Tribunal do Júri

Reflexos da teoria significativa da ação no júri

Autor

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

12 de março de 2022, 8h00

A competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é um dos princípios constitucionais expressos do tribunal do júri (CF, artigo 5º, XXXVIII, "d"). Portanto, logo se vê que a análise da intenção do acusado é condição preambular na determinação de competência ratione materiae.

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Considerando as particularidades do procedimento do júri, quando acusação e defesa discordarem sobre o elemento volitivo do acusado, a questão será examinada tanto na primeira fase, quando o magistrado togado precisa decidir se pronuncia o acusado (encaminhando ao julgamento em plenário) ou se remete o caso a outro juiz que seja competente (decisão de desclassificação); quanto na segunda fase, na hipótese de pronúncia, em que os jurados são competentes pela decisão final.

A intenção do agente, pelo viés do conceito analítico do crime adotado pelo Código Penal, identifica o crime doloso como quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (CP, artigo 18, I) [1].

Esta concepção interessa pelo aspecto processual, pois os fatos descritos na denúncia ajustam e vinculam os parâmetros defensivos. Na sequencia, também há uma inexorável correlação entre os fatos sustentados pela acusação e a decisão do magistrado [2].

Destarte, no caso de um homicídio por dolo eventual, por exemplo, a acusação precisa descrever os atos e circunstâncias que se direcionam para a assunção de risco. Pela doutrina penal, para concluir que o acusado agiu desta forma, deve-se mostrar que ele que levava a sério, a nível intelectual, a possível produção do resultado e, a nível psicológico, conformava-se com a eventual produção do resultado ou assentiu com o risco criado [3].

Já no caso de homicídio por dolo direto, a acusação deve descrever na denúncia quais as condutas e circunstâncias que precisam ser provadas e que demonstram que o o acusado, a nível intelectual, sabia do risco da sua ação e, a nível psicológico, queria que o resultado ocorresse.

Entretanto, perceba-se que a comprovação de tais situações é ilusória, vez que cientificamente é impossível adentrar na mente do acusado para descobrir qual era seu pensamento quando da ocorrência do crime [4]. Por conta disto, a teoria significativa da ação, que tem como base a filosofia da linguagem, soluciona a questão, passando a examinar as manifestações do acusado na direção do compromisso de atuar daquela forma [5]. Assim, a análise resta alicerçada no contexto em que a conduta está posta [6]. Em suma, interpretar os indicadores objetivos possibilita aos operadores do Direito extrair a comunicação de uma intenção. Então, na prática, precisa-se concatenar os dados objetivos que são capazes de revelar a indicação da vontade ou não de realizar o crime.

Assim, o dolo, ao não existir, deve ser atribuído. Contudo, para realizar a atribuição "é necessário o estabelecimento de critérios que possam ter mais validade que aqueles obtidos pelas teorias subjetivas ou ontológicas do dolo" [7].

Trazendo para a realidade do tribunal do júri, como dito acima, a segunda fase é de competência dos jurados. A celeuma precisa ser enfrentada levando em consideração que o sistema decisório adotado é o da íntima convicção, o que, em tese, afastaria o indispensável debate sobre os indicadores do dolo. Para o sistema brasileiro, com a ausência de deliberação ou fundamentação, a quesitação assume o papel para extração decisória do Conselho de Sentença.

O elemento volitivo também é submetido para decisão pelos jurados, por intermédio de uma pergunta específica submetida a eles. E o quesito sobre a intenção do agente, obrigatoriamente, precisa transparecer os indicadores objetivos para que se possa atribuir ao acusado ter agido com dolo ou com imprudência.

De maneira clássica, os modelos mais utilizados para se perguntar se o acusado agiu com dolo são por intermédio das seguintes redações: "O acusado, de maneira livre e consciente, assumiu o risco de causar a morte da vítima?"; ou "O acusado quis matar a vítima?"; ou ainda "O acusado assumiu o risco de matar a vítima?".

Tendo como base a teoria da ação significativa como proposição que melhor compatibiliza a evolução da dogmática com a realidade, o quesito precisa ser complementado com os indicadores fáticos que sustentam a narrativa acusatória (e filtrada pela decisão de pronúncia).

A título de exemplo, no caso de um sujeito acusado e pronunciado por dolo eventual por ter assumido o risco de matar a vítima ao participar de "racha" e avançando o sinal vermelho, o quesito específico necessita indicar tais circunstâncias. Assim, a redação versará: "ao participar de 'racha' e avançar o sinal vermelho, o acusado agiu com dolo, assumindo o risco de matar a vítima?".

