Opinião

Alienação fiduciária em garantia prestada por terceiros e sua classificação para fins

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12 de março de 2022, 13h24

As relações entre empresários sempre são objetos de disputas acirradas, afinal são negócios de risco, ou seja, aqueles os quais não se sabe se o resultado almejado é aquele que será atingido. Contudo, em algumas espécies contratuais, foram criados institutos com o propósito de que o crédito dispendido pelo credor esteja protegido, e um exemplo desses é a alienação fiduciária em garantia.

Este instituto pode ser definido, através das palavras de Flávio Tartuce, como "um negócio jurídico que traz como conteúdo um direito real de garantia sobre coisa própria. Isso porque o devedor fiduciante aliena o bem adquirido a um terceiro, o credor fiduciário, que paga o preço ao alienante originário. Constata-se que o credor fiduciário é o proprietário da coisa, tendo, ainda, um direito real sobre a coisa que lhe é própria. Como pagamento de todos os valores devidos, o devedor fiduciante adquire a propriedade, o que traz a conclusão de que a propriedade do credor fiduciário é resolúvel".

Contudo, às vezes, nem sempre uma garantia é suficiente para que o credor tenha certeza de que vá receber seu crédito, e isso pode acontecer quando declarada a falência/recuperação judicial da pessoa, e, com ela, é feito o plano de recuperação judicial, em que nele consta a ordem de pagamento dos credores. Todavia, a citada alienação fiduciária em garantia é uma das formas de proteção ao crédito em se tratando de recuperação judicial, isso porque esse crédito é, por lei, extraconcursal.

Mas, e se esse crédito for oferecido por um terceiro? Subsiste a extraconcursalidade ou terá outra classificação? Essa é uma questão que merece ser debatida em razão dos seus efeitos práticos.

Inicialmente, o artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, a Lei de Recuperações e Falências, dispõe quais são os créditos que se encontram submetidos à recuperação judicial, sendo que seu parágrafo 3° expõe alguns os quais não se encontram sujeitos à RJ, cuja redação se encontra a seguir:

"Artigo 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

§3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §4º do artigo 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial".

Como fundamento para corroborar a natureza extraconcursal da alienação fiduciária em garantia ainda que prestada por terceiro, entende-se que, na recuperação judicial, permanece tal natureza do crédito ao utilizando-se de uma interpretação sistemática e, também, gramatical da lei.

A natureza do instituto é que, como visto no conceito de Tartuce, o bem pertence ao patrimônio do credor, somente retornando ao devedor fiduciário quando no pagamento dos valores devidos.

Logo, considerando que o bem alienado fiduciariamente iria ser transmitido à recuperanda, pode-se sustentar a tese de sua natureza extraconcursal, pois é como se estivesse dando um bem que a ela pertencesse.

Não obstante isso, deve ser salientado que a norma, tendo vista o que fora agora dito, não faz menção alguma à titularidade do bem dado em garantia, o que, portanto, para ser considerado extraconcursal, têm-se que sua titularidade é irrelevante.

Atualmente, essa é a vertente adotada pelo STJ, como se depreende das ementas abaixo colacionadas:

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CREDOR TITULAR DE PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA. GARANTIA PRESTADA POR TERCEIRO. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 49, §3º, DA LEI N. 11.101/05. EXTENSÃO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.

1) Debate-se nos autos a necessidade de o bem imóvel objeto de propriedade fiduciária ser originalmente vinculado ao patrimônio da recuperanda para fins de afastamento do crédito por ele garantido dos efeitos da recuperação judicial da empresa.

2) Na propriedade fiduciária, cria-se um patrimônio destacado e exclusivamente destinado à realização da finalidade de sua constituição, deslocando-se o cerne do instituto dos interesses dos sujeitos envolvidos para o escopo do contrato.

3) O afastamento dos créditos dos titulares de propriedade fiduciária dos efeitos da recuperação, orientado por esse movimento que tutela a finalidade de sua constituição, independe da identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o bem imóvel ou com o próprio recuperando, simplifica os sistema de garantia e estabelece prevalência concreta da propriedade fiduciária e das condições contratuais originárias, nos termos expressos pelo artigo49, §3º, da Lei nº 11.101/05.

4) Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 1549529/SP, relator ministro MARCO AURELIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 28/10/2016)

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO À RELAÇÃO DE CREDORES. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CRÉDITOS GARANTIDOS POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BEM IMÓVEL DE TERCEIROS. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO AFASTA A INCIDÊNCIA DA REGRA DO ARTIGO 49, §3º, DA LFRE.

1) Incidente de impugnação à relação de credores distribuído em 24/1/2019. Recurso especial interposto em 15/4/2020. Autos conclusos ao gabinete da relatora em 3/3/2021.

