Observatório Constitucional

STF e TSE em tempos de erosão democrática

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12 de março de 2022, 8h00

O número de democracias eleitorais cresceu de 35, nos anos 70, para 110, em 2014 [1], seguindo até este momento a previsão de Fukuyama sobre o fim da História, no qual o autor afirma que o período da História do pós-guerra termina com a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final e ideal de governo no mundo. Entretanto, o próprio Fukuyama analisa o processo de recessão democrática que se inicia em 2006, mas que apenas ganha força a partir de 2014. Por outro lado, órgãos de análise dos índices de democracia no mundo têm alertado para as quedas dos regimes democráticos. O Freedom’s House alerta que em todas as regiões do mundo a democracia está sob ataque de líderes populistas, com queda nos índices de liberdade de imprensa, liberdade religiosa, independência do Judiciário, liberdade acadêmica e outros direitos de liberdade.

Pelo Democracy Report do V-DEM Institute, o Brasil está entre os dez países que mais se autocratizaram no mundo, passando a ser considerado uma democracia meramente eleitoral e com uma deterioração acelerada de direitos e liberdades, estando atrás apenas de Turquia, Hungria e Polônia. Para além disso, o V-DEM ressalta que a autocratização normalmente segue um mesmo padrão, atacando num primeiro momento a mídia e a sociedade civil e se utilizando da desinformação para polarizar a sociedade e atacar os opositores políticos, aliado ao ataque às instituições.

Em dezembro, o Idea publicou o relatório sobre democracia nas Américas em que ressalta que, apesar de os países no continente terem abraçado a terceira onda de democracia e terem fortalecido suas instituições nesse período, passam agora por um retrocesso democrático que vem se acelerando em pouco tempo. A polarização política, a fragmentação partidária, a crise de representatividade e o descontentamento dos cidadãos com as elites políticas, seriam causas desse processo de autocratização da região.

Ainda, é de se preocupar com o alerta do Idea de que o Brasil é o país que enfrenta o maior retrocesso democrático do mundo, com o maior número de atributos que medem o nível de sua democracia em queda. Os ataques às bases da democracia liberal vêm sendo orquestrados pelo governo federal: 1) ataques a professores e autonomia universitária; 2) ataques a cientistas e censura a órgãos de pesquisa; 3) ataques ao Supremo Tribunal Federal, ao Tribunal Superior Eleitoral e a ministros; 4) ataques à integridade do processo eleitoral; 5) ataques a opositores políticos com o uso da Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente; 6) ataques à imprensa e a jornalistas; 7) presença de militares em cargos no governo federal; e 8) cooptação de órgãos de controle.

Um ponto que chamou a atenção no referido relatório diz respeito aos ataques aos organismos eleitorais que se tornaram mais frequentes na região, como uma prática adotada por líderes populistas da ultradireita, estratégia já utilizada por Trump, que levou, inclusive, à invasão do Capitólio nos Estados Unidos. Tática que é reproduzida no ambiente brasileiro, a partir da divulgação em massa de notícias falsas, com a finalidade da corrosão da credibilidade no processo eleitoral.

Esses tipos de ataques foram observados não apenas no Brasil, mas também em El Salvador, México e Peru, e buscam justamente criar uma crise de legitimidade inexistente para desacreditar o processo eleitoral e as instituições de controle. Os processos de desinformação e ataque às eleições já vêm sendo objeto de estudo pela Universidade de British Columbia, que apontou que atores estrangeiros podem atacar alguns alicerces da democracia, tais como: 1) oportunidades justas para a participação do cidadão; 2) deliberação pública livre; e 3) integridade eleitoral. Embora os ataques digitais não tenham conseguido impactar na integridade dos processos eleitorais, eles buscam colocar em dúvida sua legitimidade por meio de um processo violento e articulado de produção de fake news, inclusive com participação de atores internacionais, como a Rússia, que busca minar democracias por meio de interferências em seus processos eleitorais.

No caso do Brasil, é explícito o ataque promovido por Bolsonaro às urnas eletrônicas, ao Tribunal Superior Eleitoral e aos ministros do STF e TSE. Bolsonaro alega que houve fraude às urnas eletrônicas nas eleições de 2018 e que acontecerá novamente em 2022. Entretanto, é de se destacar que as urnas eletrônicas foram estabelecidas no Brasil em 1996 e que desde então, ao contrário do alegado pelo presidente, justamente evitou fraudes existentes no processo eleitoral brasileiro.

A gravidade do tema impõe acender um alerta vermelho na medida em que um dos princípios essenciais para a estabilidade democrática é, justamente, o princípio da legitimidade das eleições, entretanto, resultados de pesquisas apontam que na América Latina a credibilidade no processo eleitoral e nos organismos eleitorais caiu de 63% da população em 2004 para 45% em 2019. O que serve para colocar o perigo populista dos ataques em um radar máximo de atenção que sirva para assegurar o funcionamento das eleições periódicas e a estabilidade democrática.

Conforme alerta Scheppele, nenhuma autocracia se instala sem o apoio de grande parte da população. E os líderes populistas se utilizam da crise de credibilidade nas instituições e na má prestação de serviços públicos básicos para avançar sua agenda autoritária.

