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Opinião: A legitimidade da Fazenda para postular o ressarcimento

3 de março de 2022, 16h17

Por Frederico Augusto Leopoldino Koehler, Silvano José Gomes Flumignan

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A nova LIA previu a legitimidade exclusiva do Ministério Público para as demandas de improbidade administrativa. Houve, inclusive, a previsão do prazo de um ano, contado da publicação da Lei nº 14.230/2021, para a manifestação de interesse do Ministério Público competente sobre o prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito em caso de recusa ou inércia na encampação [1].

Essa previsão foi bastante criticada pelas Fazendas Públicas nos três âmbitos da federação, ao ponto de terem sido ajuizadas as ADIs nº 7.042 e 7.043/DF. A premissa utilizada pelos críticos à alteração legislativa foi a suposta usurpação da União, dos estados e dos municípios da principal ferramenta para o ressarcimento ao erário do dano causado pelo agente ímprobo.

O argumento convenceu, pelo menos, momentaneamente. Em 17 de fevereiro de 2022, o ministro Alexandre de Moraes deferiu o requerimento cautelar para manter a legitimidade ativa concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público interno.

Sob o fundamento de que a retirada da referida legitimidade ativa caracterizaria um monopólio absoluto do MP no combate à corrupção, deu-se interpretação conforme à constituição para manter a legitimidade concorrente para a propositura da ação por ato de improbidade administrativa, suspendendo-se, por consequência, os efeitos do artigo 3º da Lei nº 14.230/2021.

Em que pese a simpatia que a bandeira do combate à corrupção gera em qualquer círculo de debate, as críticas feitas à alteração da Lei de Improbidade Administrativa quanto ao ponto debatido não merecem prosperar, por partirem de pressupostos falsos.

A afirmação de que a restrição da legitimidade para a ação de improbidade ao Ministério Público levaria ao "monopólio do combate à corrupção" não é verdadeira por, pelo menos, duas razões.

A primeira é a associação feita entre a lei de improbidade necessariamente com casos de corrupção. Esse argumento pressupõe que a LIA somente trataria de casos de corrupção, o que não é verdadeiro. Atos de corrupção não correspondem a todas as condutas descritas como passíveis de punição por atos de improbidade [2].

A segunda é que o combate à corrupção ainda permanece para todos os entes e agentes públicos. Não houve supressão. Ainda permanecem o dever de controle interno, o exercício das corregedorias e das controladorias, dos tribunais de contas e, até mesmo, os processos administrativos disciplinares.

Não subsiste também a premissa utilizada pelas Fazendas Públicas de que haveria um prejuízo na busca de ressarcimento ao erário. Essa talvez tenha sido a maior incompreensão dos termos empregados na Lei de Improbidade.

Ela parte de uma confusão iniciada pelo próprio legislador [3]. O ressarcimento não tem natureza punitiva e não deve ser confundido com as sanções ligadas à improbidade [4]. Essa, aliás, é uma distinção fundamental na nova LIA, pois os princípios e o procedimento especial de improbidade somente se fazem presentes quando está em jogo a imposição de sanções. Se existir apenas o pedido de ressarcimento, não há que se falar em aplicação do procedimento especial da LIA [5].

O ressarcimento busca a restauração da situação prévia ao ilícito. As sanções, tais como a multa e a suspensão de direitos, têm o escopo de punir o agente ímprobo.

Quando a lei de improbidade afirma que seus dispositivos inauguram um procedimento integrante de um microssistema de direito sancionatório, não se deve esquecer que seus procedimentos especiais buscam a aplicação das sanções ligadas à improbidade.

O ressarcimento, repita-se, não é sanção, mas apenas o pressuposto de uma das condutas de improbidade, permitindo-se, por economia processual, que seja apurado no curso da improbidade. Entretanto, nada impede que seja perseguido em demanda autônoma.

Ademais, ainda que se verifique que as condutas imputadas não permitam a aplicação de sanção, não haverá impedimento para que seja apurado eventual ressarcimento pelo Poder Público.

Salienta-se que no caso específico do pedido de ressarcimento não se afasta a legitimidade do Poder Público lesado. Ele poderá, por demanda autônoma, exigir o ressarcimento. A atuação do Ministério Público para o ressarcimento ao erário somente ocorrerá em caso de inércia da pessoa jurídica de direito público lesada. O Ministério Público, quando o fizer na ação de improbidade, atuará como legitimado extraordinário, ou seja, litigará em nome próprio por direito alheio, no caso, do ente público lesado.

Essa legitimidade extraordinária do Ministério Público quanto ao pedido de ressarcimento não poderá se sobrepor ao interesse da Fazenda Pública, sendo, inclusive, possível a atuação desta última como assistente no processo de improbidade ou, caso prefira, por meio de demanda autônoma de ressarcimento. O Ministério Público, portanto, será o legitimado ordinário para postular as sanções, e a pessoa jurídica de direito público interno para o ressarcimento.

