Trabalho contemporâneo

A testemunha da testemunha... sou eu!

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31 de maio de 2022, 8h00

Retornando aos trabalhos, após alguns meses reflexivos, escolhi um tema que, cotidianamente, tem provocado embates durantes as audiências trabalhistas: as testemunhas que possuem ações idênticas contra as mesmas empresas.

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A questão é simples: pode uma pessoa que litiga contra o mesmo réu, pedindo exatamente a mesma coisa, produzir prova a favor do autor?  Haveria interesse pessoal da testemunha no resultado desta ação?

No meu sentir, sim.  E por razão muito simples: a testemunha precisa que o reclamante vença para também poder vencer em sua própria ação. Aí se encontra o interesse que resulta na suspeição, conforme artigo 447, §3º, II do CPC aplicável nos termos do seu artigo 15 de forma supletiva.

Razão simples, questão complexa.  Automaticamente, lembra-se da Súmula 357 do TST, que possui a seguinte redação:

"TESTEMUNHA. AÇÃO CONTRA A MESMA RECLAMADA. SUSPEIÇÃO (mantida) — Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
Não torna suspeita a testemunha o simples fato de estar litigando ou de ter litigado contra o mesmo empregador.
Histórico: Redação original – Res. 76/1997, DJ 19, 22 e 23.12.1997"

Como base nesta jurisprudência, normalmente há registro de inconformismo com posterior arguição de nulidade da sentença por cerceio de defesa, quando o magistrado acolhe a suspeição e indefere a oitiva da testemunha impugnada.

Ocorre que, como a própria redação da Súmula citada deixa antever, a questão pacificada pelo Tribunal Superior do Trabalho é diversa, restringindo-se a fixar que "o simples fato de estar litigando ou ter litigado" não gera a suspeição. Logo, há de se investigar, em cada caso, se tal circunstância levaria ou não ao reconhecimento do impedimento para depor.

Ademais, analisando-se as decisões que geraram a citada súmula, resta claro que a razão de decidir levou em conta basicamente o exercício do direito de ação como método de solução de conflitos e a circunstância de tal fato não gerar inimizade capital entre a testemunha e seu empregador ou ex-empregador. Para tanto, transcrevo trecho do acórdão proferido na ação ERR 147209/1994, Ac. 347/1997 da lavra do ministro Vantuil Abdala em 21/3/1997, o mais recente a embasar tal jurisprudência:

"A alegada violação do art. 829 da CLT não merece prosperar na medida em que o simples fato de achar-se a testemunha em litígio com o mesmo réu não a torna suspeita. Não se pode deste fato inferir a existência de inimizade capital entre esta e o réu, posto que é norma da Ordem Constitucional que venham as partes solver suas lides pela ação do Judiciário."

Óbvio, portanto, que o posicionamento consolidado na jurisprudência não levou em conta a questão do interesse como motivo de suspeição como previsto no antigo e no atual Código de Processo Civil (artigos 405, §3º, IV e 447, §3º, II, respectivamente).

Outro elemento que se retira da razão de decidir da Súmula é o fato do art. 829 da CLT não prever a hipótese de litigar em face do reclamado como motivo de impedimento ou suspeição.

Neste particular, encontra-se defasado o entendimento consolidado por questão simples: o CPC de 2015 deve ser aplicado não apenas subsidiariamente, mas também supletivamente, conforme seu art. 15, regra que não existia à época, vez que o artigo 789 da CLT apenas permitia o uso da legislação processual comum em caso de omissão da lei especial trabalhista.

A aplicação supletiva, como se sabe, determina que sejam importadas todas as regras e institutos compatíveis com o Processo do Trabalho que possam implementar o devido processo legal e demais princípios processuais, como o da boa-fé.

Os motivos de incapacidade, impedimento e suspeição previstos no diploma processual civil, portanto, nitidamente mais amplos que os previstos na CLT, reclamam a aplicação supletiva por imperativo ético, não sendo razoável qualquer fundamentação no sentido da prova testemunhal no Processo do Trabalho poder ser colhida em condições diversas do Processo Civil, sob pena de aceitarmos uma testemunha que, em outras áreas, não serviria como prova.

Defender o contrário seria aceitar um Processo do Trabalho mais vulnerável a fraudes, sem compromisso com a busca da verdade real.  Nem se diga que a circunstância da prova testemunhal ser abundante e necessária para a área trabalhista poderia gerar conclusão diversa, pois se nossa base probatória depende dos depoimentos de testemunhas, mais um motivo para sermos extremamente rigorosos na coleta deste elemento, sob pena de criarmos condenações injustas.

Juridicamente, portanto, a Súmula 357 do TST não pode ser aplicada para a suspeição motivada por interesse na causa pelos dois motivos acima expostos: a razão de decidir extraída das decisões que lhe deram suporte restringem-se à inexistência de inimizade capital e falta de previsão legal.  Ambos argumentos, assim, superados.

Não bastassem as razões jurídicas, há de se fazer um apelo também às questões éticas.  Admitir como base para condenação de um jurisdicionado a prova produzida por quem deseja a mesma condenação para ganho próprio é, no mínimo, duvidoso.

Esta situação provoca um triste paradoxo: o depoimento da testemunha, pelo simples fato desta estar nesta condição, é revestido de uma aura de credibilidade que, na sua própria ação, não possui nenhuma validade, salvo para lhe prejudicar.

Exemplificando. João presta depoimento pessoal em sua ação afirmando fazer horas extras.  Tal depoimento não produz prova a seu favor. João perde a ação. João, agora, presta o mesmo depoimento como testemunha de Maria. Maria vence. Maria por sua vez vira testemunha de José, que também vence a ação. Se, agora, José pudesse ser testemunha de João, João também teria sucesso na sua demanda! O círculo da vitória se consolidaria!

Pior. Na prática percebe-se que normalmente não há troca de favores direta, ou seja, autor e testemunha não se favorecem reciprocamente (João depõe para Maria e Maria para João). Faz-se um círculo de favores até a ponta fechar, de forma que todos conseguem depor para o outro sem se prejudicar, numa sequência de interesses duvidosos.

Alguns objetam que a testemunha precisaria ser ouvida por não haver outra pessoa que pudesse prestar o depoimento. Pode até acontecer, tanto que a CLT quanto o CPC possuem solução para o caso, a coleta do depoimento se faz sem compromisso na qualidade de mera informação, valorando o juiz a prova conforme as circunstâncias do caso.

Entretanto, o que não se realiza na prática é a investigação desta afirmativa.  Não raro existem diversos outros empregados no setor, estabelecimento ou empresa que podem ser convocados, inclusive pelo juízo, para deporem de forma isenta e sem qualquer tipo de interesse.

Não se deve colher o depoimento na condição de informação, portanto, quando há outras pessoas que possam atuar na qualidade de testemunha, não sendo justificativa a alegação de que ninguém quis aceitar o convite para tal, por se tratar o serviço testemunhal de munus publico, só cabendo a escusa em depor nos casos expressamente previstos em lei (art. 448 do CPC).

Em conclusão, basear decisão judicial em depoimento de pessoa que pode ter ganho ou se prejudicar no seu próprio direito é se afastar da essência mais cara ao Poder Judiciário: distribuir justiça com equidade e conforme a verdade.

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