Complexo "Tom & Jerry" no cárcere: entre hipocrisias e ironias, o direito se esvai
31 de maio de 2022, 15h02
O desenho "Tom e Jerry" é um clássico e moveu as gerações de crianças nas décadas passadas. Para lembrar: é uma animação em que sempre um gato persegue um ratinho, que por sua vez faz de tudo para escapar das artimanhas do gato; eles vivem assim, entre ataques e contra-ataques. Identifico como "a simbologia do gato e rato", de um perseguir e outro fugir o tempo inteiro, mas ambos dependentes entre si neste estilo de perseguição e fuga. Quando em perigo um ajuda o outro.

No cárcere, na relação entre Estado (Tom) e apenado (Jerry), na proporção devida e ao contrário da metáfora acima, ele não socorre o recuperando, persegue-o. Ocorre a perseguição contra o uso dos telefones celulares contínuo no cárcere. O Estado faz "vistas grossas" a esta problemática porque lhe convém, o que passaremos a explicar. Ao mesmo tempo que não tenta resolver o problema, persegue constantemente a captura dos aparelhos, nas casas prisionais, punindo severamente quem fizer uso dele. Aqui se estabelece a hipocrisia [1] e se exterioriza a ironia do sistema, e mais um direito que se esvai.
Falar em direito do preso tornou-se algo inconcebível para a sociedade hipócrita. Como podemos falar em direitos para presos? Como podem defender quem comete crimes? Na execução da sentença também? Como pode isto, presos ter preferência ao atendimento no SUS? Quantas vezes ouvimos isso? Quem não ouviu tais questionamentos é por que nunca foi na fila do SUS, ou ainda curte a teoria da "cegueira deliberada" [2]. Defender direitos das pessoas presas [3] é extremamente desgastante e é preciso muita paciência.
O artigo aponta como problema: o uso do celular, por presos, no interior do cárcere pode ser reconhecido como uma forma de "acesso ao mundo exterior"? Veja que a Lei de Execução Penal — LEP (Lei nº 7.210/1984) tem sido desrespeitada pelo próprio Estado desde a sua criação. Porque ele não respeita o mínimo catálogo de direitos humanos e quando se fala em tais pessoas ainda dizem: "lá vem esta gente dos direitos humanos", ou aquela que se ouve frequentemente: "direitos humanos para humanos direitos", como usou um juiz em uma sentença, que ficou conhecida como "Marie Claire" [4].
Na verdade, agimos porque o Estado empilha gente há décadas no cárcere e só piora. Desrespeita o mínimo do que se espera como tratamento humanitário [5] e de forma escancarada, com o silêncio das autoridades, com o "conformismo dos intelectuais" [6]. Por exemplo: o Estado desrespeita, com o olhar passivo de todos, o que a lei determina em número de pessoas confinadas em metro quadrado, Artigo 88 da lei. O tratamento desumano é apenas para uma parcela de pessoas que nunca importaram para a sociedade.
O que determina na LEP sobre o "contato do preso com o mundo exterior" e aqui está o problema de pesquisa. Nesse ponto está a maior expressão da hipocrisia social e consequentemente onde os agentes do Estado descumprem mais um direito, pois o preso deve ter respeitado o "acesso ao mundo exterior" e isso está claro no artigo 41, inciso XV [7]. Não é garantido a ele esse direito, muito antes pelo contrário, persegue-se aquele que busca tal contato, basta ver a punição que se aplica para quem é pego com celular no cárcere.
Poderá questionar o leitor: mas como assim? Não teria outra forma de ter o contato com o mundo exterior? A forma como se busca tal contato é pelo uso do smartphone sendo inconcebível, na era da tecnologia, na palma das mãos, esperar que o recluso faça uso da escrita por cartas, esperando que ela seja encaminhada a seus familiares pelos Correios, pois quando chegar a notícia no destino a informação já estaria velha por causa da instantaneamente. Talvez deveria se preocupar, com mais inteligência o Estado, sobre a identificação de quem organiza crimes, quem fomenta o crime e faz mal uso dos equipamentos que ingressam no interior das prisões, ou, ainda, investigar como entram os aparelhos ilegalmente nas cadeias. No entanto, se fosse regularizado este comércio ilícito deixaria de existir ou diminuiria circunstancialmente.
