Opinião

Negócios jurídicos complexos multi-instrumentalizados e causa supracontratual

Autor

  • Paulo Henrique Berehulka

    é advogado sócio fundador do escritório Berehulka & Agostini Sociedade de Advogados MBA em Capital Markets especializado em Administração Gestão Empresarial e Geral especializado em Direito Aplicado pela EMAP.

9 de março de 2022, 7h02

Os negócios jurídicos podem ser simples ou complexos. Embora existam digressões doutrinárias avançadas sobre o tema, basicamente se distinguem estas espécies quando se identificam, dentro de um mesmo instrumento contratual, estipulações que se refiram a mais de um tipo de obrigação. Estas podem ser acessórias, complementares e/ou encadeadas. A título de exemplo, verifica-se o contrato de empréstimo financeiro (mútuo), que, dentro de um mesmo instrumento, estipula garantias hipotecárias, cláusulas-mandato, etc.

A doutrina [1] se preocupou em analisar a relação intrínseca destas cláusulas no âmbito da investigação das invalidades. Teorias se criaram para identificar o negócio típico principal, de forma a atribuir a natureza acessória e/ou complementar às demais disposições, o que permite, por aplicação do direito positivo, impingir a subsistência (ou não) de um negócio que venha a ser acometido por nulidades e anulabilidades.

Porém, sentimos falta de uma doutrina [2] moderna que busque o adensamento necessário sobre negócios jurídicos complexos, que se materializam através da coligação de contratos típicos e atípicos.

A clássica [3] teorização orienta que cada instrumento deve ser analisado de forma isolada a fim de se identificarem potenciais nulidades específicas. Constatadas eventuais invalidades pontuais, passa-se a cogitar a subsistência do negócio jurídico como um todo, a depender do grau de afetação. Porém, tal método retira do espectro de análise um fator fundamental: a causa fulcral do negócio jurídico, bem como as razões pela qual se deu através da coligação de contratos, ou seja, de maneira multi-instrumentalizada.

A causa no direito brasileiro não consta no rol dos elementos do ato jurídico. Esta ausência é entendida por alguns [4] como se o legislador estivesse a discriminar, propositadamente, sua (ir) relevância para o campo da hermenêutica das manifestações de vontade.

No entanto, salta aos olhos outras codificações [5] com origem no civil law identificarem a a causa como elemento do negócio jurídico. E vão além, pois, doutrinariamente [6], elegem-na fator determinante na análise de qual o regime jurídico deverá ser aplicado à hermenêutica das exteriorizações de vontade direcionadas à realização de transações com nexos funcionais.

Esta identificação da causa se torna mais evidente quando se está a analisar negócios jurídicos complexos e materializados através de contratos coligados. Explica-se: um único negócio jurídico pode se dar através da multiplicidade de avenças, inclusive entre sujeitos distintos e com objetos típicos (ou não) distintos, que se desenrolam, por vezes, em uma régua temporal não imediata, mas que se conectam através de uma única causa e com nexo funcional interdependente.

Nestes casos, é possível se verificar que o núcleo do elemento decisório de cada uma das partes, com relação aos objetos explícitos individualmente em cada avença, reside na existência de uma conexão maior, e na certeza de que os contratos fazem parte de um nexo de funcionalidade integrativa. Não sem razão, os estudiosos cunharam o conceito de causa supracontratual [7], o qual adotamos.

Em análise reversa, vale dizer que, nos negócios jurídicos complexos materializados através da coligação de contratos, se for subtraída a causa supracontratual, cada um dos contratos perde a razão de existir de persi. O elemento decisório – embora manifestado em cada instrumento quanto ao seu objeto, tem por objetivo específico o atingimento de uma transação única, ocasionalmente materializada apenas no último instrumento da coligação (chamado de contrato final ou contrato-desfecho).

Para o direito é extremamente relevante a identificação do elemento causal dos atos jurídicos, pois ali estão as circunstâncias que podem atribuir a nulidade ou validade a um negócio jurídico. Uma vez identificada a causa supracontratual, todos os demais contratos coligados se vinculam a ela, e, portanto, devem ser interpretados sob o mesmo plexo normativo, axiológico e teleológico.

Essa identificação do regime jurídico aplicável à coligação contratual tem razão na aplicabilidade do comando gerado a partir do artigo 5o da LINDB [8]. Ora, se ao magistrado (ou árbitro) é determinado que se busque atingir os fins sociais a que a lei se dirige, torna-se ponto fulcral identificar qual é a lei aplicável para que, dentro do processo de hermenêutica, aplicação e integração do direito, possa o julgador perquirir quais são os fins sociais protegidos pela norma (teleologia e axiologia normativa).

Neste sentido, isolar os contratos coligados entre si, analisando-os exclusivamente sob regimes jurídicos próprios de sua tipicidade, sem se considerar a causa supracontratual, é o mesmo que atribuir fins sociais distintos à norma aplicável no contraste com os fins pretendidos pelos contratantes.

Outro ponto importante na identificação da causa supracontratual, e dar-lhe a devida relevância no processo hermenêutico, diz respeito à eficácia dos comandos identificados nos artigos 112 e 113 do codex civilista [9]. Em negócios jurídicos complexos, materializados por diversos contratos típicos/atípicos e coligados, torna-se mandatório ao julgador conhecer a causa supracontratual (tácita ou expressamente admitida pelas partes) para analisar se a linguagem insculpida nos instrumentos guarda a devida relação com a intenção das partes. De igual maneira, perscrutar a boa-fé dos contratantes, de modo a identificar se o comportamento das partes posteriormente à finalização dos contratos está aderente aos fins pretendidos, passa inexoravelmente pela identificação da causa supracontratual.

