Opinião

A composição do Poder Judiciário como reflexo da colonialidade

Autores

  • Adriana Ramos

    é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa advogada nas áreas de Direito Constitucional Direitos Humanos Violência contra Mulher e Compliance Antidiscriminatório professora universitária coordenadora de TCC do Ibmec pesquisadora palestrante e sócia do escritório Paes Leme Ramos.

  • Paulo Henrique Lima

    é mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim/CEI pós-graduando Direito Digital pelo ITS/Uerj advogado criminalista com atuação nas áreas de Direito Penal Compliance Antidiscriminatório pesquisador palestrante e sócio do escritório Paes Leme Ramos.

12 de março de 2022, 7h07

Mesmo após a independência, o Brasil segue com as estruturas patriarcalistas [1] que marcaram à sangue a sociedade escravocrata, feridas vivas e não cicatrizadas, estruturas herdadas que organizam o Estado desde a invasão portuguesa.

Esse fenômeno de não ruptura estrutural calcado na hierarquização é denominado colonialidade do poder e sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do padrão de poder (QUIJANO, 2009, 84).

Ainda de acordo com Quijano, a colonialidade do poder é a constituição das estruturas de poder a partir da criação da ideia de raça, uma maneira de legitimar as relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desse modo, a raça passa a ser um eficaz e durável instrumento de dominação, critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade (QUIJANO, 2005, 118). De acordo com Florestan FERNANDES (2016, p. 20), "o negro foi condenado à periferia da sociedade de classes, como se não pertencesse à ordem legal. O que o expôs a um extermínio moral e cultural, que teve sequelas econômicas e demográficas".

Dentro deste referencial teórico, impossível não analisar as relações de poder existentes em países do sul global sem fazer a imbricação de outras categorias centrais para a compreensão das relações de dominação e exploração, tais como a raça, o gênero e a classe, ou seja, a colonialidade do poder naturaliza uma relação hierarquizada que inclui também claras diferenças de prestígio e poder entre a masculinidade e a feminilidade (SEGATO, 2012, 117).

Para Arlette Gautier, a colonização carrega consigo uma perda radical do poder político das mulheres, na medida em que os colonizadores ou negociaram ou inventaram as estruturas masculinas para conseguir aliados e promover a "domesticação" e sujeição das mulheres (GAUTIER, 2005, 718).

Estruturas de subjugação que não foram rompidas, permanências de uma colônia forjada no privilégio, na submissão e na exclusão dos negros e das mulheres das esferas de poder. Traduções da colonialidade que mantêm a dominação através da hierarquização dos nossos corpos e de nossas subjetividades. Há, portanto, uma inter-relação entre colonialidade e patriarcalismo, princípios fundantes do Estado brasileiro que reproduze e cristaliza uma episteme de exclusão e invisibilidades.

Os dados da realidade refletem esse cenário de apagamentos ou de, quando muito, inclusões controladas. Uma rígida divisão de papéis sociais que repercutem a ordem estabelecida pela Casa Grande.

De acordo com dados fornecidos pela Câmara dos Deputados, dos 513 parlamentares eleitos, há 436 homens e 77 mulheres, número que representa 15% da bancada, percentual bem distante do índice de 51,5% que faz das mulheres a maioria da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os negros também permanecem sub-representados com apenas 24,3% da bancada se declarando pretos ou pardos (em um total de 125 deputados negros, 104 se auto declararam pardos e 21 se auto declararam pretos), percentual muito abaixo dos índices do IBGE que mostram ser a população brasileira formada por 54,9% de negros e 44,2% de brancos. Os brancos ocupam 75% da composição da Câmara dos Deputados (dados da Agência Câmara de Notícias).

No Senado, a concentração de homens brancos é ainda maior. Em uma análise gendrada, há somente 11 mulheres na atual legislatura do Senado (13% da Casa de acordo com a Agência do Senado).

Quando feito o recorte através da categoria raça, do total de 81 senadores, apenas 13 são negros (dez senadores se auto declararam pardos e apenas três pretos), ou seja, os brancos ocupam 82,71% das cadeiras, enquanto os negros apenas 17,28% (13,58% pardos e 3,7% de pretos). Em uma análise histórica, importante ressaltar que o primeiro senador negro foi Abdias Nascimento e só tomou posse em 1991, um dado importante para demonstrar os obstáculos existentes para os negros acessarem os espaços de poder.