Sob o ponto de vista pragmático, a exclusão da legitimidade da Fazenda Pública para a ação de improbidade administrativa trouxe um ponto positivo que não pode ser olvidado, pelo menos sob o prisma municipal.

A jurisprudência de ambas as Turmas que integram a 1ª Seção do STJ entende que a municipalidade não pode ser mantida no cadastro de inadimplentes do Cauc/Siafi por motivo de má gestão financeira anterior se o gestor que sucedeu o administrador faltoso tomou providências para ressarcir o erário e responsabilizar os envolvidos [6].

Exige-se, assim, que o município, dentre outras medidas cabíveis, requeira a instauração de tomada de contas especial junto às cortes de contas, ofereça representação criminal e ajuíze ação de improbidade administrativa contra o antigo gestor.

Ocorre que a ação de improbidade administrativa proposta pela municipalidade é, no mais das vezes, elaborada de forma lacônica, com argumentação insuficiente e acompanhada de parco conjunto probatório. Isso ocorre por dois motivos principais: 1) o atual gestor não tem como objetivo buscar a responsabilização do seu antecessor — em algumas ocasiões um companheiro de partido ou aliado político —, mas sim suspender a inscrição do ente público dos cadastros de inadimplentes; 2) mesmo que o atual gestor realmente busque o sancionamento do seu predecessor, a ação normalmente é proposta de forma açodada, com o objetivo de atingir a referida suspensão dos cadastros de inadimplentes o quanto antes, sendo notório, entretanto, que uma ação de improbidade deve ser proposta sempre com muita cautela, ponderação e cuidado na argumentação e na juntada de provas.

Tendo-se em conta que basta o ajuizamento da ação de improbidade pela municipalidade para a obtenção do efeito acima indicado — sendo desinfluente o resultado da demanda —, tais processos, em grande parte, terminavam extintos sem mérito ou julgados improcedentes por ausência de provas. Com a nova legislação, tais ações de improbidade não serão mais propostas, o que é uma medida que racionaliza a persecução dos agentes ímprobos e ajuda a desabarrotar as prateleiras do Judiciário.

Por todo o exposto, conclui-se que as pessoas jurídicas de direito público interno nunca perderam a legitimidade para buscar o ressarcimento ao erário nos ilícitos de improbidade. Houve, em verdade, confusão entre os termos sanção e ressarcimento, bem como a atribuição de legitimidade extraordinária ao Ministério Público para perseguir a recomposição dos cofres públicos na ação de improbidade, com a manutenção da legitimidade ordinária do ente público lesado para atuar como assistente no processo de improbidade ou, caso prefira, por meio de demanda autônoma.

 


Artigo 17 da LIA. A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei.

Artigo 3º da Lei n. 14230/2021. No prazo de 1 (um) ano a partir da data de publicação desta lei, o Ministério Público competente manifestará interesse no prosseguimento das ações por improbidade administrativa em curso ajuizadas pela Fazenda Pública, inclusive em grau de recurso.
§ 1º. No prazo previsto no caput deste artigo suspende-se o processo, observado o disposto no artigo 314 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
§ 2º. Não adotada a providência descrita no caput deste artigo, o processo será extinto sem resolução do mérito.

[2] Apenas a título exemplificativo, podem-se mencionar as seguintes condutas:
Artigo 10 (…) VI — realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea;

VII – conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie;
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;
IX – ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento;
X – agir ilicitamente na arrecadação de tributo ou de renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público;
XI – liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; (…)

[3] O caput do artigo 12 trata das sanções e do ressarcimento ao mesmo tempo, ainda que tenha sido mais técnico ao prever que o ressarcimento não seria uma "cominação", como estava na redação anterior à Lei nº 14.230/2021:
Artigo 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (…).

[4] Vide artigo da Conjur abordando o REsp 1.519.040 (acesso online por https://www.conjur.com.br/2021-dez-14/indenizacao-multa-nao-confundem-infracoes-civis-ambientais em 1/3/2022).

[5] Artigo 17, § 16, da LIA. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985.

[6] Nesse sentido, destacamos os seguintes precedentes: AgInt no REsp 1.592.011/PE, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 29/4/2019, DJe 20/5/2019; AREsp 1.535.729/DF, rel. min. Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 22/10/2019, DJe 5/11/2019. O STJ findou por editar a Súmula 615: "Não pode ocorrer ou permanecer a inscrição do município em cadastros restritivos fundada em irregularidades na gestão anterior quando, na gestão sucessora, são tomadas as providências cabíveis à reparação dos danos eventualmente cometidos".