a essência, mas é importante para que os esforços da prática, do estudo e de aplicação dos temas aduaneiros, notadamente, os que têm relação com a tributação, possam ser melhor compreendidos e analisados. A especialização temática da matéria demanda estudos do Direito Tributário, seus princípios e institutos próprios, assim como e, precipuamente, o aprofundamento nos institutos próprios do Direito Aduaneiro como valoração aduaneira, território aduaneiro, despacho e desembaraço aduaneiro, recinto alfandegado, classificação tarifária, regras de origem, gestão de risco aduaneiro, operador econômico autorizado e, sobretudo, do estudo do controle aduaneiro. Aliás, defini-lo bem é um bom desafio para pesquisas e estudos, porque, hodiernamente, a sua acepção deve também conjugar a facilitação comercial [15]. Mas esse é tema para futuras reflexões.


[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 8ª ed., 1996, p. 1-3.

[3] Para definição de território aduaneiro, recomendamos a leitura do artigo inaugural dessa coluna: https://www.conjur.com.br/2021-nov-23/territorio-aduaneiro-territorio-aduaneiro-bodas-ametista-lei-aduaneira

[4] Sobre a terminologia relativa a bens, produtos ou mercadorias, nosso colega de coluna Rosaldo Trevisan escreveu: https://www.conjur.com.br/2021-nov-30/territorio-aduaneiro-mercadorias-bens-janela-suja-direito-aduaneiro

[5] "Es importante tener presente que la función principalíssima de la Aduana es ejercer el control sobre el tráfico internacional de mercaderías." COTTER, Juan Patrício. Las Infracciones Aduaneras. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2011, p. 5.

[6] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Los principios jurídicos del control aduanero modernizado en el tráfico transfronterizo contemporáneo. Memorias de La Reunión Mundial de Derecho Aduanero – Bruselas. Bogotá/Colombia: International Customs Law Academy/Temis, 2015, p. 5-44. O artigo retrata a palestra ministrada pelo jurista argentino na sede da OMA, em Bruxelas, no ano de 2013, por ocasião da 9ª Reunião Mundial de Direito Aduaneiro.

[7] Tais instrumentos normativos internacionais visam acomodar, estrategicamente, a imperiosidade do controle aduaneiro com a premência da agilidade e da facilitação do comércio legítimo. São exemplos eloquentes do exposto a Convenção de Quioto Revisada, da OMA, e o Acordo sobre a Facilitação do Comércio, da OMC.

[8] "…conclui-se, que a Constituição Federal determina que o controle aduaneiro é essencial à defesa dos interesses nacionais, destacando-se a importância desse bem jurídico tutelado pelo Direito Aduaneiro, sendo determinante para análise de todas as normas infraconstitucionais e operações de comércio exterior, por expressa determinação constitucional." FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro. São Paulo: Intelecto, 2018, p. 19.

[9] COSTA, Regina Helena, "Notas sobre a existência de um Direito Aduaneiro." in FREITAS, Vladimir Passos, coord. Importação e Exportação no Direito Brasileiro. São Paulo, RT, 2004, p. 15-37. Sua doutrina foi acolhida por MOURA, Caio Roberto Souto. Poder de Polícia Aduaneira e os procedimentos especiais de controle aduaneiro. São Paulo: Fiscosft, 2012, p. 93-101.

[10] ALEXY, Robert. Sobre a estrutura dos princípios jurídicos. Revista Internacional de Direito Tributário, v. 3, p. 156-167, p. 156-167. jan./jun. 2005. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2004, 6ª ed., p. 350-356.

[11] ALEXY, Robert. Sobre a estrutura dos princípios jurídicos. Revista Internacional de Direito Tributário, v. 3, p. 156-167, p. 156-167. jan./jun. 2005, p. 158-9. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1.145-1.146

[13] Esse ponto de intersecção e a defesa dos limites de tributação no âmbito aduaneiro foram objeto de artigo que escrevemos sobre indevida cobrança do ICMS sobre as admissões temporárias para utilização econômica: Admissão Temporária para Utilização Econômica e a indevida cobrança de ICMSimportação. TREVISAN, Rosaldo, coord. Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex Editora, 2015, p. 343-397.

[14] TREVISAN, Rosaldo. Direito Aduaneiro e Direito Tributário — Distinções Básicas. In Temas Atuais de Direito Aduaneiro. São Paulo: Lex Editora, 2008, p. 11- 55.

[15] Esse ponto não passou desapercebido de Juan Patrício Cotter que registra: "se há comenzado a entender la Aduana como facilitadora del comercio internacional. Las Aduanas deben entonces ejercer um control riguroso de las fronteras, que la vez demore minimamente los embarques, visto que la demora hace perder competividade. Resulta então que deve haver um justo equilíbrio entre el control riguroso que deve primar em nuestras fronteras y la facilitación del comercio internacional". Obr. cit. Las Infracciones Aduaneras. p. 5

Autores

  • é sócio-fundador da HLL Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, multiplicador do Programa OEA da RFB, presidente da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead), fundador e ex-presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, acadêmico da International Customs Law Academy (Icla) e professor de pós-graduação na PUC-MG, Enap, IBDT, Ibmec e Cedin.

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