Fazendo uma intercessão de gênero, há apenas 13 mulheres negras na câmara dos Deputados e nenhuma no Senado, o que descortina as imensas desigualdades sob as quais o país está imerso, exclusões que impedem mulheres negras de assumir papéis que sejam diversos daqueles autorizados pelo patriarcado racista.

A composição do Poder Judiciário também demonstra pouca oxigenação, apesar de uma participação maior de mulheres a partir de 1988. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça, a magistratura é composta por 61,2% de homens e 38,8% de mulheres, contrariando a composição da população brasileira que consoante o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é formada por 51,6% pessoas do sexo feminino e 48,4% pessoas do sexo masculino (CNJ, 2019, 7). Ainda de acordo com Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário produzido pelo CNJ, a participação feminina na magistratura é ainda menor quando analisada por cargo.

"O percentual de magistradas nos cargos de Desembargadoras, Corregedoras, Vice-Presidentes e Presidentes aumentou em relação aos últimos 10 anos, entretanto, ainda permanecem no patamar de 25% a 30%" (CNJ, 2019, 8).

Ainda de acordo com a pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, atualmente, apenas 12,8% (1.534) dos magistrados são negros no país, contra 85,9% (10.256) brancos. Analisando a composição do Supremo Tribunal Federal, hoje em dia nenhum entre os 11 ministros é negro. O último a ocupar uma cadeira no tribunal foi Joaquim Barbosa, entre 2003 e 2014. Apenas 7% do Poder Judiciário é composto por mulheres negras, um número assustador se o compromisso é com o Estado Democrático de Direito e com a observância dos ditames constitucionais.

Algumas medidas no seio do Poder Judiciário têm sido tomadas para dar visibilidade a esses problemas estruturais. Mas são medidas tímidas e paliativas que não atacam a causa, mas minimizam as consequências maléficas do racismo e do machismo.

Tais medidas podem ser exemplificadas através da Resolução nº 296, de 19 de setembro de 2019, que institui a Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários que tem como finalidade propor estudos que visem à democratização do acesso à Justiça e propor ações e projetos destinados ao combate da discriminação. Neste contexto, foi editada a Portaria CNJ nº 108 de 8 de julho de 2020 que criou Grupo de Trabalho para formular políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário, tendo como foco o monitoramento de cumprimento da Resolução CNJ nº 203, de 23 de junho de 2015 (que dispõe sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura).

Entretanto, se medidas mais efetivas não forem tomadas, de acordo com projeções, seriam necessários, ao menos, 30 anos para que se atinja os 20% de magistrados negros na magistratura.

Para alterar este estado de coisas, é necessário uma profunda rupturas com estas estruturas, uma descolonização do poder, uma necessidade de repensar a organização do Estado, da sociedade e do direito a partir de outros olhares, de outras perspectivas e de outras bases, Como afirma Thula Pires, "não disputamos a possibilidade de sermos incluídos na noção de sujeito de direito que está posta, disputamos a possibilidade de produzir o direito, o Estado e a política a partir do nosso lugar e nos nossos termos". (PIRES, 2018, 73)


[1] Conforme salienta Vanessa Batista Berner em Género y el Sistema Judicial Brasileño, "o patriarcado só afeta um determinado coletivo (o de mulher em abstrato), enquanto que o patriarcalismo é a categoria que abarca o conjunto de relações que articulam um conjunto de opressões: gênero, sexo, etnia e classe social, assim como o modo com que as relações sociais particulares conjugam uma dimensão pública de poder, exploração ou servidão pessoal. O termo patriarcalismo, portanto, é mais adequado porque nos faz ver como as relações patriarcais se articulam com outras formas de relação social em um dado momento histórico. Isto porque as estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como variáveis independentes, pois a opressão de cada uma está imbricada com a outra".

Autores

  • é doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Direito Internacional pela Universidade de Lisboa, advogada constitucionalista, atuando nas áreas de Direito Constitucional, Direito Civil, direitos humanos, violência contra mulher e compliance antidiscriminatório, professora universitária, coordenadora de TCC do Ibmec, pesquisadora e palestrante.

  • é advogado criminalista do escritório Paes Leme e Ramos.

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