Consultor Tributário

O que o Fisco inventa para resistir ao cumprimento de decisões judiciais

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

9 de março de 2022, 8h00

Ainda em 2017, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da inclusão, na base de cálculo do PIS e da Cofins, do montante representado pelo ICMS destacado nas notas fiscais de saída. A tese, amplamente debatida à época, não será rediscutida aqui: lembre-se apenas que o valor correspondente ao imposto estadual não integra o faturamento do contribuinte, pelo que PIS e Cofins não podem incidir sobre ele.

Spacca
Mesmo depois de fixada a tese, em face da qual a maioria dos Ministros do STF já havia se definido até muito antes, a Fazenda continuou insistindo em não a observar. Interpôs embargos de declaração, postulando a modulação de efeitos e suscitando dúvidas sobre a forma como a referida exclusão deveria ocorrer (se o ICMS destacado, ou o efetivamente pago por cada contribuinte). Até aí, as dúvidas talvez fossem legítimas, e o instrumento processual que as suscitou, também.

Julgados os declaratórios, em maio de 2021, no qual se procedeu à modulação de efeitos, e se esclareceram as questões levantadas pela Fazenda, imaginava-se que a Fazenda finalmente passaria a observar o que restara decidido pela Corte. Aliás, o correto seria adotar de ofício o entendimento firmado pelo STF em relação a todos os contribuintes, até como forma de prestigiar a igualdade, a harmonia entre os poderes, e reduzir a litigiosidade. Mas não é isso o que se tem observado.

No campo do cumprimento de sentença, etapa do processo na qual aqueles que questionaram o tema em juízo estão pleiteando o respeito ao que restou decidido, estão sendo inventadas novidades bastante inusitadas, as quais protraem ainda mais a execução do julgado.

Há situações nas quais o contribuinte iniciou o cumprimento de sentença, e os cálculos apresentados (referentes à quantia a ser devolvida) foram impugnados antes de 2021, usando-se como argumento a pendência dos embargos declaratórios opostos lá ao leading case. Na época, segundo o Fisco, ainda não se sabia se o ICMS a ser excluído seria o pago, ou o destacado… Ainda não se sabia se haveria modulação… Esses foram os motivos, ou argumentos, apresentados pela Fazenda para se opor aos cálculos, e o Judiciário, em regra, concedeu-lhe a oportunidade de aguardar o pronunciamento do STF.

Esclarecidas as dúvidas, no julgamento dos declaratórios opostos ao RE 574.706, em maio do ano passado, imaginava-se que as decisões seriam cumpridas. Afinal, o único óbice colocado pela Fazenda, nas impugnações ao cumprimento de sentença que apresentou à época, foram aqueles que pendiam de análise pelo STF nos tais declaratórios opostos ao leading case. Definida a modulação de efeitos a partir de março de 2017, e a tese de que o ICMS a ser excluído seria o destacado nas notas, as execuções de sentença poderiam prosseguir, até porque as impugnações seriam todas julgadas no mesmo sentido do precedente firmado com repercussão geral.

Foi quando surgiram invenções notáveis, uma de cunho material, outra de cunho processual.

No campo do Direito Material, ao lado de outras questões específicas que podem ter sido suscitadas em um ou outro processo, a Fazenda passa a defender, na generalidade deles, a necessidade de se excluir o ICMS também do montante dos créditos de PIS e Cofins, no que tange àqueles contribuintes optantes pela sistemática da não-cumulatividade. E, no campo do Direito Processual, alega que o julgamento dos declaratórios ao leading case seria um "fato novo", em função do qual seria preciso dar a ela oportunidade para impugnar de novo os cálculos apresentados, usando outros argumentos, e assim se opor novamente ao cumprimento de sentença em curso.

Veja-se. A tese do Fisco é a de que, em um primeiro momento, quando apresentou impugnações aos cumprimentos de sentença dirigidos contra si nos processos que se achavam em curso, preocupava-se apenas com a modulação, e com a tese do “pago x destacado”. Mas agora que tais teses estariam resolvidas, gostaria de suscitar outras, como a da necessidade de se excluir o ICMS também do crédito de PIS e Cofins aproveitado por aqueles contribuintes sujeitos ao regime não cumulativo.

Examinemos primeiro a questão processual.

Apresentada a impugnação ao cumprimento de sentença, cabe ao executado arguir toda a matéria de defesa, que, lembre-se, é reduzida, em atenção à coisa julgada formada na sentença de cujo cumprimento se cogita. Não se pode reabrir qualquer discussão. Saber se o indébito a ser restituído deve ser apurado com a exclusão do ICMS também dos créditos de PIS e Cofins não cumulativos é matéria que deveria ter sido suscitada na contestação, no processo de conhecimento, não no cumprimento de sentença. Mas, mesmo que se admita revolver esse assunto na impugnação ao cumprimento de sentença, isso deve ser feito quando da apresentação dessa impugnação.

Se o Fisco desejava questionar a tese do "pago x destacado", a modulação, e também a tese da exclusão do ICMS do montante dos créditos, deveria tê-lo feito conjuntamente, em argumentos sucessivos, na peça de impugnação que apresentou ao cumprimento de sentença. É incompatível com a ideia de processo, de preclusão e de celeridade, a pretensão de ficar apresentando impugnações seguidas de outras impugnações, como se o processo pudesse recomeçar, do zero, sempre que a Fazenda inventa um novo argumento para se opor à pretensão do contribuinte.

Quanto ao direito material, a tese da exclusão do ICMS dos créditos de PIS e Cofins é tão equivocada quanto à pretensão de reabrir fases processuais encerradas para discuti-la. É que o PIS e a Cofins, diversamente do IPI, e do ICMS, seguem a não-cumulatividade pelo regime “base sobre base”, e não “imposto sobre imposto”. Ou seja, os créditos são apurados a partir dos valores das entradas, não a partir dos montantes de tributo efetivamente pagos nas etapas anteriores. Além de assim estar expressamente disposto nas Leis 10.833 e 10.637, trata-se de uma necessidade decorrente do fato de que, em relação a tais contribuições, convivem contribuintes na sistemática cumulativa, e contribuintes na sistemática não-cumulativa, sendo inviável aos últimos saber como e quanto seus fornecedores pagam de PIS e Cofins. Em suma, o crédito é apurado com a aplicação das alíquotas de 7,6% e 1,65% sobre o valor das entradas, pouco importando quanto se pagou de PIS e Cofins na operação anterior.

Daí por que é duplamente absurdo pretender apresentar nova impugnação ao cumprimento de sentença, depois da definitiva rejeição daquela que fora tempestivamente apresentada, e ainda fazê-lo para debater tema desprovido de fundamento jurídico sólido. Transparece a impressão de que o propósito, de fato, é apenas o de inventar óbices para protelar, ao máximo, o cumprimento de uma decisão judicial. Postura não saudável de se adotar, em um Estado que se pretende Democrático de Direito, notadamente quando adotada por ele próprio, o Estado. Recrudesce no cidadão o sentimento de que a lei “só vale contra ele”, o que não é favorável a que se obtenha maior adesão e eficácia à ordem jurídica.

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    é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

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