Opinião

Sobre a proteção dos bens culturais durante conflitos armados

Autor

  • Allan Carlos Moreira Magalhães

    é doutor e pós-doutor em Direito (Unifor) professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro Patrimônio Cultural Democracia e Federalismo (Dialética-SP).

2 de março de 2022, 17h08

O mundo está assistindo à invasão da Ucrânia pelas forças militares russas, que lançam ataques aéreos com bombardeios, inclusive na capital Kiev, enquanto as tropas terrestres avançam para tomar o controle dessa ex-república soviética. Os efeitos nefastos de qualquer guerra ceifam vidas inocentes e a memória da humanidade com a destruição dos bens culturais em meio aos bombardeios que devastam tudo. 

As guerras, segundo Norberto Bobbio [1], sempre foram horrendas, mesmo sendo uma constante histórica. A criação da bomba atômica, que coloca em perigo toda a humanidade, contudo, faz com que a guerra se torne para esse jurista uma via esgotada: seja porque o seu tempo acabou, pois produz apenas perdas, mesmo para os supostos vencedores, seja porque ela é injusta e cruel.

A guerra na Ucrânia, contudo, é mais um exemplo do quanto é duvidosa a ideia de Hans Kelsen [2] de que a paz pode ser alcançada pelo Direito, pois as leis criadas no âmbito do Direito Internacional mostraram-se insuficientes até o momento. O Pacto Kellogg-Briand (Pacto Multilateral contra a Guerra), assinado em 1928, que condena o recurso à guerra para a solução de controvérsias internacionais, tendo os Estados-partes renunciado a ela como instrumento de política nacional em suas mútuas relações, não impediu as guerras nos séculos 20 e 21.

Se o Direito não consegue impedir as guerras, este se esforça, ao menos, para torná-la menos horrenda, se isso é mesmo algo possível. Para tanto, as Convenções de Genebra, concluídas no pós-2ª Guerra (12 de agosto de 1949), objetivam estabelecer a proteção aos civis, aos prisioneiros de guerra e aos enfermos, para que estes sejam tratados com humanidade durante a guerra.  

O Direito também visa a proteger o patrimônio cultural durante a guerra, considerando que a destruição intencional e o saque desses bens, assim como as violações do direito humanitário em relação às pessoas, configuram crime de guerra, pois esses atos atingem os valores culturais de grupos humanos, aniquilando sua memória coletiva e, em alguns casos, da humanidade.

É fato que desde a Antiguidade a destruição e o saque de bens culturais eram práticas toleradas e mesmo consideradas lícitas durante as guerras, fazendo tais ações parte dos cortejos triunfais das tropas como símbolo de conquista. Os saques e pilhagens dos bens culturais foram também realizados durante a 2ª Guerra Mundial, em especial pelos nazistas alemães. Esse fato, contudo, impulsiona no pós-guerra a necessidade de retomar as discussões para a regulamentação a nível internacional da proteção dos bens culturais, não apenas em tempos de paz, mas também durante a guerra, o que resultou na Convenção da Haia de 1954.

Essa convenção introduziu pela primeira vez o conceito de patrimônio cultural da humanidade, objetivando a proteção internacional desses bens culturais. Com isso, criou-se para os Estados-partes a obrigação de respeitar os bens culturais situados em seu território e nos dos outros Estados, devendo agir para impedir a destruição ou deterioração em caso de conflito armado, bem como o roubo, a pilhagem e o vandalismo.

O avanço das tropas russas na Ucrânia desperta o receio de destruição de bens culturais como a Catedral de Santa Sofia e o Golden Gate, antigo portão de entrada da cidade e que abriga um museu, ambos localizados em Kiev e reconhecidos pela Unesco como patrimônios culturais da humanidade, entre vários outros que estão ameaçados em razão desse conflito armado.

Assim, toda e qualquer guerra é injusta e cruel, e o preço a ser pago com as vidas perdidas e a destruição causada, em especial do patrimônio cultural, a torna uma instituição esgotada, incapaz de atingir seus objetivos porque os danos para a humanidade serão sempre superiores a eventuais ganhos pontuais. É preciso, portanto, colocar um fim imediato a esse conflito, antes que suas consequências se tornem uma catástrofe humanitária maior do que já se apresenta.


[1] BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: Unesp, 2003.

[2] KELSEN, Hans. A paz pelo direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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    é doutor em Direito, professor e pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor do livro "Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo".

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