Opinião

HC para trancamento do processo e superveniência de sentença condenatória

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10 de março de 2022, 7h06

Leio no Conjur que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o pedido de trancamento do processo [1], formulado em sede de Habeas Corpus, independentemente de qual tenha sido a causa de pedir, se inépcia da denúncia ou falta de justa causa, ficaria prejudicado com a prolação de sentença condenatória no curso da impetração [2].

A decisão estaria amparada na premissa de que, com a sentença, haveria "cognição exauriente" e a pretensão acusatória, uma vez acolhida, denotaria, "ipso facto, a plena aptidão da inicial acusatória e a existência de provas da autoria e materialidade delitivas".

Restaria, então, à defesa, diante dessas circunstâncias, somente o Recurso de Apelação.

Entretanto, entendemos que há uma série de equívocos na fundamentação dessa decisão, que, aliás, sufraga entendimento que, infelizmente, prevalece atualmente em ambas as Turmas da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça e, igualmente, em ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal.

Isso porque o processo obedece a uma sequência lógica e concatenada de atos, que estabelecem entre si uma relação de dependência, daí o Código de Processo Penal preceituar, em seu artigo 573, § 1º, que "a nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dele diretamente dependam ou sejam consequência".

Como se vê, um ato processual, para que seja validamente praticado, além de cumprir as suas formalidades próprias, dependerá da validade dos atos processuais anteriores, que dele diretamente dependam ou sejam consequência.

Com efeito, no âmbito do procedimento comum, a validade da sentença condenatória dependerá da validade de uma série de atos processuais anteriores: a) do recebimento da denúncia (artigo 396 e 399), que pressupõe justa causa e validade formal da inicial acusatória (artigo 395), além da inexistência das hipóteses de absolvição sumária (artigo 397); b) da audiência de instrução e julgamento (artigo 399), que reclama a observância de todas as formalidades legais; c) das alegações finais (artigo 403 e 404, parágrafo único), que reclama a observância do efetivo contraditório; d) e de outros atos que se mostrem necessários para o exercício da ampla defesa no curso do processo.

Significa dizer que, uma vez declarada a nulidade de qualquer desses atos, a sentença condenatória será nula, como efeito lógico do reconhecimento da nulidade do(s) ato(s) anterior(es).

Portanto, a sentença condenatória não prejudica o exame do Habeas Corpus que ataca o recebimento da denúncia. Pelo contrário, é a eventual procedência do pedido de trancamento do processo veiculado em sede de Habeas Corpus que prejudica a sentença condenatória.

Essa mesma lógica faz com que, por exemplo, a despeito da superveniente prolação de sentença condenatória, o mérito das impetrações dirigidas contra outros atos praticados no curso do processo ou até mesmo na fase da investigação seja devidamente enfrentado, acarretando, como consequência, a nulidade dos atos posteriores e, inclusive, da própria sentença.

Lembremos, a propósito, o famoso caso Bendine, em que a defesa buscava, em sede de Habeas Corpus, o reconhecimento da nulidade da decisão do juiz que indeferiu pedido de apresentação de alegações finais após as alegações finais dos réus colaboradores.

Naquele caso, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça havia rejeitado o Habeas Corpus, sob a alegação de que "a superveniência da sentença penal condenatória" tornaria "esvaída a análise da nulidade" processual [3].

Entretanto, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no exame de Habeas Corpus impetrado contra o acórdão prolatado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, não só reconheceu a nulidade da decisão do juiz que indeferiu o pedido da defesa de apresentação das alegações finais após as alegações finais dos delatores, como também anulou "os atos processuais subsequentes ao encerramento da instrução processual" [4].

Podemos citar, igualmente, como exemplo de contaminação da sentença por um ato processual que a precedeu, o HC 292.563, julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, oportunidade em que se concluiu pela concessão da ordem para declarar nulas as audiências em que ouvidas as testemunhas, por falta de intimação do advogado constituído pelo acusado, "bem como a sentença condenatória" [5].