Incomodativo texto de Dani Rudinick e Matheus Oliveira Veeck, pois tocam neste direito e na ausência do Estado frente, pois prefere simular que ele não existe. O artigo: "sobre o direito à comunicação e o acesso dos presos à internet" [8]. Externam um "nervo exposto"[9], que é a falta de capacidade de gestão do Estado para resolver este problema, falta de vontade ou a vontade de deixar tudo como sempre esteve, mesmo contra a norma [10]. O pior é que ele sabe que o preso tem o direito de se comunicar com o mundo exterior, de ter contato com pessoas fora do cárcere, para que a sua "(re)integração social" ocorra. Ele descumpre a lei e persegue aquele que faz do direito.
São inúmeras revistas realizadas nas prisões em busca de drogas, armas e celulares. É de conhecimento que por meio do mal uso do telefone o crime ocorre, sendo organizado, algumas vezes, do interior das prisões para que ocorra na rua. Como age o Estado a partir deste conhecimento? Na omissão passando a responsabilidade para o próprio preso, punindo-o, ou seja, locupleta-se pela própria torpeza utilizando-se da desculpa de que são os celulares, o acesso a internet [11], no cárcere, que fomentam o crime nas ruas. O Estado quer fazer crer, e o pior é que consegue, que todas as pessoas presas, obrigatoriamente, cometem novos crimes e organizados pelos celulares, nas cadeias, o que se sabe não ser verdade. Não existe comprovação científica sobre tal "obrigatoriedade" vendida pelo Estado. Uma parcela cometerá crimes e outra não, uns passarão pelo sistema e não voltarão [12].
A punição e aqui sabe o Estado usá-la muito bem, que após o procedimento administrativo disciplinar (PAD), para apurar uma falta grave, conforme Artigo 50, inciso VII, da LEP, pelo uso do celular. Aqui está a ironia e aqui a demonstração de que o direito se esvai pelas mãos do Estado, pois ao mesmo tempo que tem o direito de se comunicar com o mundo exterior é punido por fazer tal contato, usando o celular, não importando em absolutamente nada para qual fim. Como se esta(s) pessoa(s) não tivesse(m) o direito de se comunicar e fosse(m) ela(s) a(s) responsável(eis) por crimes que lá fora ocorrem. O Estado empurra o apenado ao cometimento de falta grave pelo uso do celular, ao invés de regular e impedir contatos criminosos por meio das tecnologias possíveis.
A punição é severa, pois além dos dias remidos, que se perde, muda-se a data-base para o alcançar de um novo tempo para a progressão de regime, inclusive com jurisprudência que avaliza tal procedimento. Antes da Lei nº 12.433/2011, perdia a sua totalidade o tempo remido, o que demonstrava desproporcionalidade absurda, também a data-base, alterando ela para a data da homologação do PAD, para buscar novo requisito objetivo. Com a referida lei perde até um terço do tempo remido [13].
Poderia vir a pergunta: "mas como solucionar este problema?" Por que não regular? "Mas para regular seria necessário investimentos?" Sim, investimentos na área de tecnologia, como, por exemplo, o uso de bloqueadores de sinal (como deve ser na Pecn, em Canoas/RS) e a regulação pelo número de Imei (International Mobile Equipment Identity), também conhecido como "identidade internacional de equipamento móvel", controle do uso.
Com investimentos poderia se rastrear [14] as comunicações ao invés de impedi-las, ao invés de punir quem não se envolve com crimes no interior do cárcere. Com a regulação poderia se restringir os acessos e os problemas do uso do celular, pois mapeando os contatos, verificando-os, para quem ele faz a ligação, se é do núcleo familiar ou não do recuperando, mapeando as redes sociais. A regulação prévia traria a diminuição dos contatos ilegais além do fim do comércio ilegal de telefones nas cadeias. O uso de bloqueadores de sinal para celulares diminuiriam a possibilidade de contatos extra-horário e poderia se estipular dias para a sua utilização, apenas como sugestão. Prefere fazer uso da "teoria da cegueira deliberada", uso da "ignorância proposital" sem punição.
