Ex-comandante da Swat que matou ao levar pipoca no rosto é absolvido nos EUA
2 de março de 2022, 7h42
Era para ser uma tarde romântica, em 13 de janeiro de 2014. O ex-comandante aposentado da Swat Curtis Reeves e o pai de família Chad Oulson, que não se conheciam, levaram suas mulheres à matinê em um cinema de Wesley Chapel, no subúrbio de Tampa, Flórida. Reeves se sentou logo atrás de Oulson e notou, ainda durante os trailers, que ele mandava mensagens de texto. Se inclinou e disse a ele para desligar o celular. Oulson argumentou que só estava mandando uma mensagem de texto para a creche que estava cuidando de sua filha de 23 meses.
Houve uma pequena discussão. Reeves se levantou e foi denunciar Oulson à gerência do cinema. Quando voltou, percebeu que Oulson já havia desligado o telefone. Se inclinou novamente e disse a Oulson: "Se você tivesse desligado o telefone quando eu falei, eu não teria denunciado você ao gerente". A discussão esquentou. Oulson pegou um saco de pipoca e o atirou no rosto de Reeves. Reeves pegou sua arma e atirou no peito de Oulson. Oulson deu dois passos e caiu. Morreu no hospital.
Na última sexta-feira (25/2), à véspera do décimo aniversário da morte de Trayvon Martin, um júri absolveu o ex-comandante da Swat, cuja defesa se baseou na lei stand your ground, que a Flórida adotou em 2005. Essa lei, patrocinada pelo lobby da indústria de armas, retirou do princípio de legítima defesa o "dever de se retirar" (duty to retreat), antes de o cidadão usar "força fatal" para se defender, sempre que um confronto se agrava. Pode atirar para matar em qualquer lugar (na rua, em um bar, praça pública…), desde que perceba que ele, outra pessoa ou sua propriedade esteja em perigo.
Trayvon Martin foi o estudante negro de 17 anos morto pelo patrulheiro voluntário de um condomínio em Sanford, na Flórida, George Zimmerman, em 26/2/2012, quando caminhava à noite pela calçada com a cabeça coberta pelo capuz de seu agasalho de moletom — e desarmado. Zimmerman, um homem branco de 28 anos à época, foi absolvido com base na lei stand your ground. A absolvição resultou em indignação popular e na criação do movimento Black Lives Matter, que lançou uma campanha nacional por justiça racial.
No outro lado da moeda, a lei, que até então só existia na Flórida e em Utah, se popularizou no decorrer do tempo: 38 dos 50 estados dos EUA adotaram leis semelhantes — 30 por medidas legislativas e oito por decisões judiciais que criaram precedentes. E a Flórida engrossou o caldo para estimular ainda mais a posse e o porte de armas. Uma nova lei transferiu o ônus da prova de legítima defesa para a acusação — isto é, os promotores têm de provar que o réu não agiu em legítima defesa, mas com intento de cometer um homicídio que seria evitável.
O décimo aniversário da morte de Trayvon Martin foi celebrado com muitas cerimônias pelo país e estudos sobre a lei stand your ground foram publicados por alguns jornais. As notícias destacaram que, nessa década, cerca de 18 mil réus foram absolvidos no país graças à lei stand your ground que cada estado adotou — réus que dificilmente seriam absolvidos com base na tradicional lei de legítima defesa.
Um dos estudos indica que a lei stand your ground, que recebeu apelidos como lei "atire primeiro, faça perguntas depois" (shoot first and ask questions later), lei "faça o meu dia" (make my day), lei "licença para matar" (license to kill) e lei "cartão virtual para se livrar da cadeia" (virtual card do get out of jail free), contribuiu para o aumento das taxas de homicídio por mês no país. No período de 2005 a 2017, a taxa de "homicídios justificáveis" aumentou 55% nos estados que adotaram tais leis e apenas 20% nos estados que não as adotaram.
Os estudos também mostram que há um componente racial indesejável na história: a probabilidade de um réu branco ser absolvido com base na lei stand your ground é cinco vezes maior do que a de um réu negro. E também há uma diferença notável nos casos em que a vítima é branca dos casos em que a vítima é negra. Se o atirador é branco e a vítima é negra, a probabilidade de ele se livrar de um processo criminal — ou de ser absolvido, se houver julgamento — é alta. Se o réu é negro e a vítima é branca, é o contrário.
Enfim, os levantamentos indicam que a lei stand your ground não cumpre o que promete em sua justificativa, a de proteger a sociedade. Ao contrário, agrava a situação. Por isso, foi criada uma força-tarefa, que envolve parlamentares e ativistas de 19 estados (por enquanto), que está encarregada de empreender esforços para revogar tais leis em todo o país — ou, se isso não for possível, pelo menos torná-las mais razoáveis.
O aumento dos casos de morte por arma de fogo também se deve, em parte, ao fato de que vários estados relaxaram as leis que restringem a compra e posse de armas. Hoje, mais de 20 estados permitem a compra e posse de armas sem licença, sem atestado de bons antecedentes e sem obrigatoriedade de treinamento. O Velho Oeste não foi esquecido.
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