Opinião

A "nova" Lei de Improbidade e seus reflexos no Direito Eleitoral

Autores

  • Daniel Santos de Freitas

    é pós-graduando em Direito Administrativo pelo Damásio e especialista em Improbidade Administrativa do escritório Vilela Miranda & Aguiar Fernandes Advogados.

  • Priscila Lima Aguiar Fernandes

    é mestra e pós-graduada em Direito pela PUC-SP. Advogada sócia do escritório Vilela Miranda e Aguiar Fernandes Advogados e membro da Comissão Especial de Direito Constitucional da OAB-SP.

  • Fátima Cristina Pires Miranda

    é advogada sócia do escritório Vilela Miranda e Aguiar Fernandes Advogados pós-graduada em Processo Civil pelo Centro de Estudos Universitários (CEU-SP) e em Direito Administrativo pela PUC-SP.

29 de maio de 2022, 9h14

Diante do teor do artigo 37, §4º, da Constituição, em 1992 foi editada a Lei de Improbidade Administrativa (LIA, Lei nº 8.429/92) que, dentre outras coisas, criou tipos punitivos específicos, como as condutas que importam em enriquecimento ilícito (artigo 9º), dano ao erário (artigo 10) e afronta aos princípios administrativos (artigo 11). O propósito do constituinte originário foi claro: prever a instituição de um instrumento normativo voltado à garantia da probidade e moralidade administrativa, coibindo condutas contrárias a esses preceitos.

Não por outra razão que a própria Constituição determina penalidades próprias para os atos de improbidade, como a de suspensão dos direitos políticos do agente, que, segundo a Corte Superior, é a mais drástica das penalidades estabelecidas no artigo 12 da Lei nº 8.429/92 [1]. Considerando esse peso gravoso da penalidade, o STJ orienta que sua imposição deva sempre levar em consideração a magnitude do caso.

Infelizmente, a orientação de ponderabilidade não é seguida com o rigor necessário, sendo de praxe a imposição cumulativa das sanções descritas no rol do artigo 12 e incisos da LIA, inclusive a de suspensão dos direitos políticos sem a necessária fundamentação.

Com efeito, para além da restrição eleitoral direta, inúmeras outras restrições indiretas decorrem da citada penalidade, afetando direitos outros que dependem do pleno gozo dos direitos políticos para seu exercício, como a participação em sufrágios, voto em plebiscitos e referendos, impedimento para nomeações a cargos públicos não eletivos (artigos 87, 89, inciso VII, 101 e 131, § 1°, da CF), apresentação de projetos de lei por iniciativa popular (artigos 61, § 2° e 29, XI, da CF) e propositura de ação popular (artigo 5°, inciso LXXIII, da CF). A problemática por trás da aplicação irrestrita dessa reprimenda, portanto, é ampla e evidente.

Não obstante, é cediço que a Lei de Improbidade Administrativa sofreu severa alteração pela Lei 14.230/2021, que a modifica praticamente em sua integralidade, trazendo todo um novo sistema sobre a matéria. É possível afirmar a existência de uma "nova" Lei de Improbidade Administrativa, já que pouco restou da redação original da Lei 8.429/92.

Nesse cenário, inegável que a alteração normativa produz efeitos além da esfera de improbidade, atingindo especialmente a seara eleitoral, com maior impacto na Lei Complementar nº 64/1990, a chamada Lei da Ficha Limpa, a qual dispõe, em seu artigo 1º, alínea I, letra "l", que são inelegíveis para qualquer cargo os agentes condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público (artigo 10, LIA) e enriquecimento ilícito (artigo 9º, LIA), desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena.

De fato, a pena de suspensão dos direitos políticos se soma ao prazo de oito anos de inelegibilidade estabelecido pela Lei da Ficha Limpa, estando o agente inelegível pelo período equivalente ao somatório dessas duas hipóteses. Naturalmente, transcorridos os anos da penalidade imposta em ação de improbidade, estariam, em tese, afastadas aquelas restrições indiretas inerentes à pena de suspensão dos direitos políticos — participação em plebiscitos e referendos, propositura de ação popular, etc. —, mas a inelegibilidade permaneceria ativa por mais oito anos, nos termos da Lei da Ficha Limpa.

Desses apontamentos, nota-se que qualquer modificação estrutural nos tipos punitivos ímprobos referenciados pelo artigo 1º, alínea l, da Lei Complementar nº 64/1990 (ou seja, artigos 9º e 10, da LIA) ou na forma que a Lei 8.429/92 aborda a pena de suspensão dos direitos políticos, haverá reflexo no Direito Eleitoral, pois impactaria na (in)elegibilidade do agente.

