Opinião

A proteção do patrimônio cultural e a guerra na Ucrânia

Autor

  • Inês Virgínia Soares

    é desembargadora no TRF-3 doutora em Direito pela PUC-SP pós-doutora em Estudos da Violência pela USP autora de publicações nas áreas de patrimônio cultural e direitos humanos e colíder do grupo de pesquisa Arqueologia da Resistência.

14 de março de 2022, 21h16

No último dia 3 de março, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), baseada na adoção da Resolução sobre Agressão contra a Ucrânia pela Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), divulgou declaração na qual registra sua preocupação com a vida das pessoas afetadas pelo ataque violento da Rússia, não somente com sua integridade física e seu direito de permanecerem vivas, mas também com os danos aos valores e bens culturais, essenciais para viver com dignidade.

A manifestação sobre a triste situação ucraniana era esperada desde o primeiro instante da invasão do território pela Rússia, já que o ataque permeia várias esferas da atuação institucional da Unesco — educação, cultura, patrimônio cultural, meio ambiente e informação. Há, por consequência, uma expectativa da comunidade internacional que a instituição atue de maneira concertada com outros organismos e países para evitar danos irreversíveis ao rico patrimônio ucraniano.

É que as relações  cada vez mais complexas, globalizadas e voltadas à busca da efetiva do direito ao desenvolvimento e à valorização da diversidade cultural — têm exigido que países e instituições atuem em cooperação, abraçando uma concepção ampla de patrimônio cultural, que vai muito além dos sítios e monumentos excepcionais, englobando também aqueles bens importantes para a comunidade, de acordo com seus valores referenciais, assim como as manifestações culturais intangíveis  as tradições orais, a música, o folclore, as festividades e os falares.

Vale lembrar que a Unesco, criada em 1946 com a finalidade de defender o valor do patrimônio como fator chave da paz e do entendimento entre os povos. A devastação das cidades, com a perda de bens únicos e insubstituíveis, foi determinante para o desenho e implantação de normas e medidas que resguardassem os bens representativos de identidade da comunidade para a fruição pelas próximas gerações.

Nessas mais de sete décadas de existência, dentre os documentos produzidos pela Unesco, destacam-se: a Convenção para Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, Haia, Unesco (1954); a Convenção sobre as Medidas a serem adotadas para proibir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais, Paris, Unesco (1970); a Convenção para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural Mundial, Unesco (1972); a Recomendação relativa ao Intercâmbio Internacional de Bens Culturais, Nairóbi, Unesco (1976); a Declaração sobre as Responsabilidades das Gerações Atuais para com as Gerações Futuras, Paris, Unesco (1997); a Convenção Sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, Paris, Unesco (2001); a Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, Paris, Unesco (2003); a Carta sobre a Preservação do Patrimônio Digital, Unesco (2003); a Convenção sobre a Diversidade Cultural, Unesco (2005).

Neste rol de Convenções, Recomendações e Cartas da Unesco, é importante destacar a institucionalização da atenção para com o patrimônio imaterial. As normas editadas no início dos anos 2000 lançaram luzes para patrimônios distintos do tradicionalmente protegido  monumentos e edificações de valor histórico e arquitetônico. Estes documentos incorporam os debates travados pelos países do hemisfério sul, que solicitaram, no começo dos anos 1980, a realização de estudos que apontassem formas jurídicas de proteção às manifestações da cultura tradicional e popular e aos bens imateriais. Como resultado, destacam-se duas iniciativas da Unesco: a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989; e a criação de uma nova distinção internacional intitulada Obra-prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, em 1997.

As normativas da Unesco, conhecidas como soft law, nem sempre são incorporadas no sistema jurídico dos países, embora tenham um grande potencial de persuasão e possam respaldar e influenciar outros organismos do mosaico protetivo dos direitos humanos, podendo ser observadas pelas comunidades internacional e regional e também pelos governos locais. Nesta perspectiva, vale fazer um destaque, na última década, para as Resoluções do Conselho de Segurança da ONU, a de número 2199 e, especialmente, a de número 2.347, que têm forte base nas concepções estampadas nos fóruns e documentos da Unesco. Embora seja relevante destacar que o Conselho de Segurança somente intervém em concreto, as resoluções citadas são consideradas um marco para o sistema protetivo do patrimônio cultural, por consolidarem, formalmente, o reconhecimento de que a defesa dos valores e bens culturais, por ser essencial à segurança e à paz, está dentro de suas atribuições.

A invasão da Ucrânia exigiu a invocação do primeiro documento da Unesco: a Convenção de Haia para a Proteção dos Bens Culturais em caso de Conflito Armado, de 1954 e seus dois protocolos (1954 e 1999). Uma das medidas previstas nesta Convenção (artigo 16) é muito simples: a marcação dos monumentos-chave do país com o emblema da Convenção  o Blue Shield (símbolo Escudo Azul), para que não sejam alvejados, voluntária ou acidentalmente durante os ataques. Depois da invasão, a Unesco tem corrido contra o tempo para a inserção do Escudo Azul, priorizando os bens inscritos na lista de Patrimônio da Humanidade. Este trabalho tem recebido a colaboração de instituições que mapeiam, por satélites, os patrimônios que estão sob maior risco e cuja a marcação é premente.

