Processo familiar

O sistema de Juizados Especiais em sua experiência protagonista de dignidade

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

29 de maio de 2022, 8h02

A mais expressiva significação dos Juizados Especiais como Sistema de Justiça na experiência brasileira consiste na de representar uma profunda transformação do Judiciário na sua missão institucional de Estado-Juiz. Ao democratizar o acesso à Justiça, promover uma jurisdição inclusiva e efetivar a plenitude de cidadania, este Sistema aperfeiçoa a qualidade de vida das pessoas, inserida como um dos direitos fundamentais (1).

Essa reflexão conduz a dizer que os Juizados são instrumentos de vida saudável em comunidade, à exata medida de estímulo à participação de todos na busca de seus direitos. Uma abordagem nova, sob enfoque da jurisdição, outorga a cada cidadão a segurança de concretização de seus direitos, por um processo mais qualificado de resultados, de estrutura simplificada e de duração razoável, mediante uma rápida solução.

Assim sucede nas relações como consumidor, nos planos de saúde e nos fornecimentos de produtos e serviços, em padrão mais usual de pessoa física contra a jurídica; como usuário de serviços públicos e nas relações privadas entre particulares nas questões negociais. A sua competência alcança os feitos de menor complexidade cível e os processos criminais de menor potencial ofensivo. É a justiça do dia-a-dia, a justiça dos comuns do povo, a do cotidiano litigioso dos processos de massa, a justiça da concretude dos direitos mínimos em valoração de cada direito por menor que se apresente na escala dos litígios.

Esta justiça de caso concreto, tem seu modelo aperfeiçoado, por inúmeras leis, na extensão de suas origens, desde a experiência informal dos Juizados iniciada em Rio Grande (RS), quando praticada uma justiça conciliatória de demandas menores. Teve-se como paradigma do sistema o instituto da conciliação, para a autocomposição dos conflitos.

Foi a experiencia pioneira dos Conselhos de Conciliação e Arbitragem, o primeiro deles em 23.07.1982, de iniciativa do juiz Antônio Tanger Jardim, de Rio Grande (RS), logo denominados como Juizados de Pequenas Causas.

Esses tribunais informais refletiram, em bom rigor, o movimento de acesso à Justiça, depois consagrado pelo Projeto Florença, coordenado pelos professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988), culminando com a obra “Acesso à Justiça”. Anoto que a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (1948), já dispunha que “Todo homem tem direito a receber, dos tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.

Nesse contexto, o estudo do jurista Boaventura de Souza Santos, “Para uma revolução democrática da justiça” (2007) outro marco histórico, baseado em suas pesquisas nas favelas do Rio de Janeiro.

Quarenta anos completam, do berço das origens desde Rio Grande, este sistema, sucedendo a Lei 7.244/84, com os Juizados de Pequenas Causas e vindo a Constituição de 1988 prever (art. 98, inciso I), a criação de

“Juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.

Os Juizados, nessa concepção, surgiram com a Lei 9.099/95, constituindo uma Justiça Especial. Todavia, são apenas admitidos como facultativos (art. 3º, § 3º, da Lei 9.099/95), e não obrigatórios.

A Lei 7.244/84, que iniciou o Sistema, não previa em seu texto original (art. 40) a execução dos seus julgados, devendo estas serem executadas no juízo comum. Nove anos depois, o dispositivo teve redação alterada pela Lei 8.640/1993, com a unicidade do sistema, que passou a executar as suas próprias decisões, como sucede com os atuais Juizados Especiais.

Diante do alcance e dimensão destes Juizados, cumpre sugerir que se tornem jurisdição obrigatória e não facultativa, ante a especial circunstância de se constituir em inequívoca jurisdição cidadã. A tanto que a lei de regência (art. 54) dispõe que o acesso ao Juizado Especial independerá, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas. Nessa perspectiva de gratuidade, a dispensa de despesas, desde o acesso até a execução da sentença de mérito, importa que “a lei nada exige em termos de pagamento tanto do autor da ação quanto do réu”. Apenas o recurso importará o seu preparo “no pagamento de todas as despesas típicas desta fase processual, assim como as que foram dispensadas inicialmente na instância a quo”.

Para além da efetividade do processo, sob princípios informadores de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação (art. 2º, Lei 9.099/95) retenha-se, por fundamental, que a mesma lei contempla o princípio da instrumentalidade das formas (art. 13), com a validade dos atos que preencham as finalidades para as quais foram realizados.

