Garantias do Consumo

Geni, a pedra e a Súmula 385 do STJ

Autor

  • Fabio Schwartz

    é doutor em Direitos Instituições e Negócios pela Universidade Federal Fluminense mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Universidade Cândido Mendes autor do "Manual de Direito do Consumidor – Tópicos & Controvérsias" (Editora Processo) e defensor público do estado do Rio de Janeiro.

9 de março de 2022, 8h00

Composta por Chico Buarque em 1978 como parte do espetáculo "Ópera do Malandro", a música "Geni e o Zepelim" conta a história de uma meretriz hostilizada na sua cidade pelo seu modo de vida [1]. A canção se transformou em uma espécie de senha para se referir às pessoas que em determinadas circunstâncias, tornam-se alvo de discriminação e execração pública [2].

Pois bem, passados alguns séculos desde as ordenações do rei, (ordenações afonsinas, seguidas pelas ordenações manuelinas e estas pelas ordenações filipinas), as quais estabeleciam a tão temida pena de degredo para os que não pagassem suas dívidas [3], observa-se ainda no século 21 imenso desprezo e ressentimentos pela figura do devedor [4].

Não foi por outro motivo que o projeto de lei que tratava do fenômeno do superendividamento, mesmo precedido de amplo debate na sociedade, através de inúmeras audiências públicas realizadas por todo país, com a presença de uma enorme gama de entidades representativas dos consumidores, gestou por mais de uma década no Congresso Nacional, até sua devida aprovação.

Assim é que até este advento, tínhamos no Brasil a esdrúxula situação em que às pessoas jurídicas era disponibilizada imprescindível ferramenta para recuperação de suas dívidas, antes da decretação da falência, ao passo que à pessoa física só restava um caminho: a insolvência civil. Situação em total afronta ao princípio da isonomia, ante o discrimen injustificado e, ainda, ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Tais fatos apenas demonstram os resquícios de uma arraigada ojeriza pela figura do devedor pessoa física, que na atual sociedade do consumo, onde o ato de consumir se tornou um requisito de pertencimento e aceitação social, não pode continuar a ser visto como uma verdadeira encarnação diabólica e nem, tampouco, como um objeto a ser disposto pelo credor, tal qual no Direito Romano [5].

Todo esse introito é para falar de uma pedra atirada sobre os consumidores devedores nos dias atuais, que é a Súmula 385 do STJ. A referida súmula dispõe que: "Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento".

A aplicação rigorosa da súmula implica que, havendo qualquer inscrição anterior, mesmo que apenas uma (não importando as circunstâncias que a tenham gerado), ao consumidor será negado o direito de compensação por eventuais danos morais, lhe restando apenas a pretensão do cancelamento do registro.

É bem verdade que a referida súmula foi flexibilizada em acórdão relativamente recente da 3ª Turma do STJ, da lavra da ministra Nancy Andrighi, onde restou reconhecido o direito a compensação por danos morais decorrente da inscrição indevida do nome do consumidor em cadastro restritivo, ainda que não tenha havido o trânsito em julgado das outras demandas em que se apontava a irregularidade das anotações preexistentes, desde que o consumidor apresente elementos aptos a demonstrar a verossimilhança de suas alegações [6].

Assim, o consumidor pode comprovar, por exemplo, que a anotação foi fruto de fraude em razão de furto de seus documentos, mediante a juntada do registro de ocorrência nos autos. Entretanto, a despeito do pequeno alívio na situação do consumidor decorrente do citado precedente, a questão ainda não se encontra tratada, data máxima vênia, com a devida acuidade.

Ora, a recente Lei 14.181/21 (lei que introduziu a prevenção e tratamento do superendividamento do consumidor) vedou expressamente situações infelizmente corriqueiras no mercado de consumo, tal como a prática de assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente direcionada ao consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada. São situações que, aliadas ao fornecimento irresponsável de crédito, e com origem em prática abusiva, não raras vezes redundam no superendividamento e na consequente negativação do nome do consumidor em banco de dados.

Importante pontuar que, tendo a referida lei instituído a figura já conhecida na doutrina do superendividamento passivo, ou mesmo o ativo inconsciente, a quem se direciona um tratamento diferenciado com vistas a repactuação das dívidas do consumidor de boa-fé, vítima de acidentes corriqueiros da vida, a Súmula 385 precisa ser atualizada, de forma que tais situações não sejam impeditivas para que o consumidor se veja compensado em razão de superveniente anotação irregular em banco de dados.

É preciso deixar marcado que a compensação por danos morais, em tais casos, não se daria por eventual abalo ao crédito do consumidor, que de fato já se encontraria comprometido. Em verdade, a razão primordial é a situação periclitante daquele que, estando de boa-fé, luta para pagar suas dívidas e mesmo assim passa a ter anotações supervenientes indevidas, capaz de lhe retirar a paz de espírito e provocar abalo emocional, que repercutem negativamente em vários aspectos de sua vida, tal como a produtividade, desempenho social e relação familiar [7].