É preciso pensar nas causas da desconfiança nas instituições e na própria democracia. O latinobarômetro aponta que a satisfação com a democracia na América Latina cai de 45% em 2009 para 25% em 2020. Embora esse mal-estar possa ser muito mais com os governos do que com a democracia em si, Fukuyama também aponta que a ausência de políticas públicas e ineficiência dos Estados para promover direitos sociais básicos de saúde e de educação seria uma das causas de crise da democracia.

Juan Linz [2] também já apontava, em relação ao Brasil, que "a distribuição de renda mais desigual, e os piores níveis educacionais e de bem-estar social de todos os países sul-europeus e sul-americanos" dificultou a tarefa de consolidação da democracia e, em 1992, o apoio à democracia por brasileiros era muito mais baixo do que o apoio de uruguaios, portugueses, espanhóis ou gregos no mesmo período.

Para além disso é certo que essa conjuntura também facilita os processos recentes de erosão democrática que se diferenciam de golpes abertos à democracia e rupturas constitucionais. A erosão atua justamente por dentro das instituições, cooptando-as para que não possam exercer seu trabalho com a autonomia necessária para a regulação e controle do poder político. Quando um governante autoritário busca não só atacar os outros poderes, mas também fragilizar os órgãos que possuem autonomia para impedir sua atuação inconstitucional e até criminosa, observa-se também a fragilização democrática, como no caso brasileiro.

O Brasil se insere, desse modo, no contexto dos países em retrocesso democrático por meio de um conjunto de ataques aos alicerces do constitucionalismo liberal, num processo que se utiliza da desinformação e baixo apoio da população à democracia. Por outro lado, Bolsonaro segue as táticas adotadas por outros líderes populistas com ataques à imprensa, às cortes e ao processo eleitoral, com discurso neoconservador e antagônico à proteção de direitos humanos.

Outro ponto de alerta e que merece ser ressaltado é que há uma tentativa de empacotamento e fragilização dos tribunais que exercem o papel de contenção do presidente da República, com uma rede orquestrada e articulada de notícias falsas para deslegitimar tanto o TSE quanto o STF nos grupos bolsonaristas.

E, nesse sentido, o atual fenômeno de emergência global de líderes autoritários competitivos nos impõe a reflexão de que é preciso diferenciar momentos de normalidade e momentos de grande instabilidade democrática no que diz respeito à análise da atuação judicial frente aos demais poderes.

Se nos momentos de estabilidade constitucional a função judicial contramajoritária e de contenção dos demais poderes merece especial atenção para o abuso de suas prerrogativas; nos momentos de crise e de instabilidade política e democrática a atenção e a preocupação devem ser focadas no perigo do aparelhamento e enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos, uma vez que o Judiciário é um dos principais alvos de ataque dos governos autoritários. Em momentos de normalidade atores políticos aceitam os procedimentos que os elegeram, o que não ocorre em governos populistas que buscam "em nome do povo" acabar com contenções e questionam a legitimidade das Cortes que o fazem.

STF e TSE terão de lidar nos próximos meses com diversos desafios para além dos ataques à sua reputação e a de seus ministros, mas o principal vai para além do aspecto jurídico de manter a integridade do processo eleitoral, mas o de manter a sua credibilidade perante a população. Tribunais e ministros não são eleitos pela população e normalmente não precisam lidar com o apoio popular para garantir sua legitimidade, já prevista na Constituição, mas em tempos de erosão democrática as cortes são jogadas nesse escrutínio, mudando o papel dos juízes de falar apenas nos autos para defender amplamente e sonoramente a democracia também no espaço público. Democracia que se funda numa Constituição plural e em procedimentos eleitorais e que não dependem de tutela ou chancela militar.

É urgente compreender, desse modo, o contexto político mais amplo em que estão inseridos o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal no momento mais instável e mais crítico da democracia brasileira pós-88, que têm atuado em defesa da democracia mesmo sob intensos ataques à sua legitimidade.

A democracia brasileira, assim, como outras democracias liberais é garantida pelo Direito, por Instituições independentes e eleições íntegras e não pode ficar à mercê de uma ideia de que democracia é apenas manifestação da soberania popular diretamente pelo populista eleito. A democracia só se sustenta por meio das leis e no jogo das eleições, as regras e os árbitros constitucionais já estão estabelecidos.

Por fim, fica o alerta da experiência comparada, especialmente do caso da Hungria, onde a Corte Constitucional resistiu por mais de três anos ao avanço autoritário de Fidesz, conseguindo chamar a atenção para o que estava acontecendo no país, entretanto sucumbiu. Os tribunais brasileiros precisarão de apoio dos demais atores democráticos para conter o avanço autoritário no Brasil.

 


[1] FUKUYAMA, Francis. Why is Democracy Performing so Poorly. Journal of Democracy, v. 26, n. 1. January 2015, p. 1.

[2] Linz, Juan J. A transição e consolidação da democracia — a experiência do sul da Europa e da América do Sul. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p 203.

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