Diário de Classe

Direito centrado em direitos, princípios e democracia em Dworkin

Autor

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

5 de março de 2022, 8h00

Estamos habituados a compreender a ligação entre Direito e política como, no mínimo, temerária. Contudo, a partir dos ensinamentos de Ronald Dworkin, podemos concebê-la de uma forma positiva e até indissociável [1], sem que isso ressoe nas decisões judiciais de forma a chancelar o ativismo judicial. Nesse sentido, o autor advoga que "as decisões que os juízes tomam devem ser políticas em algum sentido" [2], num pressuposto intimamente atrelado à concepção de Estado de Direito por ele defendida — qual seja, uma visão centrada nos direitos [3]. Tal pressuposto também "exige, como parte do ideal do Direito, que o texto legal retrate os direitos morais e os aplique" e presume a existência de direitos e de deveres morais dos cidadãos entre si e de direitos políticos perante o Estado como um todo. Insiste ainda que esses direitos morais e políticos sejam reconhecidos no Direito positivo, para que possam ser impostos quando exigidos por cidadãos individuais, "por meio de tribunais e outras instituições judiciais do tipo conhecido" [4].

É com base no ideal de Direito centrado em direitos que posturas quanto às prestações jurisdicionais serão formuladas, devendo um juiz que segue essa concepção, num caso controverso, tentar idealizar algum princípio que, em sua percepção, capte os direitos morais das partes que são pertinentes ao caso em questão, de forma que tal princípio não seja incompatível com a legislação [5]. Nesse contexto, Dworkin arremata:

"Assim, um juiz que segue a concepção centrada nos direitos não deve decidir um caso controverso recorrendo a qualquer princípio que seja incompatível com o repertório legal de sua jurisdição. Mas, ainda assim, deve decidir muitos casos com base em fundamentos políticos, pois, nesses casos, os princípios morais contrários diretamente em questão são, cada um deles, compatíveis com a legislação" [6].

A premissa instiga o questionamento acerca da legitimidade do Judiciário para decidir questões políticas, uma vez que os juízes não são eleitos para seus cargos e não deveriam tomar decisões independentes no que diz respeito a modificar ou a expandir o repertório legal, "pois essas decisões somente devem ser tomadas sob o controle popular" [7]. Dworkin a conceitua, por fim, como argumento da democracia e o atrela à defesa da estabilidade política e da capacidade de o Legislativo tomar decisões políticas com maior exatidão e, principalmente, à equidade.

Ocorre que, nos dizeres de Dworkin, "os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos" [8], tendo em vista a constante pressão política que grupos politicamente poderosos exercem sob os legisladores. Ainda, muito embora a insatisfação com determinada decisão judicial com frequência esteja associada à crítica ao emprego de argumentos de política e, por consequência, à instituição que a produziu, não se pode afirmar que desse fato decorra o aumento da desobediência a tais decisões [9]. A partir dessa construção, começam a se delinear as razões pelas quais Dworkin concebe a democracia como um empreendimento em parceria no qual as decisões da maioria não são, só por esse fato, legítimas, fazendo-se necessário que as decisões atendam a certas condições, por meio das quais se garanta a preservação da dignidade de todos os atingidos — em especial, os integrantes das minorias [10].

É justamente em razão da equidade — ou seja, de que a democracia pressupõe igualdade de poder político — que a concepção dworkiniana de democracia ganha relevância. Ao assumir que "nenhuma democracia proporciona igualdade genuína de poder político" [11], Dworkin reconhece a inexistência de paridade na disputa pela garantia de direitos individuais entre grupos com mais e menos poder político. Depreende, pela concepção de Estado de Direito centrada nos direitos, que os indivíduos teriam "o direito de exigir, como indivíduos, um julgamento específico acerca de seus direitos" [12] que, uma vez reconhecidos por um tribunal, passariam a ser exercidos, "a despeito do fato de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los" [13]. Nessa senda, "membros de minorias organizadas, teoricamente, têm mais a ganhar com a transferência [das decisões para o âmbito do judiciário], pois o viés majoritário do legislativo funciona mais severamente contra eles, e é por isso que há mais probabilidade de que seus direitos sejam ignorados nesse fórum. Se os tribunais tomam a proteção de direitos individuais como sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em poder político, na medida em que o acesso aos tribunais é efetivamente possível e na medida em que as decisões dos tribunais sobre seus direitos são efetivamente fundamentadas" [14].

