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Existe espaço para melhorar a ação civil pública no Brasil: menos é mais

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2 de março de 2022, 7h13

A fim de trazer melhorias na tutela coletiva no Brasil, tramitam no Congresso Nacional diversos projetos de lei, sendo alguns deles: PL 7.418/2014, PL 370/2015, PL 2.953/2015, PL 2.943/2019, PL 5.650/2019 e o PL 4.441/2020, entre outros. Esses projetos, em sua maioria, ao invés de partirem de um diagnóstico objetivo de problemas a serem resolvidos, partem da lógica tradicional das boas intenções legislativas, buscando estender a legitimidade ativa para propositura de ações civis públicas (ACPs) para detentores de mandato eletivo, OAB, partidos políticos, sindicatos e outras entidades públicas e civis. Caso esses PLs sejam aprovados, poderá haver um aumento da litigiosidade e da insegurança jurídica, gerando impactos negativos tanto sociais quanto econômicos para o Brasil, sem promover efetividade na tutela coletiva.

Atualmente, quem está legitimado a promover a ACP são: Ministério Público, Defensoria Pública, União, estados, Distrito Federal, municípios, autarquias, empresas públicas, fundações públicas, sociedades de economia mista e associações da sociedade civil que cumpram os requisitos legais. Conforme pode ser verificado na base de dados do Cadastro Nacional de Ações Coletivas (Cacol) do Conselho Nacional de Justiça, entre os proponentes identificáveis, os Ministérios Públicos estaduais e o Federal são os principais autores de ACPs (58,34% das ações). Em segundo lugar, tem-se o Poder Executivo dos estados e DF (24,82%) e em terceiro está o Poder Executivo dos municípios (11,01%). Acreditamos que existam algumas inconsistências no Cacol, e possivelmente o MP responda por um percentual ainda maior de ajuizamento de ACPs no país. Mas o fato é que a tutela coletiva não sofre de falta de eficácia por falta de processos; pelo contrário, há bastante atuação!

De toda sorte, já existe, portanto, uma série de entidades públicas e civis que estão legitimadas a buscar a defesa dos direitos coletivos por meio de ACPs. Os Ministérios Públicos, inclusive, têm como dever legal a promoção de ACPs, caso seja necessário adotar providências para prevenir ou reparar danos a bens e direitos que estejam sobre a sua tutela. Diante disso, qual seria a necessidade de inserir novos atores nesse processo? Essa pergunta se torna ainda mais relevante se considerarmos que parte desses atores pode ter outras intenções (normalmente políticas), para além das defesas dos direitos coletivos. Não que o MP não as possa ter (bem entendido), mas não há motivos para expansão dos legitimados, criando-se adicionais incentivos para litigância exagerada.

Os partidos políticos, por exemplo, já vêm se utilizando de forma crescente das vias judiciais. Entre 2018 e 2021, foram propostas ao todo 485 ações por partidos políticos no STF, entre as quais a maioria delas (56%) corresponde a ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs). Esse número é superior ao de ações propostas por partidos ao longo de todo o período de 1995 a 2010 (375 ações). Verifica-se, portanto, que essa forma de atuação dos partidos tem se intensificado muito nos últimos anos. Naturalmente, essa litigância crescente poderá se refletir no uso de ACPs por essas entidades políticas.

A partir de uma perspectiva de pragmatismo jurídico (quando as consequências concretas importam), é ilusório imaginar que, necessariamente, quanto mais ações judiciais (inclusive coletivas), melhor para sociedade. O custo social disso é enorme. A Justiça é um bem público que encontra limites sociais ao seu uso. Isso acontece porque o orçamento do Poder Judiciário é limitado, assim como o tempo do juiz é escasso e sua alocação em determinado processo implicará renúncia a outro processo; e quanto mais processos, menos tempo dos juízes para analisá-los. Dessa forma, quanto mais ações judiciais, maiores são os gastos governamentais ou então maiores são as filas dos jurisdicionados a fim de obter a tutela judicial.

Em adição, a taxa de litigiosidade com ACPs já é crescente no Brasil. Conforme levantamento realizado nos sites dos três mais importantes tribunais do país, entre 2010 a 2020 foram proferidos 253.485 acórdãos para esse tipo de ação (6.401 do STJ, 1.322 do STF e 245.762 do TJ-SP). A taxa de crescimento anual nesse período foi de 9,35% no STJ, 31,91% no STF e 62,85% no TJ-SP, ou seja, o crescimento dessas ações já é elevado mesmo sem a aprovação dos PLs.