Na aplicação prática do direito, diante de um caso concreto de conflito entre múltiplas partes de um negócio jurídico complexo materializado por contratos coligados, há de se conhecer a extensão da coligação, de forma a se ter a correta abrangência da transação realizada. Defende-se, neste ponto, que o aplicador da jurisdição deve lançar mão das ferramentas de integração do direito, especialmente as previstas no artigo 4º da LINDB [10], que autoriza o uso integrativo da legislação alienígena congênere quando identificadas as lacunas no direito pátrio. Uma vez que a legislação nacional não trata especificamente da causa supracontratual como elemento do negócio jurídico complexo, mormente quando realizado por diversos contratos coligados típicos e atípicos, autorizado está o julgador a valer-se da heterointegração para reconhecer seu papel central na aplicação do direito.

Exemplo desta situação é a extensão dos efeitos da cláusula compromissória [11] sobre instrumentos que estejam coligados sob a mesma causa supracontratual. A indagação sobre a coligação (e sua extensão) torna-se de altíssima relevância, pois se estará a definir situações que podem acometer processos judiciais (e procedimentos arbitrais) com nulidades processuais capitais.

Mais um ponto prático é a aplicação do instituto da conversão substancial do negócio jurídico, prevista no artigo 170 do codex pátrio [12]. Corolário do princípio da preservação dos atos, a sua correta aplicação pelo julgador depende intimamente da análise dos elementos formadores da decisão dos contratantes na edificação do ato exteriorizado. Esses elementos, no caso da coligação de contratos, estão indelevelmente conectados à causa supracontratual, que deverá ser atendida na eleição do negócio jurídico resultante da conversão. 

Por fim, mas não menos importante, se defende a identificação da causa supracontratual para que os limites objetivos e subjetivos da lide (judicial ou arbitral) se estendam corretamente sobre o domínio de todos os contratos coligados que estejam sujeitos a ela. Em uma circunstância em que a jurisdição decida pela nulidade total de um contrato conectado a um negócio jurídico complexo e multi-instrumentalizado, torna-se essencial compreender a extensão da nulidade admitida, principalmente com vistas ao atendimento do comando preconizado no artigo 182 do Código Civil [13]. Para o correto restabelecimento do status-quo-ante, há de se admitir que a nulidade individual de um contrato coligado atinge todo o negócio jurídico adstrito. O mesmo se aplica, quando impossível o restabelecimento, na necessidade de se avaliar eventuais indenizações. Ou seja, todos os instrumentos contratuais que estejam conectados pela causa supracontratual devem ser atingidos pela decisão jurisdicional, sob pena dos efeitos do negócio jurídico subsistirem em partes acéfalas e sem conexão quanto à sua causa primaz.

 


[1] Ver RODRIGO XAVIER LEONARDO, em artigo com tema "As invalidades podem se propagar entre os contratos coligados?", publicado no site CONJUR em 05/11/18.

[2] Rendam-se louros aos trabalhos apresentados pelo Prof. Dr. FELIPE KIRCHNER, que em sua tese defendida perante a UFRGS, "Contratos Coligados: conformação teórica e pressupostos de responsabilidade civil"; bem como pela professora doutora JUDITH MARTINS COSTA, em brilhante artigo "O fenômeno da supracontratualidade e o princípio do equilíbrio: inadimplemento de deveres de proteção (violação positiva do contrato) e deslealdade contratual em operação de descruzamento acionário", publicada na Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 26, abr-jun 2006, p. 220.

[3] Ver PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Civil, TOMO III, págs. 239 e seguintes.

[4] Segundo os objetivistas, os negócios jurídicos se definem apenas e tão somente a partir da expressa declaração de vontade manifestada, sendo esta a única capaz de gerar, modificar ou extinguir relações jurídicas com amparo no direito, criando efeitos socialmente reconhecíveis.

[5] Trazem o elemento "causa" os códigos civis da França (artigo 1.108. "A obrigação sem causa, ou sobre uma falsa causa, ou sobre uma causa ilícita, não pode ter nenhum efeito") e da Itália (Artigo 1.325. "Indicação dos requisitos. Os requisitos do contrato são: 1) o acordo das partes […]; 2) a causa […]; 3) o objeto […]; 4) a forma, quando prescrita pela lei sob pena de nulidade"). Traduções livres.

[6] Ver MARIANA RIBEIRO SANTIAGO, em seu artigo "A repercussão da causa na teoria do Negócio Jurídico: um paralelo com a Função Social dos Contratos", publicado na Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, nº 58, p. 155-159, 2013.

[7] "(…) a teoria dos contratos conexos promove diversas e significativas rupturas com a visão clássica que instaura a teoria geral dos contratos. Acerca da organização teórica eu destacaria que a tese promoveu a organização dos elementos necessários ao reconhecimento da coligação entre os contratos, propondo que entre eles existe uma interdependência que promove a repercussão de uma série de consequências jurídicas derivadas da formação de uma causa supracontratual coordenada pela existência de um fim comum e de um nexo funcional, uma vez que os contratos individuais que integram a conexão só alcançam seu objetivo no contexto do conjunto contratual formado. Essas definições permitem separar casos de coligações de outras figuras (ex. contratos mistos)". FELIPE KIRCHNER, em entrevista à Associação dos Assistentes Judiciários do Rio Grande do Sul em 29/10/2021 (ver website https://adpergs.org.br).

[8] Artigo 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

[9] Artigo 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Artigo 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. §1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;  II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III – corresponder à boa-fé; IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. §2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

[10] Artigo 4º.  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[11] Ver CARLOS NELSON KONDER, em artigo de tema "O alcance da cláusula compromissória em contratos coligados: leitura a partir da tutela da confiança", publico na Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 63, ano 16, p. 295-331, Ed. RT, 2019.

[12] Artigo 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

[13] Art. 182. Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente.

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