O Estado age de forma hipócrita, pois sabe do direito que tem o preso de ter acesso ao mundo exterior, sabe que não será por carta escritas em plena era do smartphone e da notícia em tempo real; que tal acesso faz parte da progressão e reingresso do preso na sociedade. Comprova-se que não está o Estado preocupado com a reinserção de ninguém, mas sim com o que chamou Garland de "A estratégia da segregação punitiva" [15] destas pessoas, de seu afastamento da sociedade por meio de aplicação de penas cada vez mais longas e com maior possibilidade de permanência.
Sabe-se dos problemas que são gerados por esta falta de regulação e os inúmeros contatos, no interior das casas prisionais não representam a totalidade do fomento do crime fora do cárcere, apenas uma parcela deste [16] e que pode o Estado diminuir muito se garantir o direito e, no permitir, fizesse o controle. Prefere nada fazer a não ser punir aquela parcela de pessoas que são pegas com o equipamento, também não se preocupa com a forma como estes equipamentos entram nas casas prisionais [17], apenas trata a causa pelo efeito, quando deveria tratar a causa pelos elementos que nos mostra ela e, assim, resolver o problema e garantir o direito ao invés descumpri-lo.
[1] SOUZA, Ricardo Timm de. Ética do escrever: Kafka, Derrida e Literatura como crítica da violência. Porto Alegre: Zouk. 2018, p. 43. Indica o autor que "(…) em um tempo de absoluta urgência como o nosso, devastado por retóricas hipócritas, um tempo em crise ou em uma crise feita há tempo, absolutamente urgente é a retomada do cerne crítico da própria ideia de crítica. (…)." É preciso desvendar a hipocrisia presente na retórica estatal sobre o assunto "direito a comunicação com o mundo exterior", pois desrespeitada constantemente pelo próprio Estado por meio da violência que impõe, no próprio sistema prisional.
[2] CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas. 2014, p. 92. Como explica o autor "(…) a equiparação, atribuindo os mesmos efeitos da responsabilidade subjetiva, dos casos em que há o efetivo conhecimento dos elementos objetivos que configuram o tipo e aquele em que há o 'desconhecimento intencional ou construído' de tais elementares. (…)". Para o texto, adaptando a teoria, é o desconhecimento intencional do Estado de como ingressam aparelhos celulares no cárcere. Ver também: CALLEGARI, André Luís. Lavagem de dinheiro. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas. 2017, p. 152.
[3] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução Ricardo Rodrigues Gama. 1ª ed. 3 tiragem. Campinas: Russel. 2008, p. 31. "(…). As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao advogado é a esmola da amizade antes de qualquer outra coisa. (…). A necessidade do cliente, especialmente do acusado, é a seguinte: a de um que se sente ao lado dele, sobre o último degrau da escada. (…). A essência, a dificuldade, a nobreza da advocacia é esta: permanecer sobre o último degrau da escada ao lado do acusado".
[4] BRASIL. Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. Jurisprudência. Acórdão nº 70054312905. 3ª Câmara Criminal. Rel. des. Nereu José Giacomolli. J. 3/10/2013. Dj. 22/1/2014. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/novo/buscas-solr/?aba=jurisprudencia&q=&conteudo_busca=ementa_completa. Acesso em: 15 maio 2022. Nesta sentença o juiz havia citado trechos de entrevista da atriz Paola Oliveira a revista "Marie Claire", usando o que ela proferiu em sua entrevista em sua sentença: "Direitos Humanos é para quem sabe o que isso significa. Não para quem comete atrocidades de forma inconsequente (…)", manifestação usada fundamentar a sentença. Ela foi desconstituída pelo TJ-RS.
[5] VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. 2ª ed. atual. com base na Le4i 13.964/19, denominada Lei Anticrime. Belo Horizonte, São Paulo: D'Plácido. 2021, p. 12. Explica o autor que a "(…) sanção prevista na lei, é somente a de privação de liberdade de locomoção, não a de privação dos inúmeros outros direitos (…)".
[6] MAFFESOLI, Michel. O conformismo dos intelectuais. Tradução Tânia do Valle Tschiedel. Porto Alegre: Sulina. 2015, pp. 22-3. Denuncia entre tantas coisas o autor, indicando, que existe um conformismo dominante: "(…) excluir os que não tem o odor da matilha. (…)". Ou seja, excluir aqueles que não pensam da mesma forma. O texto é para deixar um incômodo mesmo e para que reflitamos em que grupo nós estamos. Incentivo para "(…) coragem para ir contra as ideias convencionais, ao mesmo tempo, dominantes e obsoletas. (…)".
