Opinião

Ingresso do Brasil na OCDE e padrões em matéria digital

Autor

  • Fabricio Bertini Pasquot Polido

    é professor associado de Direito Internacional Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas em L.O. Baptista.

7 de março de 2022, 6h11

Nas últimas semanas, o processo de adesão do Estado brasileiro à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem sido destaque nos meios acadêmicos e mídias especializadas, sobretudo pela relevância histórica que ela representa para o direito internacional. Concebida em 1948, poucos anos após o término da Segunda Guerra, como Organização Europeia de Cooperação Econômica (OCEE), a instituição serviu de instrumento para administrar o Plano Marshall e reconstruir os países da Europa. Invariavelmente, os mecanismos de cooperação multilateral na área econômica serviram para incentivar que países reconhecessem a interdependência de suas economias domésticas e abandonassem projetos de feição nacionalista, como os que costumam vigorar em tempos de beligerância. Posteriormente, em 3 de setembro de 1961, entrou em vigor a convenção que transformava a OCEE na OCDE, de modo a abrir a estrutura da organização para novos Estados membros, que hoje totalizam 38, dentre os quais Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Austrália, Nova Zelândia, México, Chile, Colômbia e Coreia do Sul.

Em 2017, o Brasil requereu formalmente a acessão à OCDE, percurso nada intuitivo e que remonta a tratativas iniciadas na década de 1990 pelo Poder Executivo, passando pelos governos FHC, Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer [1]. Não se trata, portanto, de novidade da atual presidência de Jair Bolsonaro, mas antes de um processo de fortalecimento do multilateralismo e cooperação econômica que foi gradualmente incorporando países da região das Américas, Ásia e Oceania. Em geral, ele coincide com a exibição de indicadores favoráveis a níveis de investimentos, comércio e desenvolvimento pelos países candidatos e posteriormente membros.

Ao longo das últimas décadas, por sua vez, o Brasil seguia consistentemente sua trajetória de política externa de experimentar as vantagens comparativas e competitivas de participação em uma organização internacional. Se por um lado, nosso país hesitava em definitiva e formalmente concordar "ideologicamente" da OCDE, por outro, já ajustava seu sistema doméstico às normas, padrões e valores compartilhados pela organização, como foi possível observar nos campos de tributação, relações de trabalho e concorrência.

É necessário que os Estados membros atuais, por consenso, aceitem determinada candidatura para que a análise seja iniciada. De 2017 até o início desse ano, o Brasil aguardava o sinal verde para que o Conselho da OCDE pudesse iniciar as discussões sobre a adesão. Em 25 de janeiro de 2022, portanto, as discussões foram abertas, e nessa fase o Brasil será avaliado por comissões temáticas, a partir de procedimentos fundados por revisão de pares ("peer review"), que discutem o cumprimento de diretrizes e recomendações da OCDE em diversos setores, como meio ambiente, saúde, responsabilidade fiscal, tributação, combate à corrupção, proteção da concorrência e consumidor. A OCDE conta com atualmente 253 instrumentos jurídicos, entre tratados e convenções; decisões, declarações, recomendações e diretrizes, e o Brasil já aderiu a mais de 80 deles ao longo de décadas, tendo se tornado parceiro-chave da OCDE em 16 de maio de 2007. O Brasil é signatário da importante Convenção da OCDE sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros nas Transações Comerciais Internacionais (incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000), também uma das grandes inspiradoras da Lei Anticorrupção Brasileira de 2013, participa em comitês setoriais da OCDE e é membro do Centro de Desenvolvimento da OCDE.

Paralelamente à aceitação de abertura das discussões de adesão com outros seis candidatos ao lado do Brasil — Argentina, Bulgária, Croácia, Peru e Roménia, em janeiro deste ano, a Organização publicou o documento "Quadro de Considerações sobre Membros Prospectivos", no quais os países são analisados em seus progressos feitos desde os seus primeiros respectivos pedidos de adesão à OCDE. Para os próximos passos, serão elaborados roteiros individuais para o processo de avaliação detalhada, desde que esses países confirmem a sua adesão aos valores, visão e prioridades refletidos na Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE e na Declaração do Conselho Ministerial adotada em 2021. Os documentos reiteram objetivos da Convenção de 1960 que institui a OCDE, a que os novos membros devem aderir, e estabelecem os valores partilhados, incluindo a preservação da liberdade individual, democracia, Estado de Direito, proteção dos direitos humanos, além de economias de mercado abertas, comerciais, competitivas, sustentáveis e transparentes. Referem-se também ao compromisso dos membros da OCDE de "promover o crescimento económico sustentável e inclusivo e aos seus objetivos de combate às alterações climáticas, incluindo a inversão da perda de biodiversidade e desflorestamento" [2]. Desse modo, em um futuro protocolo de acessão à OCDE — documento que firma definitivamente a entrada de um Estado Membro — o Brasil deverá reconhecer que aceita os valores e se compromete para adequar suas instituições e quadro normativo domésticos aos instrumentos da OCDE, com prazos de implementação e submissão aos mecanismos de revisão periódica da organização.

