Opinião

A guerra na Ucrânia e os riscos ambientais

Autor

  • Paulo de Bessa Antunes

    é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

8 de março de 2022, 16h13

A invasão injustificada e não provocada da Ucrânia por tropas da Federação Russa é fonte de enormes preocupações ambientais, dadas as peculiares condições do país. O observatório de conflitos e meio ambiente[2],  que é uma organização não governamental formada por pesquisadores da Escola de Direito de Harvard,  King`s College Londres, Ajuda do Povo Norueguês, Universidade de Edimburgo, Universidade de Leeds e pelos Cientistas para a Responsabilidade Global[3],  nos recorda que a região do Donbass (leste da Ucrânia) é uma das regiões mais industrializadas da terra, com cerca de 200 anos de história de mineração  de carvão e de indústrias pesadas. O conflito na região do Donbas, antes da atual invasão russa, já havia gerado pesada contaminação de águas subterrâneas em razão da inundação de minas de carvão. Em relação à guerra de 2022, a ONG afirma que a luta atual está "provocando riscos de emergências químicas devido ao número de instalações sensíveis próximas às linhas de contato".

O fim da União Soviética  fez com que a Ucrânia herdasse um imenso passivo ambiental gerado pela antiga URSS, sendo o maior deles as diversas consequências causadas pela tragédia de Chernobyl. Com efeito, a Constituição Ucraniana de 1996, com as emendas constitucionais de 2014[4] faz expressa a referência, no artigo 16, à escala global da catástrofe  que se deu, ainda, sob o regime soviético e cujas consequências são sentidas por toda a humanidade.

O mencionado artigo 16 determina que compete ao estado ucraniano garantir a segurança ecológica e manter o equilíbrio ecológico no território da Ucrânia para superar as "consequências da catástrofe de Chernobyl" e para "preservar o pool genético do povo ucraniano", demonstrando de forma inequívoca o impacto causado pela explosão do reator 4 da usina V.I. Lenin, aos 26 de abril de 1986, com elevadíssimos custos humanos e materiais causou no país[5].

O passivo ambiental soviético, no entanto, não se restringe a Chernobyl. A Ucrânia (cujo significado do nome é borda), muito embora correspondesse à uma pequena parcela do território da URSS, era responsável por cerca de 25% da produção industrial soviética e igual parcela do produto nacional bruto soviético[6].  A industrialização à moda soviética transformou a Ucrânia em uma "catástrofe ambiental". No período soviético, 11 das 65 cidades soviéticas mais poluídas estavam localizadas na Ucrânia. As regiões industriais de Donetsk,
Zaporozhe, Dnepropetrovsk, Cherkassy, Poltava, e  Ivano-Frankovsk foram denominadas como "zonas de calamidade ecológica". Cerca de 30 % da poluição atmosférica total da antiga União Soviética era produzida na Ucrânia.

O passivo ambiental soviético na Ucrânia não se limitou aos dados acima. Em 1988 forma emitidas na Ucrânia cerca de dez vezes mais s substâncias tóxicas do que em todo os Estados Unidos. Na mesma época, em 78 cidades ucranianas, os padrões de emissão de poluentes encontrados correspondiam a 60 vezes os limites legais. A água disponível para a população, não podia ser chamada de potável, pois   como herança do regime soviético podem ser contadas a presença de radionuclídeos (Chernobyl) na água ofertada à população. Aproximadamente 50 cidades lançavam esgoto no rio Dnieper, violando os padrões em cerca de 140 vezes o permitido.

Este passivo ambiental soviético, certamente será ampliado com as agressões russas que, evidentemente, levarão à uma drástica redução da qualidade ambiental do país. Não se esqueça que a Ucrânia possui 15 centrais nucleares[7] que, se forem envolvidas em atividade militares, podem representar um perigo real para o mundo inteiro. A usina de Zaporizhzhia já foi ocupada por forças russas, implicando em  preocupação da comunidade científica[8].

A vida independente da Ucrânia começou com enormes passivos ambientais deixados pela URSS e que não foram honrados pela Federação Russa que tem sido reconhecida pela comunidade internacional como sucessora da extinta União Soviética, tendo assumido o seu lugar no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Apesar disso, a Ucrânia tem procurado estabelecer uma moderna legislação de proteção ambiental, levando o tema ao nível constitucional.

O artigo 43 da Constituição ucraniana reconhece o direito ao ambiente de trabalho seguro e a um razoável padrão de vida que são direitos semelhantes aos existentes na Constituição do Brasil. É nos artigos 50 e 66, no entanto, que se encontra o cerne do direito ambiental ucraniano que, é muito parecido com o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil.

"Constituição da Ucrânia
Artigo 50 – Todos têm direito a um ambiente seguro para a vida e para a saúde, e à indenização pelos danos infligidos pela violação deste direito.
A todos é garantido o direito de livre acesso à informação sobre a situação ambiental, a qualidade dos alimentos e dos bens de consumo, e também o direito a divulgação tais informações.
ninguém deve tornar essas informações secretas.
Artigo 66 –  Todos são obrigados a não danificar a natureza e  o patrimônio cultural e a indenizar o dano que ele ou ela infligiu.
Constituição do Brasil
Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.….
§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados."

