Opinião

Colapso das Constituições do Brasil: a história como tragédia ou como farsa

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14 de março de 2022, 11h12

O primeiro passo para se compreender as vicissitudes pelas quais passaram as Constituições brasileiras é conhecer a verdadeira história delas. Não se mostra aceitável que, passados mais de 200 anos desde a vigência da primeira Constituição — diga-se, alienígena —, datada 21 de abril de 1821, La Pepa, que passou a vigorar no Brasil-Colônia por decreto real de D. João 6º, a nação ainda não tenha uma percepção clara acerca dos fatos e circunstâncias que determinaram a vida e a morte de suas leis supremas.

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Não há sequer consenso quanto ao número exato de Cartas Magnas que vigoraram entre nós. Exatamente por isso é que a obra O Colapso das Constituições do Brasil: uma reflexão pela democracia, da lavra do professor Manoel Carlos de Almeida Neto, possui o mérito de revelar, com ineditismo acadêmico e rigor científico, quais foram e no que consistiram os quatorze textos constitucionais que vigoraram no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais, passando pelo Império e as distintas fases da República.

A grande maioria dos doutrinadores, e mesmo instituições de Estado como o Senado e a Câmara dos Deputados, converge em reconhecer a vigência, entre nós, de apenas sete Constituições, desconsiderando as evidências de que estivemos submetidos a mais outros sete diplomas normativos de hierarquia constitucional, situados no topo do ordenamento jurídico, responsáveis, cada qual a seu tempo, pela instauração de um novo arranjo político-institucional, por obra de um poder constituinte originário, de fato ou de direito.

Lastreado em uma releitura dos clássicos da Teoria Geral do Estado, particularmente enriquecida com as percepções de Agamben, Arendt, Bobbio, Bodin, Constant, Engels, Esmein, Heller, Hobbes, Kelsen, Lassalle, Locke, Malberg, Maquiavel, Marx, Mill, Montesquieu, Rousseau, Schmitt, Sieyès, Tocqueville, dentre outros pensadores de escol, o autor da presente obra percorre extensamente os últimos dois séculos de nossa cronologia histórica para demonstrar que não é possível ignorar a insopitável propensão dos brasileiros — quiçá atávica — em alterar, de tempos em tempos, a realidade política, econômica e social por meio de uma — não raro heterodoxa — atividade constituinte.

O resultado dessa verdadeira compulsão legiferante produziu mais sete textos constitucionais, além dos sete oficialmente reconhecidos, possivelmente resultante, nas palavras do autor, de um "inconformismo constitucional permanente". Trata-se, para ele, de um fenômeno sociológico que corresponde a um "sentimento atemporal de aversão a certa Constituição escrita promulgada ou outorgada".

Complementa a ideia assentando que tal inconformismo levou a "movimentos invariáveis de fomento constitucional — legítimos ou ilegítimos — em busca de concreta alteração, supressão ou revogação da Lei Fundamental, no todo ou em parte relevante, em razão das diferentes percepções do que seja uma Constituição".

A partir dessa compreensão, explica, com invulgar didatismo, que, além das Cartas Políticas consensualmente reconhecidas pelos estudiosos, a saber, as de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988, outros textos, dotados de supremacia, porquanto situados no ápice da pirâmide normativa, vigoraram em território nacional, a exemplo da Constituição de Cádiz, espanhola, jurada e publicada no Brasil em 21 de abril de 1821, mas que vigorou apenas até o dia subsequente. Não obstante a sua efemeridade, pondera que ela "integra a história constitucional do Brasil e nos ajuda a compreendê-la".

Inclui, ademais, o Estatuto Constitucional de Emergência, de 15 de novembro de 1889, que colocou fim ao Império, proclamou a República e governou a nação por um ano e três meses. Também arrola a Carta Constitucional Provisória, de 11 de novembro de 1930, que comandou o país por três anos e oito meses.

Abarca, ainda, a Carta Institucional, de 9 de abril de 1964, baixada por um triunvirato militar, bem assim a Carta Institucional 2, de 27 de outubro de 1965, e a Carta Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968, todas dotadas de preâmbulos, nos quais se esclarece que foram outorgadas em nome de um autoproclamado "Poder Constituinte originário da Revolução Vitoriosa" para fundar uma nova ordem político-institucional.