De efeito, uma tutela adequada à realidade do direito material por um sistema multiportas, através dos Juizados, significa garantia de efetividade de direito, em tratamento compatível por modelo procedimental sempre exitoso, sem subsídios hígidos do Código de Processo Civil da justiça tradicional (3)

No ponto, uma dinâmica da própria releitura da Lei especial, em todo seu potencial, tem estimulado que o Foro Nacional dos Juizados Especiais (FONAJE), sob a presidência do eminente jurista e magistrado Alexandre Chini (2), edite inúmeros Enunciados, como repertório fundamental de suas especificidades, em permanente compromisso com uma Justiça eficiente, eficaz e segura.

A atividade dos Juizados como unidades judiciárias pode ser avaliada não mais como um mero microsistema no contexto de administração judiciária: constitui um próprio sistema de Justiça, com atuação constitucionalizada em seus fins.

A quantidade de litígios pendentes na justiça brasileira (“Justiça em Números 2021”/CNJ), situa-se em cerca de 58.347.512 processos, quando menos de 10% (5.275.922) encontram-se nos Juizados Especiais. Evidência inconteste da solução abreviada dos litígios. Enquanto isso, a demanda de casos novos no Sistema de justiça especial (2021), foi de 3.825.293, nos Juizados Estaduais, comparada aos quase dez milhões de processos iniciados no primeiro grau da justiça comum.

Perguntando se o aumento no volume de ações judiciais significa incremento de cidadania e que tipo de conflito de interesses e direitos tem ocupado a pauta do Judiciário brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça, no reportado Relatório, tem a resposta pronta:

os juizados especiais representam, no plano teórico, a síntese de modelo idealizado de acesso à Justiça e, no plano prático, o canal concreto que a população brasileira escolheu para buscar tutela a seus direitos”.

Eis o paradigma. Em ser assim, “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”, tem sido o objetivo consolidado, com êxito, pelos Juizados Especiais em nosso país.

Este é o OBS 16, como Objetivo de Desenvolvimento Sustentável incluído na Agenda 2030, aprovada pela Assembleia Geral da ONU (2015). Em menos palavras, uma garantia de prosperidade dependerá, sempre, de um sistema de justiça apto a desenvolver resultados sociais satisfatórios para todos, o que exigirá o incremento de políticas públicas continuadas para o aprimoramento da Justiça. A Agenda estimula que “parâmetros de qualidade e de efetividade” nos sistemas judiciais dos países sejam identificados à contribuição urgente de melhorias. Aliás, a Comissão Europeia para a Eficácia da Justiça apontou indicadores de qualificação e de tecnologia, importando que tais medidas implicam em políticas de inovação e de justiça 100% digital.

De tal ordem, proclamo, com idênticas diretivas, da necessidade urgente da constituição de uma Comissão Latino-americana de otimização para um Sistema de Juizados Especiais na América Latina, buscando a eficácia desse Sistema, a partir do implemento cooperativo de práticas bem-sucedidas, entre os países, com o proveito de uso de Laboratórios de Justiça com suas ferramentas e aplicativos.

 

Experiência recente foi adotada, quando o Fórum Nacional de Juizados Especiais (FONAJE), reunindo juízes de todo o Brasil, no Rio de Janeiro, deliberou à unanimidade (20.05.22), por nossa proposição, constituir um e-Jus-Lab, dedicado exclusivamente ao Sistema, com funcionalidade destinada a todos as justiças estaduais nessa jurisdição especializada. Esse novo laboratório será sediado no Laboratório de Justiça da Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

 

A propósito, a Fundação Getúlio Vargas pelo seu Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, realizando análise quantitativa e qualificativa da Inteligência Artificial (IA) aplicada nos tribunais brasileiros, indicou em 2ª edição de sua pesquisa (04/2022), 64 iniciativas em 44 tribunais do país, sendo 35 em 23 tribunais estaduais, incluindo as de Juizados Especial. Desse estudo “Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário”, situo, v.g. os modelos do Elis, para as execuções fiscais, do Tribunal de Justiça de Pernambuco e do Judi Chatbot, que orienta o cidadão para ingresso de ações em Juizado Especial Cível, do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

A par do incremento de novas tecnologias os Juizados Especiais se tornam também pequenas cortes digitais. São providências de acesso à justiça, com petições on-line, (inclusive por WhatsApp), com a atermação das queixas (reduzidas a termo as narrativas orais); da adoção de audiências à distância, e outros meios de tecnologia compatíveis, sem descurar da inclusão digital das pessoas menos favorecidas, com uso de linguagem jurídica simples e acessível, sob assimilação da informalidade.

 

Os Juizados Especiais tornam-se, de efeito, um espaço não físico, a prestar seu serviço de forma avançada, com recursos tecnológicos de uma justiça digital. Esse é um dos aspectos de seu multifacetado espectro, cumprindo destacar, lado outro, os Juizados itinerantes.

