Diário de Classe

O Direito como fim no "combate à corrupção'

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

12 de março de 2022, 8h00

Não há como falar em "combate à corrupção" sem compreender: 1) o que o Direito representa em uma democracia e o motivo pelo qual ele é tão importante para assegurar a higidez dessa; 2) quais foram as principais decisões judiciais dos últimos 12 anos que promoveram uma ruptura do "combate à corrupção" com a legalidade e; 3) como a operação "lava jato" agiu para combater a corrupção a qualquer custo e contra determinados indivíduos, de modo a instrumentalizar o Direito e obter capital político para os seus representantes [1].

O Direito está inserido dentro de uma linguagem pública que é alheia à subjetividade do julgador. Um juiz, portanto, não pode criar um critério decisório que seja extrajurídico (como valores morais, políticos, econômicos, pessoais etc.) [2]. Por exemplo, um juiz não pode dizer que a prisão-pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória é constitucional porque existe impunidade no Brasil (assertiva que não é completamente verdadeira e que a própria prisão em segunda instância não tem o condão de impedir). Também não pode afirmar isso porque a Constituição é literal quando refere a impossibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Igualmente, um promotor de Justiça não pode promover ação penal contra um indivíduo por crime de opinião, simplesmente porque não concorda com o teor da manifestação. Um juiz não pode condenar um indivíduo ao cárcere quando as condições processuais não observam o devido processo legal, como o julgamento por um magistrado parcial. E o porquê não se admite esse tipo de agir? Simplesmente porque o Direito obedece à Constituição, a linguagem pública e ao universo doutrinário e jurisprudencial que antecede o magistrado na hora de proferir uma decisão, de modo que um processo decisório jamais poderá ser amparado por um juízo moral, político ou econômico [3]. Andar para além desses limites é extremamente perigoso.

Ao longo da história, o aparelhamento e enfraquecimento das instituições, a título de exemplo, permitiu a ascensão do regime nacional socialista. A degeneração do Direito legitimou o Terceiro Reich. Tudo se deu à base da lei alemã (por isso, Eichmann — o arquiteto da solução final nazista — afirmara que apenas cumpriu a lei). Entender o que ocorreu na Alemanha, principalmente nos anos 30, não é o objetivo deste ensaio. A discussão é altamente complexa. No entanto, um brevíssimo exemplo do que ocorrera naquela época — na perspectiva do Direito Penal nazista — é uma característica muito marcante do que se tornou o Direito a partir da sua degeneração: no regime nazista, a máxima nullen crime nulle poena sine lege que deu luz ao princípio da legalidade em todas as democracias constitucionais contemporâneas — foi substituído pelo de que não há crime sem castigo (nullen crimen sine poena) [4]. Dessa forma, impossibilitou-se a distinção entre o que era Direito e o que não era. A partir de 1933, o crime não se vinculava mais a uma violação do bem jurídico tutelado, mas, sim, a afronta a um dever moral, instituído a partir de convicções íntimas dos agentes. A teoria decisionista de Carl Schmitt foi determinante para a construção desse estado de coisas que, na prática, fez com que o Direito se deslocasse das exigências de legalidade, como se a lei e o próprio direito estivessem permanentemente suspensos — a pretexto do estado de exceção — para que assim fosse exercido ilimitadamente o poder. Para Schmitt, não existiria norma aplicável no caos, porque nessa condição não há ordem jurídica. E não havendo, logo quem decidirá de forma irrestrita é o soberano [5].

Claro que o que ocorreu na Alemanha entre os anos 30 e 40 do século passado é um exemplo extremo do que pode acontecer a partir da degeneração do Direito e das instituições. Porém, talvez se em 1964 houvesse um Supremo Tribunal Federal que não estivesse aparelhado e comprometido com o golpe militar, assim como uma perspectiva de força normativa da Constituição [6] pelos atores dos três poderes, o Brasil não teria ficado mais de duas décadas sem democracia [7].

A segunda parte desta coluna busca demonstrar o que ocorreu no Brasil a partir de decisões emanadas pelo Supremo Tribunal Federal. Para não ficar tão extenso, duas decisões são muito representativas, afora tantas outras: a) a primeira decisão sobre a suspeição do juiz Sergio Moro, ainda na época da operação "Banestado"; e b) as decisões que permearam a discussão sobre a prisão em segunda instância.