Desta feita, já é possível observar um primeiro reflexo da reforma da Lei de Improbidade no Direito Eleitoral, pois, à luz da norma anterior, a jurisprudência admitia a capitulação da conduta do agente no tipo do artigo 10 da LIA sem a efetiva comprovação de dano ao erário, mediante presunção de prejuízo, com a consequente penalização do condenado à suspensão dos direitos políticos, o que avocaria a aplicação da hipótese de inelegibilidade do artigo 1º, alínea I, letra "l", Lei Complementar nº 64/1990.

Vale lembrar, nesse cenário, a controvérsia objeto do Tema 1.096/STJ (Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário) e a Súmula 41/TSE (Não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos tribunais de contas que configurem causa de inelegibilidade), para se concluir, portanto, que uma condenação na seara de improbidade por dano presumido ao erário tinha o condão de implicar nessa inelegibilidade.

Contudo, com o advento da Lei 14.230/2021, não mais há como definir como improbidade administrativa condutas pautadas em prejuízo ficto, pois a nova redação dos artigos 10 e 21, inciso I, da Lei 8.429/92 é clara ao dispor que, ainda nos casos de violação do procedimento licitatório, as ações pautadas em dano ao erário deverão demonstrar a efetiva e comprovada perda patrimonial em prejuízo do Poder Público, sendo vedada qualquer presunção nesse esteio, vide artigo 17-C, inciso I, da norma:

"Artigo 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no artigo 1º desta Lei, e notadamente: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)…
Art. 17-C. A sentença proferida nos processos a que se refere esta Lei deverá, além de observar o disposto no art. 489 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil): (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
I – indicar de modo preciso os fundamentos que demonstram os elementos a que se referem os arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, que não podem ser presumidos; (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:
I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento e às condutas previstas no art. 10 desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)."

Isso posto, a perda patrimonial efetiva tornou-se aspecto nuclear da conduta ímproba descrita no artigo 10 da LIA, junto do elemento subjetivo doloso, de sorte que é sustentável a mitigação de eventual inelegibilidade vigente em virtude de condenação em ação de improbidade por dano presumido ao erário, para o pleito eleitoral de 2022.

Tratando-se do elemento subjetivo, aqui reside um segundo reflexo da reforma da Lei de Improbidade no Direito Eleitoral: ao apreciar a redação original da Lei de Improbidade, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o elemento subjetivo necessário à configuração de improbidade seria o dolo genérico [2].

Após a alteração legislativa, no entanto, é demandado aos tipos ímprobos um dolo específico, assim compreendido como aquela conduta que visa atingir fim ilícito, estando vedada a condenação do agente pelo mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, vide artigo 1º, §§ 1º, 2º e 3º da Lei 8429/92, incluídos pela Lei nº 14.230 de 2021. Além disso, os §§ 1º e 2º do artigo 11 delimitam que, para todas as espécies ímprobas descritas na Lei 8.429/92, deve ser comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. Isto é: exige-se prova de um critério finalístico da infração aos tipos ímprobos, que é visar obter proveito ou benefício indevido para si ou outrem.

Desse modo, existe a possibilidade de o agente, anteriormente condenado por ato de improbidade ante ao simples exercício de função pública e/ou por dolo genérico, reclamar a eliminação da pena de suspensão dos direitos políticos eventualmente aplicada e, por conseguinte, seu afastamento da mencionada hipótese de inelegibilidade, reavendo seus direitos políticos em sua plenitude.

Não obstante, essa nova definição do elemento subjetivo para os atos ímprobos impacta também numa outra hipótese de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa, qual seja, a do artigo 1º, inciso g, que trata dos agentes que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa. Para essa adequação, entende-se pela necessidade de se constatar o dolo específico já referenciado.

Tais mudanças na Lei de Improbidade são análogas a abolitio criminis, instituto do direito penal que se dá quando há, por meio de lei, a conversão de um fato que outrora era tipificado como ilícito em situação não mais atingida pela esfera punitiva. A doutrina de Damásio de Jesus [3] esclarece a abolitio criminis como fato jurídico extintivo de punibilidade (artigo 107, inciso III, do CP).

Nesse contexto, essa extinção de punibilidade afetaria a seara eleitoral pelo afastamento de eventual inelegibilidade pautada no artigo 1º, alínea l, Lei Complementar nº 64/1990 em casos de condenação por atos de improbidade baseada: 1) em dano presumido ao erário; 2) dolo genérico; 3) no mero desempenho de funções públicas pelo agente (p. ex.: homologação de processo de licitação, edição/formulação de edital de licitação, etc.). Ainda, afetaria a hipótese de inelegibilidade do artigo 1º, alínea g, da Lei Complementar nº 64/1990 se constatada rejeição de contas capaz de configurar ato de improbidade por dolo simplesmente genérico.