2) O propósito recursal, além de verificar eventual negativa de prestação jurisdicional, consiste em definir 1) se o crédito vinculado à garantia prestada por terceiros se submete aos efeitos da recuperação judicial da devedora bem como 2) se, para não sujeição de créditos garantidos por cessão fiduciária, é necessária a inequívoca identificação do objeto da garantia.

3) Devidamente analisadas e discutidas as questões deduzidas pelas partes, não há que se cogitar de negativa de prestação jurisdicional, ainda que o resultado do julgamento não satisfaça os interesses da recorrente.

4) O afastamento dos créditos de titulares de posição de proprietário fiduciário dos efeitos da recuperação judicial da devedora independe da identificação pessoal do fiduciante ou do fiduciário com o bem imóvel ofertado em garantia ou com a própria recuperanda. Precedente específico da Terceira Turma.

RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

(REsp 1938706/SP, relatora ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/09/2021, DJe 16/09/2021)".

A contrario sensu, os defensores da tese de que os bens dados em garantia oferecidos por terceiro pertencem à classe quirografária sustentam com base na falta da vinculação do bem dado em garantia ao patrimônio da recuperanda porquanto é fato que apenas o patrimônio do recuperando é quem deve adimplir por suas dívidas. Contudo, o bem dado em garantia, em hipótese alguma, integrou o patrimônio daquela.

Assim, precisas são as palavras do professor Ivo Waissberg, pois: "faltando vinculação do bem de terceiro com o patrimônio do devedor, lembrando que o bem do terceiro garantidor não integra, em hipótese alguma, o patrimônio do devedor, assim como com os interesses dos credores, não se pode admitir a classificação do crédito como com garantia real, sendo, perante o devedor, crédito comum, quirografário".

Logo, pela ausência de vínculo entre o bem e o devedor fiduciário, esse crédito, por não integrar seu patrimônio, não poderá ser admitido como extraconcursal, e sim como quirografário.

Nesse sentido, vários são julgados quanto o assunto, dentre os quais:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. CRÉDITO COM GARANTIA REAL PRESTADA POR TERCEIRO. PRETENSÃO DA AGRAVANTE DE CLASSIFICAÇÃO DO CRÉDITO COMO CRÉDITO COM GARANTIA REAL. INVIABILIDADE. CRÉDITO QUIROGRAFÁRIO.

1) No caso dos autos, cinge-se a controvérsia à classificação de crédito garantido com hipoteca prestada por terceiro, pretendendo a parte agravante que o seu crédito passe a constar na classe de credores com garantia real.

2) Com efeito, a garantia objeto do crédito deve ser de propriedade da devedora para fins de sua classificação como garantia real.

3)  Nessa perspectiva, as disposições insculpidas na Lei n° 11.101/2005 recaem, justamente, sobre os bens e os créditos das empresas objeto da falência ou da recuperação judicial, sendo incabível a sua extensão de aplicabilidade a bens de terceiros, que, como no caso, serviram de garantia para determinada operação da empresa. Precedentes.

4) Irretocável, portanto, a classificação do crédito objeto dos autos como crédito quirografário.

DECISÃO MANTIDA. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

(TJRS; Agravo de Instrumento 70080630932; relator (a): Lusmary Fatima Turelly da Silva; Órgão Julgador: Quinta Câmara Cível; Comarca de Origem: BENTO GONÇALVES; Data de Julgamento: 24-04-2019; Publicação: 30-04-2019) 

Agravos de instrumento

– IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – DECISÃO RECORRIDA QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS INICIAIS – ACOLHIMENTO DO PEDIDO DE EXCLUSÃO DE CRÉDITO DO QUADRO-GERAL DE CREDORES – REJEIÇÃO DO PEDIDO DE RECLASSIFICAÇÃO DE CRÉDITOS DA CLASSE DOS QUIROGRAFÁRIOS PARA GARANTIA REAL – CONCLUSÃO PELA SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – INSURGÊNCIAS DE AMBAS AS PARTESRECURSO 1 – INTERPOSIÇÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA – PLEITO DE RECLASSIFICAÇÃO DE CRÉDITOS – IMPOSSIBILIDADE – AGRUPAMENTO QUE DEVE CONSIDERAR A CONVERGÊNCIA DE INTERESSES DOS CREDORES – GARANTIA REAL PRESTADA POR TERCEIROS – INEXISTÊNCIA DE VINCULAÇÃO COM O PATRIMÔNIO DAS EMPRESAS RECUPERANDAS – ENQUADRAMENTO NA CLASSE DOS CRÉDITOS QUIROGRAFÁRIOS – PRECEDENTES – RECURSO DESPROVIDORECURSO 2 – INTERPOSIÇÃO PELAS RECUPERANDAS – PLEITO DE REDISTRIBUIÇÃO DA SUCUMBÊNCIA E DE MAJORAÇÃO DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – DESCABIMENTO – PECULIARIDADE DO CASO – PROVEITO ECONÔMICO inestimável – impossibilidade DE MENSURAÇÃO DOS PEDIDOS DE ACORDO COM O VALOR DOS CRÉDITOS – AUTOR QUE DECAIU DE UM E LOGROU ÊXITO NO acolhimento do outro – sucumbência recíproca corretamente reconhecida – majoração da verba honorária que causaria reformatio in pejus por acarretar o igual aumento do montante devido pelas recorrentes – recurso desprovido

(TJPR – 18ª C.Cível – 0024753-05.2020.8.16.0000 – Apucarana –  Relatora: DESEMBARGADORA DENISE KRUGER PEREIRA –  J. 01.02.2021)".

