Opinião

Feminismo de verdade? As redes sociais e o reducionismo do pensamento crítico

Autores

  • Fernanda Pacheco Amorim

    é advogada doutoranda em Direito na UFPR mestra em Ciências Jurídicas na Univali pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai te amo sempre" feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

  • Fernanda Estanislau

    é advogada assessora parlamentar professora universitária coordenadora de Igualdade Racial da Academia Cearense de Direito (ACED) mestra em Direito Constitucional (UFC) e autora dos livros "Direito Antirracista" e "Pai te amo sempre".

15 de março de 2022, 21h27

"A nós não cabe valorizar a História. A nós nos cabe ver o continuum dessa História" [1]

Beatriz Nascimento [2] sempre batia na tecla do continuum, por acreditar que, apesar de todos os avanços que podemos construir enquanto sociedade, esses avanços só serão reais se partirem do reconhecimento dos fatos concretos — presentes e passados.

Enquanto atendemos a inúmeros casos de violência sofridas por mulheres (Fernanda Estanislau atendendo especialmente mulheres negras), também nos deparamos, em redes sociais, com discursos apaixonados e fervorosos que se autointitulam feministas, mas não só: ditam as regras do que é ser feminista ou até mesmo antirracista. Qualquer tuíte em falso pode te jogar ao vão moralista que irá invalidar seu posicionamento, pelo pressuposto de não ser feminista ou antirracista o suficiente — de acordo com as tais regras.

E aí qualquer uma corre o risco de ser "cancelada" nas redes sociais por não concordar com o discurso da massa, que por vezes é um discurso com uma fundamentação teórica deturpada e inconsistente e, muitas vezes, neoliberal maquiado de "novo feminismo" [3].

Essas regras, porém, você não encontra na realidade ou em qualquer fonte intelectual confiável, que por natureza conterão a complexidade inata a todas as relações sociais e humanas. As violências que chegam na prática não vêm aparadas pelos ditames desse feminismo higiênico e perfeito das redes sociais, necessita na verdade de esforços e compreensões realistas que demandam dos juristas a aplicação do bom e velho sopesamento. Sopesar até mesmo os próprios princípios, porque a realidade não é perfeita, ela te trará inúmeras barreiras e às vezes precisamos soltar um pouco a mão da blogueira feminista para salvar a vida de uma mulher.

A mulher negra que mora na periferia sente na pele o racismo diário, mas não é a favor da descriminalização do aborto, e escolhemos nos comunicar a partir da realidade dessa pessoa, porque se não há deslocamentos da escuta para o local de quem fala, não se ouve nada além do ressoar do próprio ego.

Acontece que, enquanto temos inúmeras intelectuais brilhantes trabalhando para superarmos essa realidade tão opressora, parecemos entrar numa bolha na qual não mais importa a realidade, mas, sim, a demonstração do melhor raciocínio ou a invenção da melhor e mais nova teoria.

Falta lembrar que temos teorias e não são poucas; falta lembrar que o diálogo entre elas precisa ser feito. Não é porque determinada tese não combina perfeitamente com minha linha de raciocínio que ela precisa ser inteiramente descartada para se fundar uma nova. E, por vezes esquecemos, enquanto acadêmicas, do mais importante: o dia a dia de mulheres plurais que possuem preocupações práticas mais urgentes: com quantas teorias se compra um almoço?

Este texto não pretende elencar hierarquias entre os diferentes tipos de ativismo e militância, mas, sim, demonstrar que a intelectualidade e a realidade precisam caminhar juntas, indissociavelmente. Porém o ego academicista e a busca desenfreada por novas teorias podem trazer rupturas de pensamentos que não interessam à realidade, mas apenas à constante validação de intelectualidade de seus autores. Da mesma forma, o discurso de redes sociais e o feminismo militante, quando descolado da teoria, pode acabar reproduzindo opressões e disseminando falas inconsistentes que, por vezes, acabam atuando na contramão daquilo que se defende.