Para além das alterações que modificam a composição dos atos de improbidade, há que ressaltar reformas atinentes à dosimetria das sanções pela prática de atos de improbidade que igualmente afetam o Direito Eleitoral.

A primeira delas diz respeito ao disposto no artigo 12, §10, da LIA, cuja redação dispõe que, para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória. O pressuposto normativo acaba por mitigar o prazo total em que o agente ficaria impedido de participar como candidato nas eleições, considerando o tempo que os processos costumam levar perante os tribunais superiores (STF e STJ) e a contagem da pena durante esse período.

Não obstante, o artigo 12, inciso III, da Lei 8.429/92, também reformado pela Lei 14.230/2021, não mais permite a condenação do agente à penalidade de suspensão dos direitos políticos pela mera infração de princípios administrativos. Note-se, nesse contexto, que o princípio da legalidade estrita deve, obrigatoriamente, ser seguido pelo magistrado. Isto é, há que se respeitar a adequação entre o delito e a penalidade correspondente em lei.

Consoante a doutrina de Bastos [4], "o princípio da legalidade impõe que somente o Poder Legislativo obriga o particular — não permitindo abusos por parte do Executivo ou do Judiciário". Portanto, não é lícito impor ou manter penas não previstas ou fora dos limites legais, mediante interpretação extensiva da lei, pois os princípios gerais do direito sancionador, notadamente o da legalidade estrita, vedam esse modus, vide entendimento pacífico do STJ a respeito [5].

Dessa forma, quanto ao agente que cumpre pena de suspensão dos direitos políticos por infração a princípios (artigo 11, LIA), é defensável que possa se candidatar no pleito eleitoral de 2022 e que tenha seu registro deferido pela Justiça Eleitoral, pois, à luz da Lei 14.230/2021, tal sanção não mais o alcançaria.

Toda essa explanação leva em consideração a retroatividade da Lei 14.230/2021 nos pontos ora abordados, nos moldes do artigo 5º, XL, da Constituição Federal, garantia a qual, segundo as doutrinas de Carvalh Filho [6], de Oliveira [7] e de Delgado [8], dentre outras, e a jurisprudência tranquila dos Tribunais Superiores, não possui raio de alcance limitado às normas de cunho criminal, ostentando incidência no direito sancionador como um todo, por se tratar, na verdade, de um princípio geral do Direito.

Aliás, tratando da "nova" Lei de Improbidade, dispõem Neves e Oliveira [9] que a aplicação da retroatividade da norma sancionadora mais benéfica encontra previsão, ainda, no Pacto de São José da Costa Rica, que não restringe a incidência do princípio ao Direito Penal, motivo pela qual seria plenamente possível a aplicação às ações de improbidade administrativa.

Com essas constatações, as possibilidades que a Lei 14.230/21 abre para questionamentos em ações eleitorais são inúmeras, pois é possível a aplicação, nessas demandas, do princípio in dubio pro sufragio, que prestigia, em casos de fundadas dúvidas, a elegibilidade do agente e sua ampla participação política.

Assim, uma vez considerada a retroatividade da reforma na Lei de Improbidade — a qual já vem sendo reconhecida pela maioria da jurisprudência —, há plausibilidade para a alegação, perante o Juízo Eleitoral, da extinção da punibilidade quanto às condenações por atos de improbidade que tiveram como pena a suspensão dos direitos políticos, nos moldes delineados neste artigo.


[1] REsp 1.228.749/PR, rel. ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 3/4/2014, DJe 29/4/2014.

[2] REsp 951.389/SC , rel. ministro HERMAN BENJAMIN, 1ª SEÇÃO, DJe 4/5/2011.

[3] JESUS, Damásio de; Parte geral; atualização André Estefam. Direito penal vol. 1- 37ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[4] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed., amp. e ai.: São Paulo: Saraiva, 1997.

[5] AgInt nos EREsp 1761937/SP, rel. ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, 1ª SEÇÃO, julgado em 19/10/2021, DJe 22/10/2021 e AgInt no AREsp 1.391.197/RJ, rel. ministro GURGEL DE FARIA, 1ª TURMA, julgado em 8/9/2021, DJe 14/9/2021.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos; Manual de Direito Administrativo — 33ª ed. — São Paulo: Atlas, 2019.

[7] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende, Precedentes no direito administrativo — Rio de Janeiro: Forense, 2018.

[8] DELGADO, Mário Luiz; Novo direito intertemporal brasileiro: da retroatividade das leis civis: problemas de direito intertemporal no Código Civil – doutrina e jurisprudência — 2ª ed. rev. e ampl. — São Paulo: Saraiva, 2014.

[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende; Comentários à reforma da Lei de Improbidade Administrativa: Lei 14.230, de 25/10/2021 comentada artigo por artigo — Rio de Janeiro: Forense, 2022, pg. 8

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