Opinião

Responsabilidade civil do Estado diante de dano causado por enchente e inundação

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11 de março de 2022, 19h14

Poucos fenômenos naturais têm recebido tanto destaque quanto as fortes chuvas, que desde novembro de 2021 vem atingindo diversos estados em regiões diferentes do país, e acabam causando enchentes e alagamentos, e com variados níveis de dano.

Ao todo, onze estados da Federação foram afetados por alagamentos e enchentes, e torna-se impossível pensar nesse fenômeno natural sem atrelá-lo ao gigantesco impacto humano e econômico. Segundo levantamento da revista Exame (2022, online), na Bahia, por exemplo, 93.646 pessoas estão desabrigadas, enquanto 26 acabaram por falecer, fora as outras 518 feridas e 715.634 que foram prejudicadas em algum nível.

Em estados como Maranhão e Tocantins, dezenas de cidades foram afetadas de forma relevante, com centenas de pessoas ficando desabrigadas e sendo transferidas para abrigos públicos.

Por mais que fenômenos como as enchentes sejam prioritariamente de origem natural, é notável que ano após ano as notícias referentes aos desastres vêm se acumulando, e não é possível identificar com clareza quais medidas foram tomadas pelo poder público para mitigar esses impactos.

As chuvas atípicas que atingiram diversos estados desde o início de novembro de 2021 continuam gerando números alarmantes.

Computando o número de desabrigados, desalojados e desaparecidos — além dos danos às propriedades rurais, que garantem a subsistência de seus proprietários — resta traçar alguns parâmetros que possam vir a definir alguma forma de reparação para tais pessoas, a partir da verificação de que o Estado tinha ou não o dever e a capacidade de dirimir os danos causados.

Definir o conceito de responsabilidade civil nos moldes brasileiros é voltar-se para a análise do artigo186 do Código Civil (Brasil, 2002), que dispõe sobre o ato ilícito, elencando que comete ato ilícito aquele que agir ou omitir-se voluntariamente, ou atuar com negligência ou imprudência, resultando em violação de direito ou em dano.

Da definição acima, tem-se a culpa como um dos elementos presentes no artigo 186 do Código Civil, o que culminou na defesa da teoria de que não haveria responsabilização do agente causador do dano sem a presença desse elemento. Contudo, no atual ordenamento jurídico brasileiro, convivem dois regimes de responsabilidade civil: a subjetiva e a objetiva. (GONÇALVES, 2021)

A responsabilidade subjetiva pressupõe a existência de ato ilícito, e consequentemente a existência de culpa. Por outro lado, a responsabilidade objetiva independe do elemento culpa e decorre da existência do risco.

Considerando que o presente artigo tem como um de seus objetivos destacar a presença de omissão do Estado no caso das enchentes ocorridas no estado da Bahia, o esgotamento do tema da responsabilidade civil faz-se desnecessário, sendo mais oportuno apontar para os estudos acerca da responsabilidade civil do Estado por omissão.

Enquanto a leitura do artigo 186, CC aponta para a existência da responsabilidade subjetiva, é do artigo 927, CC que se extrai os elementos que permitem a responsabilização objetiva, que se baseia no risco. Aplicar a teoria do risco à atuação estatal é plenamente possível, "porque parte da ideia de que a atuação estatal envolve um risco de dano, que lhe é inerente", como afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2020, p.1.494).

Interpretando os conceitos civilistas pela ótica do Direito Administrativo, tem-se a responsabilidade objetiva do Estado a partir da existência de um fato administrativo que resulta em um dano, sendo necessária a prova de nexo causal entre ambos.

Conforme ensina Di Pietro (2020, p.455) fato administrativo ocorre quando o fato produz efeitos no Direito Administrativo. No caso em questão, esta é a conduta do agente público, seja por ação ou omissão. A responsabilização do Estado pela teoria objetiva demanda, portanto, que se identifique a conduta relevante da administração pública, quer seja comissiva ou omissiva.

O dano é a existência de lesão a um bem jurídico pertencente à vítima, podendo ter natureza patrimonial ou extrapatrimonial. O bem material é aquele economicamente auferível, quantificável, enquanto o extrapatrimonial deriva da existência de direitos personalíssimos, como a honra e a imagem. (GONÇALVES, 2021)

Por fim, comprovar o nexo causal é demonstrar a relação entre a conduta do agente público e a existência do dano ao bem jurídico.

Apesar de os artigos 43 do Código Civil e 37§6º da Constituição Federal (BRASIL, 1988) se complementarem no sentido de permitirem a responsabilidade civil do Estado, a doutrina diverge quanto à possibilidade desse tipo de responsabilização nos casos de omissão, por não haver previsão expressa nos dispositivos destacados.

Para Hely Lopes Meirelles (2016, p.786), o dispositivo aplica-se tanto para atos comissivos quanto para omissivos, pois a Administração Pública teria assumido o compromisso de zelo pela integridade física daquele que venha a sofrer um dano.