(a O caso do Habeas Corpus nº 95.518, que foi julgado pelo STF em 2010, se não foi o primeiro de suspeição do então juiz Sergio Moro, foi um dos mais relevantes. Tornou-se relevante, é verdade, porque esse juiz, anos depois, capitaneou (e essa expressão não é por acaso) a operação "lava jato" e, até hoje, participa ativamente do debate público e da política partidária brasileira. Cuidava-se, também, de operação policial de grande magnitude, a operação "Banestado". Sergio Moro — na condição de juiz — havia se tornado parcial a partir da sua própria atividade, perseguindo o acusado e seus defensores. Por isso, a defesa impetrou Habeas Corpus para ver Moro afastado do processo criminal. Afinal de contas, não há processo legítimo sem juiz imparcial, assim como não há pena legítima sem processo [8]. No caso do juiz Sergio Moro e de sua atuação parcial na operação "Banestado", o STF considerou-a como natural e própria da atividade judicante. O Habeas Corpus impetrado foi denegado por maioria (o ministro Celso de Mello concedeu a ordem para anular o processo).

O ministro relator, ao analisar a impetração, fez um breve voto: "O artigo 254 do Código de Processo Penal é taxativo e não comporta extensão". Demonstrou-se, portanto, que se cuidava de um easy case, que poderia ser resolvido por intermédio da subsunção e que o legislador de 1941 teve o cuidado de especificar na lei todas as hipóteses de suspeição do juiz criminal. Quer dizer, o paradigma constitucional de 1988 — que confere ao acusado em processo penal o direito de ser julgado por um juiz ou órgão imparcial — não se inseriria nessa discussão, justamente porque o texto é literal no sentido de que só existem aquelas hipóteses para suspeição cuidadosamente inseridas no artigo 254 do Código de Processo Penal.

Para utilizar a expressão cunhada por Streck, cuidou-se de uma decisão que partiu de um "textualismo ad hoc" [9]. Isto é, quando a decisão antecede a fundamentação, a literalidade da regra — ou não — embasa o juízo decisório. O caso da suspeição do então juiz era de simples resolução, como ficou assentado no voto divergente do ministro Celso de Mello. Não se trata de debater se o rol é taxativo e nem mesmo se teria havido o escrutínio das instâncias inferiores (como ficou assentado no voto do ministro revisor). Trata-se, a bem da verdade, de analisar se, no caso concreto, o juiz de primeiro grau — que possui extrema relevância no contexto da persecução criminal, porque é aquele que visualiza a prova melhor do que qualquer outro — quebrou ou não o seu dever constitucional de se manter imparcial. É dizer, em outras palavras, que o artigo 254 do Código de Processo Penal tem, por detrás, a intenção de assegurar a higidez do princípio da imparcialidade e do devido processo legal. No caso do HC nº 95.518, a decisão por conveniência — já que a consequência de uma decisão correta conduziria à nulidade de todo o processo criminal — foi o resultado da instrumentalização do Direito para promover a ruptura do caso com a legalidade.

b) A decisão que possibilitou a prisão em segunda instância foi, de fato, uma virada de chave na jurisprudência que influenciou, inclusive, no processo eleitoral brasileiro. Muito embora hoje não exista mais essa possibilidade a partir do que se decidiu nas ADCs 43, 44 e 54, é inegável que há movimentos legislativos que visam a retomar essa discussão. As bases que atestam que o réu não pode ser preso antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (leia-se prisão-pena) são conhecidas por todos: a CF/88 não permite que o réu seja considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória [10], dada a existência do princípio da presunção de inocência que se reflete também na legislação infraconstitucional (artigo 283, CPP, e 105, LEP).

Se existe algo óbvio no Direito Processual Penal brasileiro é a assertiva segundo o qual ninguém poderá ser preso em razão de sentença antes do trânsito em julgado. Para os outros casos, o legislador houve por bem incluir as medidas cautelares pessoais. O STF, por muito tempo, como bem diz Streck, seguiu a máxima de que "o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é" [11], ao ressignificar a noção de trânsito em julgado e a definição de culpado. Não só a decisão foi extremamente problemática, em função da clara teratologia, como os efeitos deletérios que dela emergiram: no âmbito do TRF-4, por exemplo, criou-se uma súmula que estabelecia irrestritamente que a sentença condenatória haveria de ser cumprida tão logo houvesse o esgotamento do juízo de culpabilidade das instâncias ordinárias.

c) Por último, a operação "lava jato" surgiu em meio aos escândalos de corrupção da Petrobras que, ao fim e ao cabo, tornou-se uma luta contra a corrupção endêmica. O propósito era absolutamente legítimo. Cuidava-se de uma grande oportunidade de restabelecer moral e eticamente a nação. Não foi o que aconteceu. A força tarefa da "lava jato" descambou para um projeto autoritário de poder político que culminou na malsucedida missão de Sergio Moro à frente do Ministério da Justiça e de sua potencial candidatura à Presidência da República e da filiação — e possível candidatura a algum cargo eletivo — por parte de Deltan Dallagnol.