Dessa forma, passamos a ter crescentes exponenciais de correntes e novas escolas de pensamentos feministas que parecem partir genuinamente de um interesse na superação de uma estrutura social opressora, mas a quem servirá uma inflação teórica que não busca melhorar teorias anteriores, mas descartá-las?

A reprodução desse pensamento nas redes sociais parece, ainda, reproduzir — superficialmente — lógica muito similar. A maior parte das discussões se constrói com base em monólogos distintos que defendem suas ideias centrais argumentativas, mas não há disposição de nenhuma das partes em entender a insatisfação que os une para construir um caminho em comum, que possa flexibilizar para chegar em consensos.

Quando estudamos Teoria da Argumentação Jurídica tentamos justamente identificar o dissenso em comum para construir a argumentação a partir disso. Entendendo que uma argumentação apenas será válida quando se comunica, e só há comunicação com escuta contextualizada (social e culturalmente) de pontos de vista distintos dos seus.

Esse reducionismo inflexível não compreende aprimoramento ou continuidades, mas concordamos com Thomas Khun que as falhas de cada teoria ou pensamento são justamente o que contribui para a produção do conhecimento. Essas falhas, porém, representam um caminho importante e até mesmo histórico da trajetória que nos forja, e que forja esse conhecimento. A constante ruptura pode contribuir para que percamos importantes referenciais e parâmetros, e para que continuemos achando que é possível produzir conhecimento sem dialogar e se conectar com momentos e ideias distintas.

Não podemos perpetuar a ideia de que os estudos sociais críticos não são científicos, e qualquer redução simplista desse tipo de pensamento traz justamente esse subtexto. Quando falamos em ciência, falamos em método de investigação, falamos em falseamento, falamos em contraditórios inúmeros — é uma armadilha acreditar que ao pensarmos feminismo e antirracismo deveremos seguir cartilha dogmática de regras ou mesmo ditames morais. Apenas reconstruiremos nossa sociedade com boa técnica, honestidade intelectual e escuta ativa, entendendo que toda nova ideia parte de uma outra ideia.

E, da mesma maneira, não chegaremos a lugar algum com uma luta que não dialoga com a realidade. Academia e ciência possuem o dever de estudar/pesquisar/construir conhecimentos que conversem com o cotidiano, ainda mais quando falamos de uma área tão específica quanto feminismos, antirracismo e direitos humanos.

O que estamos propondo aqui é construção de diálogo: entre as diversas teorias existentes, entre academia e militância, entre as diversas militâncias para uma escuta ativa com o objetivo de compreender as dores e necessidades daquelas e daqueles mais vulneráveis, que, ao fim e ao cabo, são as pessoas pelas quais mais lutamos.

Não podemos construir nada sólido e diferente se nos basearmos em estruturas construídas pela cultura patriarcal, racista e colonizadora. Discursos hegemônicos, totalizantes, excludentes e revestidos com um verniz de verdades universais são muito característicos do patriarcado e, acreditamos, que não é dessa forma que se faz ciência. Ainda mais uma ciência feminista.

 

Referências bibliográficas
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade. Coordenação Djamila Ribeiro. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de Bhuvi Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2019.

 


[1] Poema "20 de Novembro", de Beatriz Nascimento. Jornal do MNU, n. 17, set-nov. de 1989, p. 12.

[2] Historiadora, professora, poeta e ativista (1942-1995).

[3] Conversamos um pouco sobre isso num episódio do podcast Mulherão da Porra chamado Meu corpo, minhas regras, que está disponível nos maiores agregadores.

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    é advogada, doutoranda em Direito na UFPR, mestra em Ciências Jurídicas na Univali, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst, autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai, te amo sempre", feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

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    é advogada, assessora parlamentar, professora universitária, coordenadora de Igualdade Racial da Academia Cearense de Direito (ACED), mestra em Direito Constitucional (UFC) e autora dos livros "Direito Antirracista" e "Pai, te amo sempre".

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