Contudo, doutrinadores como Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello, entendem que o art.37§6º da Constituição Federal restringe a teoria objetiva às condutas comissivas, pois a omissão estatal não seria a causadora do dano, e que o descumprimento do dever de impedir o dano seria um ato ilícito culposo, o que implica na teoria subjetiva aplicada à omissão. (Di Pietro, 2020)

Existe ainda uma terceira corrente doutrinária — defendida por Sergio Cavalieri Filho, Guilherme Couto de Castro e Rafael Carvalho Rezende — que faz distinção entre omissão genérica e específica:

"Para a doutrina que elabora tal distinção, na omissão genérica existe indagação a respeito de dolo ou culpa, e para a omissão específica basta o nexo de causalidade, equivalendo à responsabilidade por atos comissivos." (COPOLA ,2013, p. 35)

Essa corrente apoia-se na interpretação de que o dispositivo constitucional em comento não faz distinção entre ação e omissão, apesar de não negar a posição de Di Pietro, que entende que a omissão não gera dano.

Contudo, o entendimento de Cavalieri Filho e Rafael Rezende é de que há distinção entre a omissão caracterizada pela inação (omissão genérica), e a omissão caracterizada por um descumprimento de dever jurídico (omissão específica). Logo, há configuração de responsabilidade objetiva por omissão nos casos em que o dano era previsível e evitável, mas o Estado permaneceu inerte. (REZENDE, 2021, p.1.377-78)

Como exemplo, o autor supracitado usa como exemplo de distinção a ocorrência de um crime. O Estado não é responsável direto pelos crimes ocorridos em seu território. Contudo, a omissão diante de constantes notificações de crimes num mesmo local gera o dever de reparação. (REZENDE, 2021, p.1.378)

Portanto, aceitando a distinção entre as duas omissões, a atribuição de responsabilidade ao Estado depende da comprovação do nexo causal entre omissão estatal (fato administrativo) e o evento que resultou em dano, sendo desnecessária a aferição de dolo ou culpa.

Seguindo adiante, é chegada a hora de apontar o aparato legal que configura o nexo causal entre a ineficácia do Estado e os danos decorrentes das enchentes urbanas.

De início, cumpre citar o compromisso firmado na Constituição Federal no art. 225, caput, o qual enuncia ser dever do Poder Público a preservação de um ambiente ecologicamente equilibrado. Do contrário, seja pela ação ou pela omissão, haverá ato ilícito passível de indenização nos casos de dano. (LEANDRO; GODOY, 2014).

Importante destacar e definir o que seja inércia estatal diante do problema das enchentes. Aqui, leia-se por tomar apenas medidas paliativas ou emergenciais periodicamente, sem resultados definitivos que solucionem os danos causados em uma área afetada e sua respectiva população. Ou seja, não pode o ente público se esquivar de sua responsabilidade por ter adotado medidas meramente de curto prazo, nessa situação, a inércia não significa ausência absoluta de ação, mas ineficácia de resolver o problema definitivamente.

Nesse sentido, também se apresenta a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/12) que, inclusive, dispõe em seu artigo 2º, §2º: "A incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco".

Assim, por mais remota que seja a probabilidade, o Estado tem o dever de agir, ainda mais quando o cenário encontrado não é de incertezas, mas de episódios que se repetem anualmente.

Retomando a citação do artigo 225, caput, da Constituição Federal, cumpre trazer à discussão princípio norteador da atuação estatal diante de matérias ambientais, qual seja, o princípio da prevenção, que determina ao Estado o dever de afastar riscos ecológicos com antecipação de medidas para inibir danos ao meio ambiente. (JARDIM, 2010).

Consequentemente, diante do perigo de graves danos ambientais, a exemplo de uma enchente ou inundação, tem o Estado o dever de agir e proteger os administrados, pois estes são injustos passíveis de indenização. Neste caso, a quebra de tal princípio gera o ônus ao Poder Público de se responsabilizar objetivamente pelos danos causados, pois, conforme Jardim (2010, p. 13), "Se o dano restar ocorrido, a omissão será o nexo causal do prejuízo, efetivando, portanto, o direito à reparação patrimonial e/ou moral por parte do ente estatal".

Passando para a análise concreta, em caso de inundações e enchentes, independente de um eventual volume de chuvas anormal para um determinado período, deve-se lembrar que o Poder Público, mais especificamente o município, é responsável por canalizar e dar vazão às águas pluviais, tanto como a conservação e manutenção dos córregos. (JARDIM, 2010).

Destaque-se, em muitos casos, as inundações e enchentes são resultados direitos da própria administração pública, como quando há falha nas tubulações de escoamento, sistema de drenagem de água ineficaz fruto de crescimento urbano sem planejamento, ou como consequência do efeito da impermeabilização indiscriminada do solo urbano, que pode ser conceituada da seguinte forma:

"[…] uso de asfalto, que fazem com que as águas, que antes eram filtradas pelo solo, passem a ser deslocadas para os rios ou córregos, que não possuem capacidade suficiente para receber tal volume de água, e acabem por transbordar, inundando as imediações, causando, portanto, danos à população." (JARDIM, 2010, p. 14).