Isto posto, não obstante em um primeiro momento pareça ser mais simples questionar aos jurados se o acusado agiu com culpa, não é melhor caminho, pois, reafirma-se que manifestações externas do agente no sentido de buscar o resultado somente podem ser expressas pelo cenário retratado na denúncia e filtrado pela decisão de pronúncia. Assim, competirá aos jurados reconhecer se os elementos objetivos apresentados são capazes para atribuir o dolo ao acusado. Ao votarem sim, estarão julgando procedente a pretensão acusatória; votando não estarão desclassificando o crime e afirmando a competência do juiz presidente.

Tais critérios, pelo aspecto processual, são pautados pelo sistema acusatório, único adotado e legitimado pela Constituição Federal. Destarte, cabe a acusação comprovar com subsídios concretos, além da dúvida razoável, no caminho de que o standard probatório para a condenação seja atingido e, assim, uma decisão condenatória seja justificável.

Em síntese, a acusação, ao elaborar a denúncia, tem que descrever as circunstâncias fáticas que que delimitam a imputação ao acusado. Após o regular andamento do processo, a decisão de pronúncia exercerá um filtro de admissibilidade, estabelecendo os limites de atuação da acusação em plenário [8], bem como os termos da quesitação. Ou seja, desde a primeira fase o juiz competente tem a incumbência de rechaçar questões eminentemente dogmáticas, fornecendo subsídios para que a futura decisão dos jurados retrate suas reais intenções.

Definir a linguagem como instrumento de legitimação do significado doloso de uma conduta se caracteriza como uma orientação humanista e atenta à ideia de alteridade [9]. Considerar o tribunal do júri como uma garantia fundamental do cidadão, também significa dizer que suas decisões precisam ser legitimadas a partir de um julgamento justo, o que certamente seria uma ficção se este for fundamentado em presunções irrealistas de acesso à mente do acusado. O sistema penal, quando pensado em bases exclusivamente normativas e distante da realidade prática, torna-se também, por si só, uma ficção.


[1] Para René Dotti, "o dolo é o reconhecimento dos elementos que integram o fato típico e a vontade de praticá-lo ou, pelo menos, de assumir o risco de sua produção". DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal: parte geral. 6ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2008. p. 466.

[2] Badaró assevera que "na busca da correlação entre acusação e sentença no procedimento do Tribunal do Júri, entre os extremos da denúncia e da sentença, situa-se a pronúncia. Assim, a pronúncia deverá estar de acordo com a denúncia, e a sentença estará limitada pela pronúncia. A correlação, contudo, continua a ser estabelecida entre a denúncia e a sentença, inserindo-se, entre esses dois momentos, a decisão de pronúncia". BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre Acusação e Sentença. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 193-195.

[3] Neste sentido, por exemplo, o magistério de Juarez Cirino dos Santos (In: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2007. p. 140).

[4] Como leciona Rodrigo Cabral: "o que ‘ocorre internamente na mente da pessoa’ jamais poderá ser efetivamente utilizado em um processo penal, o que acaba por retirar toda a plausibilidade e utilidade do uso de um conceito psicológico para o elemento volitivo". CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Dolo e Linguagem: Rumo a uma Nova Gramática do Dolo a Partir da Filosofia da Linguagem São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020. p. 190.

[5] Importante ressaltar "que em termos normativos, há tanto casos imprudentes quanto dolosos, sendo que o que identifica estes últimos — por certo — normativamente, é a expressão de sentido que se traduz no compromisso com a produção do resultado típico, que não ocorre na imprudência". BUSATO, Paulo Cesar. O Giro Linguístico e o Direito Penal. Revista Duc in Altum. v. 7, n. 12, 2015. p. 142-143.

[6] De acordo com Vives Antón, "para determinar si ha habido un compromiso (una intención) concreta, v.g., el de matar a otro, habremos de examinar las reglas de toda índole (sociales y jurídicas) que definen su acción como una acción de matar y ponerlas en relación con las competencias del autor — con las técnicas que domina —. De este modo, y no a través de la indagación de inasequibles y poco significativos procesos mentales, podremos determinar lo que el autor sabía (…) sólo podemos analizar manifestaciones externas; pero, a través de esas manifestaciones externas podemos averiguar el bagaje de conocimientos del autor (las técnicas que dominaba, lo que podía y lo que no podía prever o calcular) y entender, así, al menos parcialmente, sus intenciones expresadas en la acción". VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos Del Sistema Penal – Acción Significativa y Derechos Constitucionales. 2a. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2011. p. 252-253.

[7] BUSATO, Paulo Cesar. Dolo e Significado. Dolo e Direito Penal: modernas tendências. (Coord. Paulo Cesar Busato). 3ª ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019. p. 98/99.

[8] A sustentação da acusação em plenário é limitada pelos parâmetros admitidos na pronúncia. A sustentação ampliada para além da baliza da decisão de admissibilidade viola os princípios da plenitude de defesa e do contraditório.

[9] BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte geral. v. 1. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 319.

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    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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