A Lei de Proteção Ambiental [LPA] ucraniana de 1996[9] estabelece os direitos e obrigações ambientais dos cidadãos. Vale notar que a participação cidadã é amplamente assegurada.  Resumidamente, o artigo 9 da  LPA assegura aos cidadãos os seguintes direitos: ao (1)  meio ambiente,  à (2) participação na discussão  de projetos de lei matérias relativas à à localização, construção e reconstrução de projetos  que possam afetar a condição do meio ambiente, e a apresentar propostas aos órgãos estatais e econômicos,instituições e organizações sobre essas questões; à (3) participação no desenvolvimento e implementação de medidas de proteção ambiental e à utilização racional e abrangente de recursos naturais; a (4)  participar  do aproveitamento geral e especial dos recursos naturais; à  (5) associação  em organizações ambientais não governamentais;  a (6)  receber informações completas e fidedignas sobre as condições do meio ambiente e seus efeito sobre a saúde da população; à (7) participação  na realização de eventos ecológicos públicos; a (8)  receber  educação ecológica; a (9) propor ações  contra órgãos do Estado, empresas, instituições, organizações e cidadãos para a obtenção de indenização  por danos causados à saúde e à propriedade dos cidadãos em consequência dos danos ambientais.

A garantia dos direitos acima mencionados está prevista no artigo 10 da LPA mediante a adoção das seguintes medidas:  a (1) ação estatal em larga escala para apoio, regeneração e melhoria do meio Ambiente; a (2) obrigação de que  os ministérios, órgãos, empresas, instituições e organizações adotem medidas técnicas e outras para a prevenção dos efeitos adversos da atividade econômica  sobre o meio ambiente, com o cumprimento  dos requisitos ecológicos durante o planejamento e a localização, a construção e operação de atividades econômicas; a  (3) participação de associações não governamentais e de cidadãos nas atividades de proteção ambiental; o (4) exercício do controle estatal e público sobre o cumprimento da legislação de proteção ambiental; a (5)  compensação, conforme estabelecido em lei, dos danos causados à saúde e à propriedade dos cidadãos em consequência da violação da legislação ambiental, a (6) responsabilização  por violação da legislação ambiental pelas  atividades  que impeçam o exercício dos direitos dos cidadãos ao meio ambiente seguro e seus demais direitos, sujeitando os infratores à suspensão de suas atividades, mediante processo legal.

Ainda no que tange aos instrumentos legais para a proteção dos direitos ambientais dos cidadãos, o artigo 11 da PLA estabelece que a  Ucrânia deve garantir aos seus cidadãos o exercício dos direitos ecológicos que lhes foram concedidos pela legislação. Dessa forma, o Conselho de Deputados do Povo, os órgãos de administração do Estado, especialmente aqueles autorizados no domínio da proteção do ambiente e da utilização dos recursos naturais devem  prestar assistência integral aos cidadãos na prossecução da atividade de proteção do ambiente, para levar em consideração suas propostas sobre a melhoria das condições do meio ambiente e da utilização racional dos recursos naturais e envolver os cidadãos na resolução de questões de relativas à proteção ambiental e ` utilização dos recursos naturais.

O Poder Judiciário tem ampla autoridade para restaurar os direitos ambientais violados, assim como no Brasil. Em relação à efetividade da proteção judicial do meio ambiente na Ucrânia, ressalte-se que aos 31 de julho de 2008[10], um tribunal ucraniano determinou que o Ministério da Proteção Ambiental estabelecesse uma política para a redução de gases de efeito estufa [GEE], de modo a dar cumprimento às obrigações nacionais decorrentes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, do Protocolo de Kyoto e da obrigação de informar o público sobre os problemas ambientais. Em 2009, a organização não governamental Ambiente — Povo — Direito [APD] processou o Gabinete de Ministros da Ucrânia e a Agência Nacional de Investimentos Ambientais[11]  com o objetivo de obrigar a divulgação de informações sobre o comércio internacional de emissões de gases de efeito estufa. A APD  procurou especificamente informações sobre o acordo entre a Ucrânia e o Japão, no qual o governo japonês comprou 30 milhões de toneladas de compensações de carbono do governo ucraniano. A EPL sustentou que tanto a Convenção de Aarhus quanto a Constituição da Ucrânia determinam o acesso público à informação.

Em 17 de junho de 2010, o Tribunal Administrativo de Lviv entendeu parcialmente procedente a demanda, tendo reconhecido que o Gabinete de Ministros e a Agência Nacional de Investimentos Ambientais agiram ilegalmente ao não fornecer aos demandantes as informações sobre o comércio internacional de emissões de GEE, determinado que os réus fornecessem essas informações. No entanto, o tribunal indeferiu o pedido da organização não governamental no que tamge às informações sobre o preço das cotas de emissão de GEE como parte do comércio de emissões com o Japão. A APD recorreu desta parte da decisão.

Pelo que se viu, a Ucrânia herdou um pesado passivo ambiental da extinta URSS, sendo certo que a ocupação do leste da Ucrânia por forças rebeldes ao governo de Kiyv gerou enormes passivos ambientais que tendem a se ampliar com a presente guerra. Por outro lado, os riscos referentes à poluição, em especial à nuclear são reais diante da guerra. Para a defesa do meio ambiente, da vida e dos bens ucranianos e urgente que a paz seja estabelecida urgentemente.

[3] Disponível em < https://ceobs.org/about/ > acesso em 06 mar 2022

[6] SAK, Pamela Bickford. Environmental Law in Ukraine: From
the Roots to the Bud.
Disponível em < https://escholarship.org/content/qt6bd236s5/qt6bd236s5.pdf?t=mv7vne > acesso em 06 mar 2022
 

[8] Disponível em < https://www.nature.com/articles/d41586-022-00660-z > acesso em 06 mar 2022

Autores

  • Brave

    é advogado, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), presidente da Comissão de Direito Ambiental do IAB e membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN.

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