Público & Pragmático

A constitucionalidade da transferência de concessões sem licitação

Autores

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

29 de maio de 2022, 8h04

No ano de 2003, uma possível inconstitucionalidade do artigo 27 da Lei nº 8.987/1995 (lei das concessões e permissões de serviços públicos) foi colocada em discussão pela Procuradoria-Geral da República (PGR) através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.946, cujo argumento era a incompatibilidade daquele normativo jurídico com o artigo 175 da Constituição Federal.

Spacca
O artigo 27 da Lei nº 8.987/1995 expressa ser necessária a anuência prévia do poder concedente para a transferência da concessão ou do controle acionário da concessionária, bastando, para tanto, que a pretendente atendesse as exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira, regularidade jurídica, regularidade fiscal e, ainda, se comprometesse a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor [1]. A ausência de menção do artigo quanto à necessidade de uma nova licitação foi notada pela PGR, que o confrontou tanto com o artigo 26 § 1º da mesma lei [2] — que exige a licitação (na modalidade concorrência) para a subconcessão do serviço público — como com o já mencionado artigo constitucional 175, o qual dispõe que no caso de regime de concessão ou permissão, a prestação do serviço público ocorreria "sempre" através de licitação [3].

Inicialmente, o ministro Relator Dias Toffoli havia se posicionado contrariamente à transferência sem nova licitação. Contudo, após oitiva de players do setor, autoridades públicas e assim como a ponderação de pareceres jurídicos juntados aos autos, o relator mudou seu posicionamento para favorável à operação sem prévia concorrência, cuja proposta foi aderida pelos ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux. André Mendonça, Nunes Marques e Alexandre de Moraes, confirmando, por 7 votos a 4, a constitucionalidade do normativo [4].

O Senado Federal — corroborado pela AGU — argumentou pela preservação da supremacia do interesse público ao considerar constitucional o normativo, vez que estar-se-ia assegurando a continuidade do serviço público nos exatos termos em que foi licitado, já que as condições originais do contrato devem ser obrigatoriamente respeitadas. O presidente da República acresceu a sustentação de que o negócio jurídico é efetivado mediante pessoas de direito privado com anuência da Administração, sendo injustificada uma nova licitação.

Em parecer, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence, opinou pela idêntica constitucionalidade do normativo, argumentando sobre: (1) a manutenção da pessoa jurídica concessionária, ainda que haja transferência de controle acionário; (2) a flutuação natural na gestão e execução dos contratos de concessão que possuem prazos alongados, cuja alteração se submete à anuência prévia (controle) do poder concedente; (3) a preservação das condições do certame original, no caso de transferência da concessão, sem descarte, portanto, da licitação realizada; (4) o cumprimento ao princípio da finalidade que é a execução do contrato de concessão nos moldes em que foi licitado (sem ferimento, portanto, da impessoalidade, isonomia ou concorrência).

Em vista de tudo, em 2022, o ministro Dias Toffoli decidiu no sentido de que, no sistema jurídico da licitação, importa a seleção da proposta mais vantajosa, independentemente da identidade do particular contratado (desde que, claro, tenha cumprido com as premissas licitatórias iniciais), sendo ela que vincula a decisão administrativa. Sendo assim, no contexto complexo, dinâmico e duradouro dos contratos de concessão, é inclusive salutar que o regime jurídico das concessões permita aos concessionários que se ajustem à dinâmica da execução contratual, garantindo a continuidade do serviço público nos moldes originariamente contratados.

 


[1] Art. 27. A transferência de concessão ou do controle societário da concessionária sem prévia anuência do poder concedente implicará a caducidade da concessão. § 1o Para fins de obtenção da anuência de que trata o caput deste artigo, o pretendente deverá:

I – atender às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e

II – comprometer-se a cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.

[2] Artigo 26. É admitida a subconcessão, nos termos previstos no contrato de concessão, desde que expressamente autorizada pelo poder concedente.

§ 1º. A outorga de subconcessão será sempre precedida de concorrência.

§ 2º. O subconcessionário se sub-rogará todos os direitos e obrigações da subconcedente dentro dos limites da subconcessão.

[3] Artigo 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

[4] Vencidos os ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia, para quem a ausência de licitação prévia à transferência macula a isonomia, a moralidade, a transparência e a obrigatoriedade da licitação.

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    é advogada especialista em Direito Regulatório, membra da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora do livro "Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa".

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    é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados: www.justinodeoliveira.com.br

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