Opinião

Artistas e juristas: a sensibilidade habita em muitas moradas

Autor

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA Rotterdam) do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI Genebra) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (Assunção Paraguai). Professor da Faculdade de Direito da UFPB. Foi professor Visitante do Departamento de Direito da Universidade de Turim Itália.

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31 de maio de 2022, 6h02

Em 1938, Paul Klee já era um artista consagrado, no auge de sua criatividade, quando pintou, às vésperas da 2ª Guerra Mundial, o potente guache sobre papel intitulado "Gesetz" (Lei), hoje numa coleção particular. Na folha de papel jornal coberta de tinta e colada sobre um cartão fino, linhas-letras e linhas-traços dançavam, misturando-se num balé gráfico que insinuava a intimidade entre arte e direito, entre letra e pincelada, entre imagem e palavra. Tudo é linguagem, pareceu sugerir Klee.

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Durante dez anos, entre janeiro de 1921 e abril de 1931, Paul Klee havia sido professor da Bauhaus, a mítica escola alemã de arte de vanguarda. É curioso notar que termos como "lei", "legalidade" e "legisladores" aparecem com relativa frequência nos escritos e declarações programáticas da Bauhaus. Ali, Klee encontrou alguns artistas com formação jurídica. O escultor, pintor, fotógrafo e designer húngaro László Moholy-Nagy foi um gênio multimídia que estudou direito antes de se tornar o "implacavelmente experimental" professor da Bauhaus, instituição em que também atuou como docente o revolucionário pintor russo Wassily Kandinsky, outro egresso do mundo jurídico. Mais moço, em Moscou, Kandinsky — fascinado pela racionalidade do Direito Romano — já havia sido um dedicado mestre do Direito Privado.

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"Gesetz" (1938), de Paul Klee (1879-1940)
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Do outro lado do rio Reno, na França, Edgar Degas, Paul Cézanne e Henri Matisse também gozaram dos vícios e virtudes de uma educação jurídica, antes de impressionarem o mundo com cores, formas, nuances, traços e luzes inimagináveis. Outro francês, o pintor, desenhista e ceramista Pierre Cavellat foi um magistrado de carreira prestigiosa, que chegou a presidir a Cour d'Appel de Caen. Há ainda André Laingui, que além de pintor e ilustrador, foi professor de história do direito penal em Rennes e, depois, na Universidade de Paris II (Panthéon-Assas).

Há outros exemplos, como o catalão Antoni Tàpies, com suas obras executadas com energia e violência, e o siciliano Renato Guttuso, expoente da pintura neo-realista italiana, dois dos mais importantes nomes da arte contemporânea. No passado, o norte-americano George Catlin, o inglês Joseph Highmore e o uruguaio Pedro Figari também trocaram a pena pelo pincel. Os professores de direito Francisco Balaguer Callejón, da Universidade de Granada (Espanha), Werner Gephart, do Käte Hamburger Kolleg (Bonn, Alemanha), Paulo Ferreira da Cunha, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal e Professor da Faculdade de Direito do Porto, e Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos, da Universidade de Westminster (Londres), também conciliam atividades jurídicas e artísticas.

No Brasil, Maria Francisca Carneiro, Ricardo Giuliani, Marcelo Conrado e Luiz Gustavo Vardânega Vidal são alguns dos nomes que abraçam uma carreira jurídica paralela à atuação como artistas visuais. Antes deles, Di Cavalcanti ingressou na Faculdade de Direito do  Largo de São Francisco em 1916, mesmo ano em que se formou ali Inácio da Costa Ferreira, o Ferrignac, um dos grandes nomes da Semana de Arte Moderna de 1922.

Como o direito influenciou ou alterou cada uma daquelas carreiras ou como o dia a dia de juristas, professores de direito, advogados e magistrados foi impregnado do fazer artístico-visual é uma questão difícil de generalizar. Fato é, porém, que a casa do direito é uma casa aberta à sensibilidade artística, à imaginação e à criatividade das artes. Aliás, bem antes da “Teoria Pura do Direito”, de Kelsen, o jurista belga Edmond Picard publicou, em 1908, um  volume intitulado “Le Droit Pur”, em que asseverou que “o direito e a arte devem ajudar-se mutuamente. Separá-los é reduzi-los”.

Andrés Fernando Nanclares Arango é um escritor e magistrado colombiano que, há vinte anos, publicou um livro fenomenal, "Los Jueces de Mármol". O livro dá algumas pistas sobre o diálogo jurídico-artístico. Influenciado por uma frase de são Francisco de Assis, Nanclares Arango propôs que há três tipos de juristas: os operários, verdadeiros autômatos que, usando só as mãos, proferem julgamentos em série e em quantidades industriais, sem descer ao humano ou à ordem social; os artífices ou talvez artesãos, que utilizam as mãos e o cérebro, mas se submetem a métodos de interpretação tradicionais, que inevitavelmente os levam a repetir o direito positivo, sem grandes espaços para a inovação ou criatividade; e por fim os artistas, que, com a cabeça, as mãos e o coração, abrem melhores horizontes de justiça aos cidadãos, sem virar as costas à humana realidade.

De fato, o espaço do direito e da justiça deve ser também um espaço de exercício de sensibilidades, imaginação, criatividade e afetos. Nesse ponto, vem a calhar o conselho do maestro e pianista Vladimir Horowitz, para quem tocar bem um piano – tanto quanto redigir uma sentença, uma petição, um parecer ou notas de aula – demanda razão, coração e meios técnicos em igual medida e proporção: "Sem razão, será um fiasco; sem técnica, um amador; sem coração, uma máquina".

Com o seu mais novo livro, "A Arte de Advogar — Entre telas jurídicas" (ed. Portas), o professor, advogado e pintor Carlos Pessoa de Aquino demonstra ser um ouvinte atento à lição de Horowitz. Aquela complexa modulação entre razão, técnica e coração resultou nesse livro — um volume que tem uma só temática, um único assunto, um argumento apenas: o exercício constante da sensibilidade, transmutada em múltiplas linguagens verbivocovisuais. É disso que trata o livro: sensibilidades. Seja em artigos técnicos em que o autor desenvolve seus argumentos jurídicos, demonstrando sua paixão pela tribuna advocatícia, seja nos discursos que proferiu em circunstâncias e auditórios diversos, seja nos ensaios em que comenta a prosa de Machado de Assis ou a poesia de Augusto dos Anjos, seja em suas coloridas telas reproduzidas entre os capítulos ou nos poemas transcritos aqui e ali, a sensibilidade de Carlos Aquino é a matéria, a questão, a tese, a trama e o objeto da coletânea.

Com o livro, Pessoa de Aquino desmistifica aquele velho lugar comum segundo o qual a única ferramenta expressiva do advogado é a palavra empoeirada da lei ou do contrato. Hoje, as telas do direito são múltiplas — podem ser telas digitais, virtuais ou até mesmo coloridas telas de algodão ou linho. À semelhança de Paul Klee, Carlos Aquino demonstra que tudo é linguagem para se falar de e com sensibilidade. Com canetas ou pincéis. Afinal, a sensibilidade pode habitar em muitas moradas.

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  • é árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA, Rotterdam), do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI, Genebra) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (Assunção, Paraguai). Professor da Faculdade de Direito da UFPB. Foi professor Visitante do Departamento de Direito da Universidade de Turim, Itália.

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