E para a área digital, o que esperar? No processo de adesão, o Brasil será questionado, dentre outros, sobre ações de adequação de sua legislação e práticas internas a uma série de instrumentos da OCDE em temas envolvendo políticas de internet, privacidade de dados, segurança cibernética, proteção do consumidor online e propriedade intelectual. Cada área setorial da OCDE responde por um conjunto de políticas a serem adotadas pelos Membros e potenciais candidatos. A Organização já sinaliza seus objetivos para os próximos anos, com ênfase para os processos de digitalização, inovação científica e tecnológica. Conforme estabelecido na Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE — instrumento ao qual o Brasil deverá aderir —, Membros devem responder aos desafios trazidos pelos processos de digitalização da economia, transformação digital, em especial a integração da cadeia produtiva, indústria e negócios aos padrões digitais, além da evolução dos tradicionais padrões laborais e modelos de negócios na economia digital. Em matéria de segurança cibernética, por exemplo, o Brasil deverá comprovar que suas instituições respondem contra ameaças democráticas, privacidade e combate à desinformação online. Ao longo de 2022, é certo que esses temas entrem em mais evidência, particularmente pelas ameaças trazidas pelas ações de desestabilização das eleições, segurança da urna eletrônica, e ataques cibercriminosos às bases de dados e instalações informáticas de órgãos do governo e empresas.

Além desses objetivos, a OCDE prioriza iniciativas que estejam diretamente atreladas ao livre fluxo de dados e confiança digital [3]. Não basta a existência de uma Lei Geral de Proteção de Dados — a LGPD — e uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados no caso brasileiro, mas antes a consolidação de um desenho institucional dotado de efetividade e autonomia quanto à formulação de políticas e aplicação de decisões, além de princípios de transparência na composição de conselhos políticos. Práticas sólidas de cooperação digital por parte do Estado brasileiro também serão escrutinadas à luz das diretrizes mais recentes da organização, como os Princípios OCDE sobre Inteligência Artificial e objetivos de promoção do livre fluxo de dados com confiança e Princípios de Alto-Nível relativos ao Acesso Confiável de Governos a Dados Pessoais. Membros da OCDE, como na pretendida acessão do Estado brasileiro à organização, devem assegurar que padrões adequados de privacidade de dados estejam comprovados tecnicamente, com leis e regulamentos que estabelecem regras relativas às garantias de segurança e confiança de usuários de internet e consumidores digitais, especialmente jovens, além do combate à desinformação e promoção de princípios democráticos e dos direitos humanos associados às operações digitais.

As políticas do Estado brasileiro serão avaliadas nessa frente, por exemplo, os atos do Executivo, leis vigentes ou projetos de leis em tramitação no Congresso que estejam em desacordo com a organização. A OCDE, em suas funções institucionais, poderá fazer recomendações específicas ao Brasil para que sejam ajustadas leis existentes ou aquelas ainda em iniciativa legislativa. Por isso, serão críticas aquelas leis e normativas desconformes aos padrões da organização, como por exemplo, traduzidas por ações do Legislativo e Executivo que rebaixem direitos e liberdades de empresas de internet, usuários e cidadãos em geral (por exemplo, proibição de criptografia, obrigação de instalação de servidores no território brasileiro) prejudicando livre fluxo de dados, privacidade de dados e confiança nas soluções digitais.


[1] Importante destacar que em 3 de junho de 2015, Brasil e OCDE assinaram um acordo de cooperação, incorporado recentemente ao direito brasileiro por meio do Decreto nº 10.109/2019. Em 2017, sob a Presidência de Michel Temer, houve a formalização do pedido de acessão à OCDE que foi analisado pelo Conselho da Organização.

[3] Cf. Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE, p.4, disponível em: https://www.oecd.org/mcm/MCM_2021_Part_2_[C-MIN_2021_16-FINAL.en].pdf

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    é professor associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas em L.O. Baptista.

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