O que ocorreu em Curitiba não é apenas uma crítica deste autor que escreve esse ensaio. É também objeto de pesquisa empírica da juíza federal Fabiana Alves Rodrigues. Longe de querer fazer uma resenha do seu livro, mas alguns dados do livro da autora confirmam hipóteses que a maioria dos juristas entendiam como condições de possibilidade da operação "lava jato". O fortalecimento institucional do Ministério Público Federal e da Polícia Federal nas últimas décadas e a "modernização" das leis penais — cite-se aqui a 12.850/2013 (que modernizou táticas de investigação e a colaboração premiada) e a alteração da Lei de Lavagem de Dinheiro, que permitiu a cooperação entre o antigo Coaf e pessoas jurídicas privadas, além de ter excluído o rol taxativo de crimes antecedentes [12]. O que se demonstrou também confirma hipóteses levantadas na operação "spoofing": alguns réus tinham prioridade em relação a outros. A operação mirou a classe política, de modo que algumas ações perduravam menos de 300 dias, ao passo que outras — de réus menos importantes — mais de mil.

A pesquisa também comprovou que existiam prisões de empresários e políticos, sem substrato legal, mas com a intenção inequívoca de forçar delações premiadas. Tão logo houvesse acordo, o indivíduo era solto. A utilização desses institutos processuais — e aqui estou me descolando do livro — também sugere uma confusão dos próprios agentes do Ministério Público Federal e do magistrado condutor no seguinte sentido: os acordos penais hoje são uma tendência global. Países de tradição civil law já aderiram a isso, como Espanha e outros. Porém, a raiz é no common law, tradicionalmente usado como um instrumento para gerar eficiência no processo penal, prender e reduzir a criminalidade. A diferença é que a matriz processual penal dos países da Europa continental são inquisitoriais — a cultura é inquisitorial e Máximo Langer faz uma crítica profunda em relação a isso [13] —, ao passo que os problemas da tradição dos países anglo-saxões — de matriz adversarial — são distintos: lá se fala do excesso de discricionariedade do prosecutor para firmar acordos [14]. Quer dizer, o foco não está no juiz.

Em miúdos, portanto, as decisões judiciais levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal — representadas por esses casos paradigmáticos — contribuíram de modo significativo para a instrumentalização do Direito e foram usadas no pretenso "combate à corrupção" como forma de dar uma resposta a camadas raivosas da população — que não costumam ser alvos de um processo penal seletivo. A causa é e sempre será legítima. Combater a corrupção é uma necessidade. Mas não é o Poder Judiciário que deve fazer isso. Este não combate o crime, como recentemente referiu magnificamente o ministro Ricardo Lewandowski [15].

 


[1] Tanto é que dois deles, os mais proeminentes — Deltan Dallagnol e Sergio Moro — entraram para a política partidária.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

[3] Ibidem.

[4] ABBOUD, Georges. Direito constitucional pós-moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021.

[5] Ibidem.

[6] Na perspectiva desenvolvida por Konrad Hesse. HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. A força normativa da Constituição. Tradução Gilmar Mendes. Porto Alegre. 1991.

[8] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 4 ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

[9] Veja-se em: https://www.conjur.com.br/2019-out-03/senso-incomum-literalista-voluntarista-diante-caes-plataforma. STRECK, Lenio. O literalista e o voluntarista diante dos cães na plataforma. Consultor Jurídico. 03 de outubro de 2019.

[10] Sendo originalista, o Constituinte quis que o réu não fosse preso em razão da pena antes do término do processo.

[11] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

[12] RODRIGUES, Fabiana Alves. Lava Jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça. 1ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2020. v. 1. 296p.

[13] LANGER, Maximo. Dos transplantes jurídicos às traduções jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do processo penal. Delictae, vol. 2., nº 3, jul-dez/2017.

[14] RAKOFF, Jed S. Why innocent people plead guilty. The New York Review of Books, nov/14. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2014/11/20/why-innocent-people-plead-guilty/; Acesso em: 10/8/2020.

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