Caso sejam aprovados os PLs, não há como estimar exatamente em que medida se ampliaria o número de proposições de ACPs. Mas apenas para podermos ter uma ideia dos custos financeiros que podem ser gerados, é possível imaginar três cenários de crescimento do número de processos após a ampliação do rol de legitimados: a) otimista: 5%; b) neutro: 10%; e c) pessimista: 20%. Se considerarmos que essas taxas de crescimento valeriam apenas para o primeiro ano e que nos quatro anos seguintes as taxas seriam as médias anuais observadas de 2010 a 2020, é possível chegar a um custo adicional para os respectivos cenários de: a) R$ 161,46 milhões; b) R$ 322,92 milhões; e c) R$ 645,83 milhões. Cabe destacar que essas estimativas, além de conservadoras, consideraram apenas o número de processos da segunda instância de três tribunais. Se fossem levados em conta todos os processos de primeira e segunda instância de todos os tribunais, os impactos orçamentários estimados seriam muito maiores.

Outro impacto econômico que pode ser gerado em função da aprovação dos PLs tem relação com o aumento da insegurança jurídica. A aprovação desses PLs poderá não apenas aumentar a taxa de litigância, mas poderá também elevar a probabilidade de que o setor privado tenha que responder a um maior número de ações dessa natureza, aumentando-se os custos de transação, com deterioração do já prejudicado ambiente de negócios no país.

A insegurança jurídica tende a aumentar os custos das empresas e a inibir os investimentos. Em função das incertezas geradas, as empresas acabam elevando seus gastos com a litigância e tendo que reservar recursos para cobrir eventuais prejuízos causados por ações judiciais. No Brasil, o setor privado já tem despesas elevadas com litigância. Conforme destacado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em sua publicação "Competitividade Brasil: 2019-2020", a segurança jurídica é fator-chave para a competitividade da indústria. Um ambiente de negócios estável é fundamental para atrair investimentos. Em ranking elaborado periodicamente pela CNI, comparando a competitividade do Brasil em relação a outros 17 países, o Brasil ocupa as últimas posições. No quesito da segurança jurídica, o país está na 15ª posição.

O Poder Legislativo precisa urgentemente considerar essas questões no processo de atualização da Lei de Ação Civil Pública (LACP), para que a nova lei venha a favorecer a sociedade como um todo e não apenas determinados grupos de interesse

Embora a ampliação do rol de legitimados para as ACPs não seja uma proposta adequada, há outros pontos na LACP que podem, sim, ser aprimorados. Os PLs em tramitação poderiam ser consolidados com o objetivo de reduzir a litigância individual exagerada — seja por réus contumazes, seja por autores predadores —  por meio do aumento da eficiência e da eficácia da tutela coletiva. Os caminhos parecem bem encaminhados pela Recomendação 76 do CNJ, especialmente seus artigos 4º, 5º e 6º e na proposta do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

Também pode ser discutida a possibilidade de que o sistema de ACPs no Brasil seja verdadeiramente de opt out (e não híbrido, como é hoje), ou seja, de que todas as pessoas que não se manifestarem dentro de um prazo fixado pelo juiz da ACP teriam suas ações individuais suspensas na forma análoga ao tema 60 repetitivo do STJ e seriam abrangidas pelo julgamento da ação coletiva (evitando a repetição individual e assistemática de temas já enfrentados pelo Poder Judiciário); além de eventuais efeitos erga omnes do mérito da disputa da ACP para litígios privados

Por fim, mas não menos importante, cabe também considerar um sistema de filtragem — indiretamente recomendado pelo CNJ na normativa supracitada — para evitar pontuais excessos praticados por razões ideológicas ou políticas pelos autores de ACPs (pois vislumbram-se alguns exemplos de litigância exagerada em nossa prática forense). Pode-se pensar, ainda, em um mecanismo de precificação de danos coletivos (evitando novos litígios liquidatórios) e sua repartição entre os prejudicados e, também, em mediações coletivas prévias ao ajuizamento da ação, sendo o Chile um bom exemplo dessa experiência.

Autores

  • é professora e coordenadora do Núcleo de Análise Econômica do Direito do Insper, doutora em Economia pela EESP-FGV-SP, Mestre em Economia Aplicada pela University of Wisconsin-Madison, membro-fundadora e ex-presidente da ABDE (Associação Brasileira de Direito e Economia) e diretora da ALACDE (Associação Latino-Americana e do Caribe de Direito e Economia).

  • é professor da FGV e doutor em Direito.

  • é economista e consultora da AED Consulting.

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