Não se pode olvidar de outros impactos observáveis em indivíduos superendividados, os quais são marcados por estados depressivos, tendências suicidas, abuso de substâncias químicas, revolta e etc [8].

Ora, a sociedade mudou, e o ato de consumo se travestiu em hiperconsumo, fenômeno caracterizado pelo comportamento generalizado dos indivíduos, os quais são orientadas por um novo modo de vida marcada por uma crescente propensão ao consumo secundário, que inclui, em grande maioria, bens ou serviços supérfluos, em razão de seu significado simbólico atribuído pelos meios de comunicação de massa e as redes sociais, tal como prazer, sucesso e felicidade. Desse modo, o agir das pessoas se encontra substancialmente alterado, diante do poder das forças econômicas que agem fortemente na sociedade contemporânea [9].

Não é, portanto, apenas uma questão de reputação. Os danos morais também atingem aspectos íntimos da personalidade humana, não se restringindo a consideração social, mas repercutindo, em muitos casos, na própria consideração pessoal do consumidor, que além da exclusão social advinda da sua saída compulsória do mercado de consumo, ainda se vê excluído da possibilidade de compensação por violações de direitos atinentes a sua personalidade [10].

Além disso, na sociedade de consumo moderna é preciso buscar uma mudança de paradigma da responsabilidade civil, de forma que não se deve focar preocupação unicamente no dano (já consumado), mas deter-se na sua efetiva prevenção [11], de forma que condutas de igual teor depreciativo não se repitam, principalmente no caso de anotações comprovadamente dolosas ou decorrentes de culpa grave do fornecedor, sendo este, inclusive, um direito básico do consumidor, instituído no artigo 6º, inciso VI do CDC.

Da forma como está, observa-se odienta presunção de que todo aquele que possui anotação por dívida em banco de dados estaria de má-fé, não sendo sujeito de compensação pelas agruras decorrentes de anotações supervenientes indevidas, além da amarga pecha de mal pagador, obviamente recrudescida em casos tais.

Também não pode ser deixado de lado outro motivo importante para a atualização da referida súmula, que é o desenvolvimento da tese do Desvio Produtivo do Consumidor, amplamente aceita nos tribunais brasileiros, e que prescinde de aspectos anímicos, estando atrelada às atividades existenciais da pessoa que perde seu tempo vital para desconstituir eventual anotação irregular em seu desfavor [12].

Em tais hipóteses, relegar ao consumidor apenas a possibilidade de cancelamento da anotação, impedindo não só a compensação por danos morais stricto sensu, mas bem como a compensação pelo dano moral decorrente do desvio produtivo, se afigura absolutamente inadequado e em descompasso com a realidade social.

Portanto, a título de conclusão, é preciso dizer que o indivíduo de boa-fé que busca ativamente a equalização de suas dívidas e se vê surpreendido com outras anotações injustificadas tem sim violado um direito personalíssimo, sendo, portanto, benemérito de compensação financeira por tal acontecimento. Não é preciso esperar o zepelim, afinal, o consumidor devedor não foi feito para apanhar e nem tampouco para cuspir.


[1] A letra da música, na íntegra, pode ser consultada em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/77259/.

[2] Oliveira, Mário Oscar Chaves. Joga Pedra na Geni. Artigo publicado no site Migalhas, em 30 de março de 2011. Consultado em 14 de fevereiro de 2022.

[3] TORRES, Simei Maria de Souza. O degredo como punição: a pena de degredo para o Brasil no Livro V das Ordenações Filipinas. Revista do Corpo Discente do PPG-História da UFRGS. Disponível em: file:///C:/Users/00284941727/Downloads/73080-314777-1-PB.pdf. Consultada em 18 de fevereiro de 2022.

[4] A pena de degredo no Direito Português consistia em uma espécie de exílio, em que a pessoa era enviada a um outro país por determinado período de tempo como represália pelo não pagamento de suas dívidas.

[5] CASTRO NEVES, José Roberto de. As garantias do cumprimento da obrigação. Revista da Emerj, nº 44. Disponível em: Revista44.pdf (tjrj.jus.br). Consultado em 17 de fevereiro de 2022.

[6] STJ. REsp 1.704.002-SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 11/2/2020.

[7] BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Núcleos de Conciliação e Mediação de Conflitos nas situações de Superendividamento: Conformação de Valores na Atualização do Código de Defesa do Consumidor com a Agenda 2030. Revista de Direito do Consumidor, vol. 138, p. 50/68. São Paulo: RT, Novembro-Dezembro, 2021.

[8] Ibidem.

[9] SCHWARTZ, Fabio. Hiperconsumo & Hiperinovação: Combinação que desafia a qualidade da produção. Curitiba: Editora Juruá, 2016, p. 34.

[10] ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano Moral e Indenização Punitiva: Os Punitive Damages na Experiência do Common Law e na Perspectiva do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, p. 39, 2009.

[11] Ibidem, p. 314.

[12] DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: O prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2ª ed., revista e ampliada. Edição Especial do Autor, Vitória, ES, 2017.

Autores

  • é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito Econômico e especialista em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil, além de autor do livro "Direito do Consumidor: Tópicos & Controvérsias".

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