[7] BRASIL. Governo Federal. Planalto. Legislação. Constitui como direito do preso o contato com o mundo exterior diz o Art. 41, da LEP, claro que por escrito. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 14/4/2022. O preso tem que escrever uma carta (física) e enviar para o seu destinatário. Como se existisse agências dos Correios nas casas prisionais, como se existisse verba para o pagamento de tais serviços postais e como se fosse prática hoje em plena era digital. Jovens presos que deveriam fazer uso de carta física, já nascidos na era digital, em tempos de Twitter, Facebook, Instagram, Whatsapp e outros meios de comunicação.
[8] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 66.
[9] SOUZA, Ricardo Tïmm de. Ética do escrever: Kafka, Derrida e Literatura como crítica da violência. Porto Alegre: Zouk. 2018, p. 43 e seguintes. O autor faz uma crítica ao que chama de "razão vulgar" (que é a "razão indiferente de cada dia"), ao que chama de "razão ardilosa" (aquela que tem por missão "não chocar" por que "sustenta a violência e vulgaridade do mundo", ou seja, ela justifica o que não tem justificação), bem como ao que chama de "razão imoral" (que é a "combinação maciça entre razão vulgar e razão ardilosa" que "consuma o 'estado de exceção que vivemos'". Aqui externa, no texto, este nervo exposto que é a existência de uma "retórica hipócrita" que legitima o estado de exceção.
[10] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 69. Os autores demonstram que lá no longínquo ano de 1994 o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária já havia normatizado "(…) o direito do preso de estar informado dos acontecimentos familiares e das atualidades sociais (…)".
[11] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 71 e 72. O acesso se dá pelo uso da internet que facilmente ocorre pelos telefones celulares. Devem ter acesso às novidades sociais para quando saírem do sistema prisional estejam preparados para o convívio social. Para nós é utópico pensar que isso não ocorrerá que o preso não terá acesso às novas tecnologias, as redes sociais. Ele está preso naquele ambiente físico, mas a realidade virtual não.
[12] TALON, Evinis. Proibição do celular nos presídios x direito a comunicação do preso. Publicado em 22/6/2018. Disponível em: http://www.talon.com.br/proibicao-do-celular-nos-presidios-x-direito-comunicacao-do-preso/. Acesso em: 15/4/2022. Outra hipocrisia do Estado é a justificativa de que se faz uso do celular única e exclusivamente para o cometimento de crimes, no interior do cárcere, como se não tivéssemos presos com níveis de "ressocialização" diferentes e como se todos fizessem uso do celular para cometer crimes.
[13] BRASIL. Governo federal. Planalto. Legislação. Lei 7.210/1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 15/4/2022. Na forma do Art. 127 da LEP o juiz determinará a perda dos dias remidos não podendo ultrapassar a 1/3 do tempo o que é um avanço perto do quadro anterior a alteração legislativa. Ver também: Habeas Corpus 118.606/SP. 5ª T. Rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho. J. 19/2/2009. Dj. 13/4/2009. Dentre tantos outros que acabavam por dar guarida à aplicação desproporcional da punição.
[14] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 81. Sistema Trulincs como exemplo existente nos Estados Unidos.
[15] GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Tradução, apresentação e notas André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan. 2008, p. 315. Explica: "as condenações mais severas e o aumento no uso do encarceramento (…), políticas de tolerância zero e penas restritivas de certos comportamentos. (…)"; eu ouso complementar: aplicações de punições intrecarcere que alteram o cumprimento de pena e diminuem as possibilidades da saída do cárcere.
[16] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 77. "Essa ideia, porém, não se sustenta. O preso que realmente deseja 'mandar' ou 'gestar' a realização de um crime, pode fazê-lo através das visitas, correspondências e não por intermédio da internet, cujo acesso, destacamos, pode ser tão ou mais facilmente restringido, interceptado e controlado do que as demais formas de contato com o mundo exterior. (…)."
[17] RUDINICK, Dani; VEECK, Matheus Oliveira. Sobre o direito á comunicação e acesso dos presos à internet. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 5, nº 2, mai./ago. 2018, p. 69. O Estado deve enfrentar o problema.
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