 

Experiencia prevista para a Justiça Federal (art. 107 § 2º, CF), as itinerâncias de jurisdição começaram na justiça estadual de há muito, com a prática nos municípios menos acessíveis da região amazônica, sediadas em transportes fluviais, com maior ênfase a partir de 1996 em todo o país. Esse atendimento alcança todas as comunidades, com a justiça presente onde seja sempre que necessária.

 

Em seu contexto socio-econômico e judicial, nos perfis de demandas, os Juizados representam cidadania a tempo-instante. Questões de consumo de massa, de cobranças indevidas, da não cobertura de tratamentos de saúde ou procedimentos cirúrgicos, do não pagamento de seguro social (DPVAT). de tarifas bancárias ilegais e juros abusivos ou de de telefonia, são ações que não se subsumem a meras demandas individuais. Elas evidenciam grave fenômeno social de anomias contratuais ou sociais, de inadimplementos obrigacionais ou de inações/transgressões regulatórias ocorrentes. Cada uma delas, de per si, interessa e afeta toda coletividade.

 

Quando o tempo processual em Juizados indica 200 dias (Justiça em Números, 2021), adiantando a pronta resolução do conflito, empenha-se o Judiciário pela redução do tempo do processo. Pela flexibilização dos procedimentos, por técnicas de automação adequadas e por novas políticas públicas que aprimorem o acesso à justiça e efetivem melhor a prestação de justiça.

 

Quando completamos 40 anos da experimentação dos primeiros juizados informais de pequenas causas, aperfeiçoados pela Lei nº 9.099/1995, é de extrema importância técnica e política refletirmos por um Marco Regulatório de Acesso à Justiça, em todas as suas diversidades de casos. Diploma de democratização da jurisdição plena, que melhor jurisdicionalize a cidadania e os direitos fundamentais a ela consagrados.

 

Demais disso, a Constituição de 1988 ao instituir no seu artigo 98, inciso I, os novos Juizados Especiais, também refere aos Juizados de Pequenas Causas, (artigo 24, inciso X), ao prever legislação concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para a criação, funcionamento e processo desses juizados. Ou seja, por certo, juizados de grau único, sem recursos processuais, sem custos, como alicerces de um novo microssistema que a regência da dignidade precisaria vir em lei contemplar.

 

É inegável que na organização judiciária tenhamos a suprir as necessidades sociais de justiça, mais juizados especiais no trato de questões de cidadania, envolvendo questões previdenciárias, fazendárias, de litigâncias de massa, de conflitos particulares de pequeno valor, de questões possessórias e de vizinhança.

 

Nesse desiderato, assinale-se a criação no Tribunal de Justiça de Pernambuco, de outra opção ao ajuizamento de demandas de saúde. O Núcleo de Justiça 4.0 – Juizado Fazendário de Medicamentos, surgiu em 12.08.2021, em cumprimento às Resoluções CNJ nº 385/2021 e nº 398/2021, funcionando de forma 100% digital, destinado a ações que tratem unicamente do fornecimento de remédios.

Uma cultura de pacificação social, em sociedade difusa e complexa, de muitas desigualdades sociais, deve ser instrumentalizada por meio de Juizados Especiais, reunidos em um Sistema de Justiça otimizado, descortinando todos os anseios sociais de dignidade e de cidadania.

Curso de estudos sobre os Juizados Especiais no Cone-Sul, aglutinando a justiça latino-americana, como este realizado em Mendoza, sedimenta uma tomada de posição consciente e motivadora por políticas publicas que realizem a justiça em sua toda a sua integralidade.

Cumprimento os seus organizadores, compartilhando os ideais de justiça para toda a Latino-América. Sou muitíssimo grato e bastante honrado por esse momento histórico.


(1) Apontamentos do autor em palestra no “Curso de Actualizacion em Pequeñas Causas de Justiça en América” (27.05.22), promovido pelo Instituto de Altos Estudos de Derecho, de Mendoza (ARG). Participaram o Min. José Virgílio Valério, da Suprema Corte de Mendoza; a juíza argentina Carina Ginestar, Chefe da Oficina de Pequeñas Causas; Mauricio Juan, presidente do Instituto; Martín Ahumada (mediador), as juízas brasileiras Ana Luíza Câmara, coordenadora do Sistema de Juizados do TJPE e Nicole Neves, presidente do Colégio Recursal dos JECiv. do TJPE.

Youtube: https://youtu.be/0xYhxBQTfZM

(2) CHINI, Alexandre. FLEXA, Alexandre. COUTO, Ana Paula. ROCH, Felippe Borring. COUTO. Marco. Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Lei 9.099/1995 Comentada. Salvador: Ed. JusPodivm, 2018.

(3) Obra de referência tratou do tema: Juizados Especiais Cíveis e o novo CPC. Erick Linhares (Coord.). Curitiba (PR): Juruá Editora, 2015.

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), integrante da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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