Aliás, saliente-se que, consoante o enunciado VI do TJ-SP  o qual foi publicado no DJE de 15/4/19, página 1  é "inaplicável o disposto no artigo 49, §3°, da lei n° 11.101/2005, ao crédito com garantia prestada por terceiro, que se submete ao regime recuperacional, sem prejuízo do exercício, pelo credor, de seu direito contra o terceiro garantidor", e que é aplicado, vide julgados abaixo.

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO QUE JULGOU PARCIALMENTE PROCEDENTE IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO, CLASSIFICANDO O VALOR DE R$ 19.779.023,07 COMO EXTRACONCURSAL, O VALOR DE R$ 12.148.137,24, NA CLASSE II, E R$ 960.000,13, NA CLASSE III. INSURGÊNCIA DA CREDORA, QUE ALEGA QUE TODO O CRÉDITO DEVE SER CONSIDERADO EXTRACONCURSAL. HIPÓTESE DE NÃO PROVIMENTO. INAPLICÁVEL O ARTIGO 49, §3º, DA LEI Nº 11.101/05, AO CRÉDITO COM GARANTIA PRESTADA POR TERCEIRO, QUE SE SUBMETE AO REGIME RECUPERACIONAL. ENUNCIADO VI, DO GRUPO DE CÂMARAS RESERVADAS DE DIREITO EMPRESARIAL. POSSIBILIDADE DE DECOMPOSIÇÃO DOS CRÉDITOS, COM BASE NAS GARANTIAS PRESENTES NAS CÉDULAS, CONFORME INFORMADO PELO ADMINISTRADOR JUDICIAL. RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJSP; Agravo de Instrumento 2260674-91.2021.8.26.0000; relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Osasco  8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/03/2022; Data de Registro: 02/03/2022).

IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO (RECUPERAÇÃO JUDICIAL)  Decisão judicial que julgou improcedente o incidente, reconhecendo a concursalidade dos créditos decorrentes dos contratos apontados nos autos da recuperação judicial da agravada, determinado a sua retificação para constar o valor de R$ 734.864,17 na classe dos credores quirografários  Alegação de que se trata de crédito garantido por alienação fiduciária, e que o argumento de que a garantia prestada pertence a terceiro não é motivo para que o crédito seja classificado como quirografário — Descabimento  Correta a assertiva de que de que é prescindível o registro da cessão fiduciária de bens móveis para sua caracterização e consequente exclusão da recuperação judicial – Todavia, o veículo pertence a sócio, e em relação ao maquinário, embora solicitados diversas vezes pela administradora judicial em primeira instância, não restaram juntados documentos indicados no próprio instrumento, que permitiriam averiguar a existência e a propriedade dos mesmos  Os credores mantêm seus privilégios e direitos em face aos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, de modo que, cada uma das partes envolvidas em contrato é responsável por sua respectiva obrigação em cada caso concreto – Inteligência do §1° do artigo 49 da Lei nº 11.101/05  Como se trata de garantia prestada por terceiro, independente da classificação do crédito na recuperação, persiste o direito da credora na persecução da garantia em face do garantidor  Hipótese na qual, portanto, perante a recuperanda, correto o entendimento de que o crédito deve ser incluso na classe III, quirografário  Decisão mantida  Agravo de instrumento não provido. Dispositivo: Negam provimento ao recurso.

(TJSP; Agravo de Instrumento 2230191-78.2021.8.26.0000; relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado da 1ª RAJ — 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem da 1ª RAJ; Data do Julgamento: 25/01/2022; Data de Registro: 25/01/2022)".

Enfim, nota-se que a divergência ainda é muito viva, pois, inobstante isso, o entendimento prevalecente nas segundas instâncias é o da classificação do crédito como quirografário enquanto que o entendimento pela classificação do crédito como extraconcursal é o atualmente prevalecente no STJ e, apenas o tempo dirá qual prevalecerá.

Referências bibliográficas
TARTUCE, Flavio. Direito Civil: direito das coisas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 4 v.
WAISSBERG, Ivo. A garantia real sobre bem de terceiro e a sua classificação para fins da recuperação judicial. Revista Brasileira de Direito Comercial, Porto Alegre, v. 1, nº 1, p. 73-81, nov. 2014.

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