Transmutação da posse no caso de financiamento na aquisição do bem imóvel
29 de maio de 2022, 6h11
A posse é um instituto jurídico tradicional que suscita muitas discussões na doutrina e na jurisprudência, sendo definida como o exercício de fato de algum dos poderes inerentes à propriedade (uso, gozo e disposição da coisa).
O Código Civil, em seu artigo 1.196, adotou a teoria objetiva de Rudolf von Ihering, segundo a qual a posse exige a exteriorização de algum dos poderes ínsitos à propriedade, independentemente do animus ou intenção de ser o dono da coisa. A adoção da teoria objetiva implica se conceder a proteção possessória a todos que exerçam sobre a coisa um poder de apreensão, traduzido pela utilização econômica que dela façam, salvo se o legislador expressamente excluir certos casos desta proteção, como se dá na detenção (Moreira Alves. "A detenção no direito civil brasileiro", in Posse e Propriedade, vários autores, Saraiva, 1987, p. 4).
A posse passível de obtenção de proteção judicial deve ser justa, isto é, não pode ser violenta, clandestina ou precária, de sorte que o possuidor, que exerce posse justa, tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado, nos termos do artigo 1.210 do Código Civil.
Em apertada síntese, a posse violenta é a resultante de força (física ou moral) contra a vontade do possuidor, a posse clandestina é aquela estabelecida às ocultas, às escondidas, daquele que tem interesse em conhecê-la, e a posse precária é aquela proveniente do abuso de confiança, referindo-se ao ato daquele que recebe uma coisa do possuidor, em confiança, com a obrigação de restituir, e se recusa a devolvê-la quando lhe é solicitado.
A qualificação da posse, justa ou injusta, não é estanque, mas pode ter caráter dinâmico diante da possibilidade de mudança do contexto fático e de direito relacionado àquele que tem a coisa em seu poder, nos termos do artigo 1.208 do Código Civil.
É o que acontece, por exemplo, nos casos de aquisição de imóvel com financiamento, em que o comprador adquire a propriedade e a posse do imóvel, utilizando-se de recursos oriundos de operação de empréstimo, constitui em favor do credor direito real de garantia (alienação fiduciária ou hipoteca), e fica exercendo a posse sobre a coisa.
Durante o período de adimplência contratual, o comprador exerce posse justa sobre o imóvel, de sorte que, efetuado o pagamento integral da dívida, há a extinção do direito real de garantia, consolidando-se em seu nome a propriedade e a posse plenas do imóvel.
De outro lado, havendo inadimplemento da dívida prevista no empréstimo, a partir da sua constituição em mora o comprador passa a exercer posse injusta, sendo considerada como posse precária, eis que o credor tem direito de obter a restituição do imóvel para que a coisa responda pela dívida. Isso porque, o Código Civil, em seu artigos 1.419 e 1.422, dispõe que, nas dívidas constituídas com direitos reais de garantia, o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação, sendo direito do credor o de obter a execução da coisa.
A rigor, o comprador exerce posse justa durante o período de adimplemento contratual, e, pela recusa em devolver a coisa no cenário de inadimplemento contratual, a posse, até então justa, transfigura-se em injusta (Marcus Vinicius Rios Gonçalves. Dos vícios da posse. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 48).
É o que foi decidido, em 3/5/2022, pela 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no AREsp 1.013.333, relator ministro Gurgel de Faria. No caso concreto, o particular adquiriu a propriedade do bem imóvel, mediante contrato de financiamento, não havendo tecnicamente nenhum elemento que impedisse a aquisição da propriedade e da posse do imóvel, sendo considerada posse justa a exercida pelo comprador; ao revés, no momento em que, em razão do inadimplemento das parcelas daquele contrato, a credora hipotecária tem o direito de promover o leilão do bem, ao permanecer o particular de maneira irregular no imóvel, a posse passa a ser considerada como injusta diante da sua precariedade. Reconheceu-se, ainda, que não há nenhuma anormalidade na transmutação da natureza jurídica da posse, porque é instituto que não é estanque, sendo certo que, modificado o contexto de fato e de direito relacionado àquele que tem a coisa em seu poder, é natural que se altere também a qualidade da posse.
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