Por fim, faz menção à Emenda Constitucional 1, de 30 de outubro de 1969, em verdade uma nova Constituição, a qual, na prática, revogou e reescreveu a totalidade dos dispositivos da Carta de 1967, imposta pelos detentores do poder ao Congresso Nacional, cuja aprovação se deu dentro do prazo estipulado pelo Ato Institucional 4/1966, marcada, convém recordar, por um episódio de triste memória: a paralisação do relógio do plenário da Assembleia Constituinte para cumprir o referido limite temporal, conforme revelado no capítulo 15 desta obra.

Analisa, também, com característica proficiência, 21 Leis Constitucionais, 17 Atos Institucionais, 9 Atos do Comando Supremo da Revolução, 105 Atos Complementares e outros decretos de exceção que integraram a nossa — nem sempre recomendável — crônica constituinte.

Ao defender a existência de quatorze textos constitucionais no Brasil, promulgados ou outorgados, o autor não está isolado. Ao contrário, sua constatação encontra amparo na opinião de renomados constitucionalistas, como Afonso Arinos, Aurelino Leal, Alexandre de Moraes, Paulo Bonavides, Celso Ribeiro Bastos, Ferreira Filho, Pimenta Bueno, Ruy Barbosa, José Afonso da Silva, Nelson Saldanha, Victor Nunes Leal, Gilmar Mendes, Fábio Konder Comparato, entre outros, que reconhecem a força normativa superior de certos atos normativos, situados no topo do ordenamento legal pátrio, incompreensivelmente excluídos do cômputo dos diplomas legais dotados de status constitucional.

Essa realidade, ainda carecedora de uma explanação mais abrangente por parte da literatura especializada, é agora decifrada pelo autor no presente livro, cujo maior mérito é o de "retirar os esqueletos" de nosso "armário constitucional", ao revelar os bastidores da gênese das várias "constituições" brasileiras, fazendo-o por meio de uma linguagem simples e despretensiosa, própria daqueles que conhecem em profundidade o assunto do qual tratam.

Outro aspecto relevantíssimo, enfrentado com invulgar originalidade, é o permanente conflito entre as constituições escritas versus as não escritas, mediante o qual busca explicar o nascimento e a morte de nossas Cartas Políticas, quer as legitimamente promulgadas, quer as impostas pela força.

Nesse sentido, identifica três movimentos que coincidem com os “fatores reais do poder”, quais sejam: o progressismo, "que move a sociedade para frente, em direção à criação e recuperação de direitos civis e políticos fundamentais, inclusive de minorias, para transformação multicultural e científica e elevação do seu padrão civilizatório"; o conservadorismo, "que busca a preservação de direitos adquiridos da ordem social, moral e nacionalista, da liberdade política e econômica e da estabilidade das instituições tradicionais como a propriedade, a igreja e a família"; e, finalmente o autoritarismo, "camuflado em roupagem geralmente conservadora e que, brandindo bandeiras do moralismo, segurança e ordem públicas, assalta a soberania popular, reprime os direitos civis e políticos fundamentais, subordina os poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo e, por essas razões, propõe verdadeiro retrocesso civilizatório".

A partir daí conclui que a atual "Constituição cidadã", assim batizada por Ulysses Guimarães — a qual, a rigor, encontra expressão em um prosaico maço de folhas de papel —, precisa conviver com o constante risco de ser rasgada pelos fatores reais do poder, que compõem "a nossa verdadeira Constituição material paralela, real e não escrita, os quais ressurgem de maneira cíclica, sob o mesmo viés caótico e autoritário, para retroceder nos direitos e garantias fundamentais, enfraquecer e demolir as instituições do Estado Democrático de Direito".

Isso porque, segundo assevera, "são alarmantes os atuais movimentos de grupos organizados da sociedade em campanha aberta pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, em busca de uma hegemonia do Poder Executivo, na mesma linha ideológica de Carl Schmitt, que, em 1931, foi a base de sustentação teórica do Estado totalitário nazista".

Como se vê, este último trabalho de Manoel Carlos de Almeida Neto, fruto de uma longa e proveitosa pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, revela não apenas os dotes acadêmicos de um estudioso do Direito, mas também — e sobretudo — como o nosso passado ainda permanece envolto em densas e escuras nuvens, cumprindo desvendá-lo, sempre e cada vez mais, para que não se materialize a advertência do filósofo alemão Karl Marx, lançada em seu famoso 18 Brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual "todos os fatos e personagens de grande importância histórica ocorrem, por assim dizer, duas vezes […]: a primeira como tragédia, a segunda como farsa".

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