O respeito do país agressor aos bens e sítios com o Blue Shield é uma demonstração de adequação a parâmetros mínimos de respeito à vida. Em contraposição, a adoção da estratégia de aniquilar a coletividade por meio da destruição de bens, locais e símbolos culturalmente relevantes para a humanidade e de valor identitário local, mesmo num contexto de guerra, é ato delituoso.

A Ucrânia tem sete sítios declarados como Patrimônio Mundial, três cidades  Lviv, Odessa e Kharkiv  membros da Rede de Cidades Criativas da UNESCO, documentos e arquivos registrados como Memória do Mundo da Unesco e Lugares de Memória que lembram a tragédia do Holocausto e reparam simbolicamente as vítimas, com destaque para o Memorial do Holocausto Babyn Yar, um ambicioso e moderno projeto arquitetônico, erguido numa área de 132 hectares, onde morreram entre 70 a 100 mil pessoas e ocorreu o fuzilamento de 33 mil judeus nos dias 29 e 30 de setembro de 1941, um dos maiores massacres perpetrados por tropas alemãs durante a Segunda Guerra.

Lviv também tem o título de cidade criativa da literatura desde 2015. É uma cidade de leitores e escritores, com metade da população registrada em uma das 174 bibliotecas da cidade. Em 2019, Odessa também ganhou o título de cidade criativa da literatura e consta no site da Unesco que no ano que ganhou o título, o setor cultural contribuiu para atrair cerca de 1,5 milhão de turistas, trazendo benefícios econômicos e sociais para a região. Kharkiv ganhou no ano passado, 2021, o título de Cidade criativa para Música. O reconhecimento veio por se tratar de uma cidade que valoriza a herança multicultural e se destacar pelas tradições musicais folclóricas. Além disso, a cidade tem a Prime Orchestra, pioneira na combinação de ritmos musicais modernos e sinfonia clássica, que se apresenta pelo mundo divulgando a música ucraniana.

2009 foi eleito pela Unesco como o ano de Maria Primachenko, a mais renomada artista plástica ucraniana do século XX, com pinturas de figuras míticas, folclóricas e também outras, fruto de sua imaginação, sempre com cores fortes. Ela viveu 88 anos, de 1908 a 1997. Em 1970, passou a ser conhecida como "Artista do Povo da Ucrânia".

Nos primeiros dias de invasão, a Rússia destruiu 25 obras de Maria Primachenko, que estavam no Ivankiv Museum, perda lamentada mundialmente. No entanto, o perigo de desaparecimento desse rico patrimônio é latente, já que  outras 650 obras da artista estão no National Museum of Ukrainian Folk Applied Art em Kiev.

A guerra na Ucrânia, com notícias de mortes, sofrimento e estupros coletivos de mulheres e crianças e com imagens impressionantes e nefastas de desespero e destruição, reforça a percepção sobre a necessidade urgente de aprimoramento protetivo dos direitos, valores e bens necessários ao futuro e ao projeto coletivo de vida numa perspectiva intra e intergeracional. Nas palavras da Diretora-geral da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura, Andrey Azoulay, quando da aprovação da citada Resolução da Assembleia Geral da ONU contra a Rússia: "devemos salvaguardar este patrimônio cultural [ucraniano], como testemunho do passado mas também como vetor de paz para o futuro, que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar para as gerações futuras". 

Nessa ótica, além de toda ajuda humanitária, da atuação diplomática e da adoção de medidas de retaliação ao governo e empresas russas, faz todo o sentido, também, o envolvimento de instituições e países nas abordagens e iniciativas que, de algum modo, impeçam ou desestimulem a estratégia de ataque a patrimônios e sítios culturais na guerra em curso.

Para alguns, pode soar desarrazoado se falar em priorização da proteção de bens culturais nesse quadro de imenso sofrimento do povo ucraniano. Porém, no cenário da Segunda Guerra, o mesmo dilema foi levantado em 1944, quando do anúncio da missão dos "Monuments Men", uma unidade das Forças Armadas americana, composta por cerca de 350 homens de mulheres, com conhecimento sobre arte e que tinham a missão de localizar pinturas, esculturas e outros tesouros saqueados pelos nazistas. A resposta dada por George Stout, líder dos Monuments Men, foi: "e se nós vencermos a guerra e perdermos os últimos 500 anos da nossa história cultural?".

A pergunta no condicional (e se…) não deixa de ser um alento, por refutar a violência e acreditar em dias de paz.

E se de repente, na Ucrânia, a realidade fosse suspensa e as ruas fossem ocupadas com imensos outdoors com reproduções das obras de Maria Prymachenko, aquelas 25 já destruídas pela Rússia? E se, nas praças as orquestras, bandas e artistas de Kharkiv, a cidade da música, não fossem uma legião de desesperados, refugiados, feridos e estupradas, começassem a tocar e cantar o trecho da canção Fantasia de Chico Buarque:

"E se, de repente
A gente não sentisse
A dor que a gente finge
E sente
Se de repente
A gente distraísse
O ferro do suplício
Ao som de uma canção
Então, eu te convidaria
Pra uma fantasia
Do meu violão
Canta, canta uma esperança
Canta, canta uma alegria
Canta mais."

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    é desembargadora no TRF-3, doutora em Direito pela PUC-SP, pós-doutora em Estudos da Violência pela USP, autora de publicações nas áreas de Patrimônio Cultural e Direitos Humanos e colíder do Grupo de Pesquisa Arqueologia da Resistência.

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