Embargos Culturais

Plinio Barreto e a cultura jurídica no Brasil

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

29 de maio de 2022, 8h00

Ao ensejo do centenário da Independência (1922), o jurista, jornalista e político Plinio Barreto (1882-1958) publicou "A cultura jurídica no Brasil". À época, Plinio Barreto também analisava decisões jurídicas em coluna que mantinha no jornal "O Estado de S. Paulo", "As crônicas forenses". É um precursor do que fazemos na ConJur.

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"A cultura jurídica no Brasil" é um opúsculo. Tenho uma edição bem antiga comigo, que carrego há muitos anos. Trata-se de importante estudo sobre nossa literatura jurídica. Barreto principia narrando a transmigração do direito português para o Brasil, especialmente ao longo do período joanino. Trata-se da presença da família real portuguesa no Brasil de 1808 a 1821. Para Barreto, ao amanhecer da independência, vicejava, juridicamente, uma ignorância geral.

O autor paulista (Barreto era de Campinas) refletiu sobre a relação entre o direito público e as revoluções sociais, a partir do que nos explicou o trabalho de nossa primeira assembleia nacional constituinte. Para Plinio, uma assembleia nacional constituinte exerce também um papel pedagógico, fixando as linhas mestras da educação jurídica de um povo. O tempo que seguiu a outorga da Constituição de 1824 Barreto denominou com um período que transitava entre a sombra e a luz.

Criticou juristas que eram eruditos sem concessão para com a vida real, o que levou ao debate de várias questões gramaticais quanto ao texto da Constituição, problema que será retomado cem anos depois com as discussões de Rui Barbosa sobre a redação de nosso código civil. Em dezembro de 1903, citando João de Barros, em excerto cheio de duvidosa modéstia, dirigiu-se aos senadores da Comissão do Código Civil, a propósito de remendos, observações, senões e impugnações que opunha ao projeto de Clóvis Beviláqua, que então se discutia.

Invocando que não desejara de início a tarefa, mas que uma vez imposta tornava-se sacerdócio, Rui insistia que a posição para a qual fora designado, naquele contexto, marcava pendência inevitável em terreno escabroso e esmarrido. As expressões são do jurista baiano, no original. Não me atreveria a escrever dessa forma. Obcecado com os erros de forma, e enfrentando o revisor do projeto, doutor Carneiro Ribeiro, de quem fora aluno, e também baiano, Rui ofereceu discurso erudito e implacável, a propósito de uma réplica a correções primeiras que apontou (e que foram pelo doutor Carneiro rechaçadas), refutando seus contraditores. Discutia-se forma, e não conteúdo.

Barreto tratou com pormenor sobre o tema do ensino jurídico no Brasil. A criação dos cursos de Direito no Brasil decorre, basicamente, de disposição da Constituição de 1824, de um decreto de 1825, de um projeto de regulamento atribuído ao Visconde da Cachoeira e de uma lei de 11 de agosto de 1827; esta última é considerada como o marco inicial do ensino jurídico brasileiro.

Os jovens brasileiros que buscavam educação jurídica, até então, dirigiam-se a Coimbra, em Portugal, a exemplo, entre tantos outros, de Tomás Antonio Gonzaga.

Os cursos foram criados por lei de 11 de agosto de 1827, e as disciplinas inicialmente oferecidas aos acadêmicos seriam Direito Natural, Direito Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia, Direito Público Eclesiástico, Direito Pátrio Civil, Direito Pátrio Criminal, Teoria do Processo Criminal, Direito Mercantil e Marítimo, Economia Política e Teoria e Prática do Processo adotado pelas leis do Império.

Os programas encontravam-se nos chamados estatutos do Visconde de Cachoeira e os temas discutidos na cadeira de Direito Natural (ou da Razão) são ilustrativos da impregnação iluminista. A aludida disciplina cuidaria dos fundamentos dos direitos, deveres e convenções dos homens, princípios gerais das leis (ou códigos da natureza), leis da razão, relações do homem não em abstrato, mas como cidadãos que vivem em sociedade, regulamento dos direitos e observações dos homens entre si.

Por meio dos manuais adotados (redigidos pelos próprios responsáveis pelas cadeiras) constituiu-se entre nós um processo habitual de transplante e adaptação. Exercia-se controle político em relação ao conteúdo das disciplinas ensinadas, uma vez de que os livros adotados serão publicados pela tipografia oficial. Acredita-se que o modelo de ensino era deficiente, de modo que os alunos complementavam as lições com os estudos pessoais, em que pese a dificuldade que havia de acesso a bibliografia adequada, que toda de língua estrangeira e importada da Europa. Nesse assunto deve-se completar Plinio Barreto com o livro de Venâncio Filho, "Das Arcadas ao Bacharelismo", que é o clássico no assunto.

Barreto tratou do direito penal confrontando o código de 1830 com o código de 1890. Chamou-lhe a atenção o tratamento de menores, os tribunais especiais, a repressão, o tratamento dos alcoolatras. Enfatizou a importância das obras de Pimenta Bueno, João Mendes e Vieira de Araujo.

No âmbito do direito privado esforçou-se para explicar a lentidão de seu desenvolvimento normativo entre nós. Explicou a construção do código comercial e do código civil, colocando nas entrelinhas o problema da unificação do direito privado. Tratou também do direito administrativo, com foco nos privilégios do Estado e no papel do Tribunal de Contas. A separação entre Igreja e Estado foi tópico que Barreto cuidou nos limites do direito administrativo.

Barreto também descreveu a história de nosso modelo de justiça, já percebendo o problema da dualidade das magistraturas, o que justificava a justiça federal. Um assunto a ser discutido.

"A cultura jurídica no Brasil", de Plínio Barreto é livro singular para compreendermos a construção de uma doutrina dita nacional. Um livro aguardando uma reedição, ao alvorecer de seus 200 anos, isto é, se ainda nos interessamos por nossas raízes e fundamentos.

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