Já é pacífico na jurisprudência que nos casos de danos à particulares decorrentes das enchentes opera a responsabilidade objetiva do Estado, mais precisamente do ente municipal, competente pelas obras de escoamento de água.

A exemplo do julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que em sede do Recurso Inominado 0078893-48.2019.8.21.9000, julgado em 27/3/2019, considerou o standard probatório atendido em razão da ausência de obras por parte da prefeitura aptas a evitar o transbordamento da água.

Para finalizar as citações dos dispositivos legais que explicitam a responsabilidade objetiva do Estado perante os danos oriundos das enchentes e alagamentos, deve-se partir agora para a norma mais precisa nesse sentido, qual seja, a Lei do Saneamento Básico (Lei nº. 11.445/07), definidora das diretrizes nacionais para o tema. (GOULART, 2012).

Em seu artigo 2º, inciso III, estabelece como princípio fundamental a ser seguido na prestação do serviço público de saneamento básico: "abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de forma adequada à saúde pública, à conservação dos recursos naturais e à proteção do meio ambiente". Em seguida, no inciso IV: "disponibilidade, nas áreas urbanas, de serviços de drenagem e manejo das águas pluviais, tratamento, limpeza e fiscalização preventiva das redes, adequados à saúde pública, à proteção do meio ambiente e à segurança da vida e do patrimônio público e privado".

Desse modo, resta evidente o dever do Estado de construir e manter o solo urbano eficiente quanto à drenagem e escoamento de eventual volume de água decorrente das chuvas, de modo a evitar enchentes e inundações.

Em conclusão, o presente trabalho defende a tese de ser juridicamente possível e necessário o pagamento de indenização aos cidadãos que porventura sofram danos físicos, patrimoniais ou de qualquer natureza em razão dos efeitos da chuva no solo urbano, tal qual foi observado no estado da Bahia e em outras regiões do Brasil no presente ano de 2022.

Tendo em vista que o interesse em realizar serviço de limpeza pública é eminentemente do município, entendemos ser este o ente legitimado para figurar, de forma objetiva, no polo passivo de eventual ação visando a reparação pelos danos ambientais objeto desse estudo. (GOULART, 2012).

Assim, somente a partir da devida responsabilização dos danos causados aos administrados, com a mesma periodicidade e em valor equivalente e justo aos prejuízos infligidos — termo usado conscientemente para evidenciar que, apesar de classificados numa relação de causalidade por omissão, não devem ser vistos de maneira mais branda ou como fora da esfera de responsabilidade do Estado, visto seu dever de agir —, espera-se um efeito inibidor na inércia estatal para efetivamente serem tomadas medidas que tornem as trágicas notícias como as do estado da Bahia, revividas a cada ano, cada vez mais esporádicas.

 

REFERÊNCIAS

Agência O Globo. Revista Exame. 11 estados enfrentam enchentes e alagamentos neste começo de ano. Publicado em 04/1/2022 . Disponível em: https://exame.com/brasil/11-estados-enfrentam-enchentes-e-alagamentos-neste-comeco-de-ano/. Acesso em 20/2/2022. Acesso em: 2/3/2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 2/3/2022.

COPOLA, Gina. A responsabilidade do Estado em decorrência das enchentes. Boletim de Direito Municipal, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-11, jan. 2014. Disponivel em: http://dspace/xmlui/bitstream/item/9421/geicIC_FRM_0000_pdf.pdf?sequence=1. Acesso em: 2/3/2022.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 33ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro Responsabilidade Civil. 16ª ed. São Paulo Saraiva Jur, 2021.

GOULART, Celini da Silva. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM CASO DE ENCHENTES. Orientador: Rafael Burlani. 2012. 87 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Direito) – Universidade do Vale do Itajaí, São José, 2012. Disponível em: file:///C:/Users/Windows-PC/Downloads/3%20GOULART.pdf. Acesso em: 2/3/ 2022.

JARDIM, Clarissa Ferreira. Responsabilidade civil do Estado diante das catástrofes naturais. Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 36, ed. 1, p. 61-82, jan./jun. 2010 2010. Disponível em: file:///C:/Users/Windows-PC/Downloads/2%20JARDIM.pdf. Acesso em: 2/3/2022.

LEANDRO, Fernando Mantovani; GODOY, Sandro Marcos. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELOS DANOS CAUSADOS POR ENCHENTES. ETIC 2014 – Encontro de iniciação Científica do Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo, Presidente Prudente, 2014. Disponível em: file:///C:/Users/Windows-PC/Downloads/1%20LEANDRO%20E%20GODOY.pdf. Acesso em: 2/3/2022.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA CASA CIVIL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil — PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil — Sindpec e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil — Condpec; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nºs 12.340, de 1º de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências. [S. l.], 10 abr. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12608.htm. Acesso em: 2/3/2022.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA CASA CIVIL SUBCHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978. (Redação pela Lei nº 14.026, de 2020). [S. l.], 5 jan. 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm. Acesso em: 2/3/2022.

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