Tanto num, como no outro caso, a prolação de sentença condenatória não impediu o conhecimento do Habeas Corpus para a declaração da nulidade de atos anteriores à sentença, que acabou invalidada como consequência do reconhecimento da nulidade dos atos anteriores.

A propósito especificamente do tema da superveniência de sentença condenatória na pendência de Habeas Corpus impetrado para pedir o trancamento do processo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC 70.290 [6], decidiu pela obrigatoriedade de se enfrentar o mérito do writ, ainda que tivesse sido prolatada sentença condenatória no curso da impetração.

Como didaticamente explicado pelo ministro Sepúlveda Pertence na oportunidade, "não é que o advento da sentença, por si só, convalesça a nulidade do processo por inépcia da denúncia, mas sim, e apenas, que a decisão condenatória impede, pela preclusão, a alegação posterior do vício; não, porém, o julgamento da precedente arguição de inépcia".

Com efeito, o que se impede, pela preclusão, é que, após a sentença, a defesa aparelhe impetração originária buscando atacar o recebimento da denúncia, mas nunca, jamais, "o julgamento da precedente arguição de inépcia".

Nesse mesmo sentido, também decidiu a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal que a alegação de inépcia ou falta de justa causa não fica prejudicada quando "a sentença é proferida na pendência de habeas corpus já em curso" [7].

Aliás, de acordo com julgados mais remotos da Suprema Corte, "o defeito da peça acusatória é de tal ordem que, premonitoriamente, contamina o julgamento que a tem como suposto" (HC 61.857. 8.6.4, ministro Rafael Mayer, RTJ 110/1.062), já que a sentença, para julgar procedente a denúncia, terá se baseado "em peça processual defeituosa" (RTJ 42/455, STF, ministro Prado Kelly).

O Superior Tribunal de Justiça também decidiu, com acerto, no passado, que "a preclusão acerca dos defeitos da denúncia só ocorre quando não arguida antes da sentença condenatória; se esta última é proferida na pendência de 'writ', nada obsta a apreciação do alegado no remédio heroico (Precedentes do Pretório Excelso)" [8].

Ademais, a mera prolação de sentença condenatória não garante, a priori, a plena aptidão da inicial acusatória e a existência de provas da autoria e materialidade delitivas, competindo ao tribunal o exame caso a caso, sem prejuízo da apelação.

Poderíamos ainda elencar outras razões, como por exemplo a de que a decisão pela prejudicialidade do Habeas Corpus aparelhado antes da sentença condenatória depõe contra o direito fundamental à prestação jurisdicional em tempo razoável, prevista no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.

Com efeito, fossem observados os prazos legais e regimentais, haveria tempo suficiente para se julgar os Habeas Corpus e eventuais recursos ou impetrações substitutivas por todas as instâncias, antes da sentença.

Portanto, apesar da atual jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça, como do Supremo Tribunal Federal, posicionar-se de maneira diversa, entendemos, por razões de ordem lógica e legal, ser equivocada a conclusão de que a superveniência de sentença condenatória na pendência de Habeas Corpus impetrado para pedir o trancamento do processo, por inépcia da denúncia ou por falta de justa causa, prejudica automaticamente a impetração.

 


[1] Por uma questão "de boa técnica", falaremos em trancamento do processo, ao invés de trancamento da ação penal. A propósito, vide Aury Lopes Júnior, Direito Processual Penal, 10ª edição, p. 353.

[3] STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 437.855-PR, rel. ministro FELIX FISCHER, DJe 23/5/2018.

[4] STF, 2ª Turma, HC 157.627, redator do acórdão ministro RICARDO LEWANDOWSKI, DJe 17/3/2020.

[5] STJ, 6ª Turma, HC 292.563/MT, rel. ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, DJe 27/8/2018.

[6] STF, Tribunal Pleno, HC 70.290, rel. ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 13/6/1997.

[7] STF, 1ª Turma, HC 96.050, relatora min. CÁRMEN LÚCIA, DJ 17/12/2010.

[8] STJ, 5ª Turma, RHC 7641/SP, rel. min. FELIX FISCHER, DJ 19/10/1998.

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