O fórum do princípio, sustentáculo da concepção centrada nos direitos como ideal político, assim confirma que a justiça configura uma questão de direito individual, não somente do bem público [15]; apesar de não ser possível o comprometimento com a certeza das decisões, assegura que as reivindicações dos indivíduos serão constante e seriamente consideradas a seu pedido, reforçando o senso de justiça e o ideal sob o qual estão enraizados os valores políticos da democracia e do Estado de Direito de que o governo irá tratar as pessoas como iguais [16].

Outrossim, o objetivo democrático de igualdade de status respalda o posicionamento adotado por Dworkin no debate de questões constitucionais, ao defender o método da leitura moral da constituição a partir do qual insere a moralidade política e as incertezas no âmago do Direito Constitucional, por meio de uma leitura que propõe que juízes, advogados e cidadãos interpretem os dispositivos abstratos que expõem os direitos dos indivíduos perante o governo e os apliquem considerando que fazem referência a princípios morais de decência e de justiça [17]. Essa assertiva conduz o desenvolvimento de um significado sofisticado de democracia central na teoria de Dworkin, que, combatendo a premissa majoritária, representa a prática constitucional norte-americana.

Em seu pensamento, o ideal norte-americano de um governo se sujeita não somente à lei, mas também aos princípios, sendo considerado como a contribuição mais importante dada pelos norte-americanos à teoria política [18], decorrendo dessa concepção a possibilidade da leitura moral da Constituição. Infere que os princípios contidos na declaração de direitos comprometem os Estados Unidos com os seguintes ideais políticos e jurídicos:

"O Estado deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu domínio como dotadas do mesmo status moral e político; deve tentar, de boa-fé, tratar todas com a mesma consideração (equal concern); e deve respeitar todas e quais quer liberdades individuais que forem para esses fins, entre as quais (mas não somente) as liberdades mais especificamente declaradas no documento, como a liberdade de expressão e a liberdade de religião" [19].

Extrai-se, pois, que cumpre aos juízes interpretar a Constituição e, consequentemente, aplicar princípios — em oposição ao que preconizam os originalistas, cuja concepção de correta interpretação está intimamente relacionada à intenção original dos autores do texto constitucional. Dworkin luta pela fidelidade ao texto constitucional e propugna que juristas e juízes devem buscar a integridade constitucional — ou a interpretação adequada que toma como objeto tanto o texto quanto a prática do passado, tentando unificar fontes distintas e oferecendo diretrizes para decisões futuras [20].

 


[1] Dediquei os estudos do meu mestrado para problematizar a questão da relação entre direito e política a partir dos influxos interpretativos oriundos do engajamento discursivo gerado no berço dos movimentos sociais. O resultado da pesquisa foi publicado na coleção coordenada pelo prof. Lenio Streck, Hermenêutica, Teoria do Direito e Argumentação, sob o título: Contrapúblicos interpretativos: Uma provocação feminista as respostas corretas em direito. BERNSTS, Luisa Giuliani. Contrapúblicos interpretativos: uma provocação feminista às respostas corretas em Direito. Salvador: Juspodvim, 2022.

[2] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.3.

[3] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.7.

[4] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.7.

[5] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.15.

[6] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.16.

[7] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 17.

[8] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 27.

[9] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 29.

[10] MOTTA, Francisco José Borges. Dworkin e a decisão jurídica democrática: a leitura moral da Constituição e o Novo Código de Processo Civil. In: OMMATI, José Emílio Medauar. Ronald Dworkin e o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p.259-260.

[11] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[12] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[13] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 31.

[14] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 32.

[15] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 39.

[16] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 38.

[17] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 2.

[18] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9.

[19] DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 11.

[20] DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 168.

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