Direito em tempos de festas juninas e o jogo dos 7 erros
27 de maio de 2022, 9h02
Tenho insistentemente tentado expor o que o grande jurista Bernd Rüthers diz em seus textos e livros: a interpretação não-constrangida leva à tirania e esse problema é agravado pelo fato de a própria doutrina não criticar a doutrina que não constrange.
Em um contexto jurídico em que parcela da comunidade jurídica acha que a Constituição é ruim e que traz mais direitos que deveres (sic), juízes e membros do Ministério Público ultrapassam seus limites. Para falar apenas nestes.
Aos fatos: o juiz titular da 1ª Vara da Infância e Juventude de São Luís (MA), querendo salvar os festejos juninos, editou portaria (Portaria-TJ nº 2362/2022) disciplinando a entrada e permanência de crianças e adolescentes em locais de realização de manifestações artísticas e culturais. Também estabeleceu medidas referentes ao procedimento de requerimento de alvarás judiciais para as festas de São João de 2022. Mas fosse isso suficiente, a participação de adolescentes maiores de 12 anos de idade, será permitida mediante autorização expressa do pai/mãe ou responsável legal…
E tem mais:
"Art. 2º Os procedimentos relativos à participação de crianças e adolescentes em eventos públicos, danças, grupos folclóricos, bumba meu boi e congêneres, que se apresentarem em arraiais públicos, vias e logradouros públicos ou em ambientes privados com ou sem venda de ingressos (escolas, teatros, clubes etc.) durante o período junino, obedecerão aos termos da presente Portaria:
I – É proibida a participação de crianças menores de 7 (sete) anos de idade, acompanhados ou não, após as 22 horas;
II – A participação de crianças nas faixas etárias entre 7 e 12 anos de idade, acompanhados ou incompletos será permitida até as 24 horas;
III – A participação de adolescentes maiores de 12 anos de idade será permitida até 2 horas;
§1º A participação de crianças até 12 anos de idade incompletos, independente se acompanhadas ou não dos pais ou responsáveis legais, somente ocorrerá mediante apresentação do Alvará Judicial expedido por este Juízo, o qual deverá ser requerido pelo responsável legal do evento ou grupo folclórico junto a Divisão de Proteção Integral da 1ª Vara da Infância e Juventude da Capital;"
Uma notícia sobre o caso pode ser conferida aqui e a portaria, aqui. Peço que leiam a portaria. Vale a pena.
Desde há muito é que sustento uma questão fundamental (ler aqui). O Direito não é aquilo que os tribunais (e os juízes) dizem que é. Mas por quê? É uma longa história. Cada um sabe onde o sapato aperta. E cada advogado terá a sua história…
Mas voltemos ao caso da tal portaria. Considerando a Constituição e o ECA, um juiz poderia criar direito para além das suas competências e para além (muito além) da sua função? O senso de justiça do julgador pouco importa para o Direito. Este não é nosso papel.
Resta a dúvida: será que o Beach Park e o Beto Carrero também serão regulados via portaria? Viagens para Disney seriam da alçada do STF? Vejo-me perplexo. Porque me parece um jogo dos sete erros jurídicos. Vamos ver, então, se de fato conseguimos encontrar sete erros na decisão.
O primeiro erro: desde o Estatuto da Criança e do Adolescente ao juiz é vedado a prática de portarias genéricas, invocando para si o papel de legislador. Erro crasso. A regulamentação — que é possível — tem de ser caso a caso, observada a singularidade do caso concreto. A portaria do juiz é um retorno ao velho Juizado de Menores.
O segundo erro, caudatário do primeiro: legislação por portaria — que já não é portaria, é mais do que isso. Nem o legislador faria uma lei tão detalhada como a portaria. Há uma "febre das portarias". Percebe-se o quanto é banal hoje — e, frise-se, para nosso espanto, até em uma capital da República — que tribunais e juízes baixem portarias, como se gestores públicos o fossem, para tratar dos mais supérfluos pormenores, questão evidentemente administrativas, onde o judiciário não deveria sequer imaginar em avançar[1].
O terceiro erro: onde está(va) o Ministério Público? Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente, o órgão competente para averiguar os direitos dos menores, dentro do sistema jurídico brasileiro, é o MP. E se o judiciário maranhense produziu uma portaria inconstitucional, violando suas competências, o parquet deveria ter sido o primeiro a fazer as perguntas. No caso, o juiz legisla, fiscaliza e depois aplica a lei.
E nas cidades vizinhas? Festa de crianças e adolescentes todas devem seguir a legislação feita pelo magistrado? O MP sabe disso? Fez algo? Concorda?
Quarto erro: onde está a prefeitura? Da mesma forma que o MP não se manifesta, parece que a prefeitura se quedou silente. Todo executivo municipal, que eu saiba, tem uma procuradoria. A prefeitura deixa o judiciário administrar a cidade nesse aspecto relacionado ao ECA-diversões públicas? Imaginem um alvará individual para cada criança que quiser participar da festa… Isso é razoável?[2]
Quinto erro: o que é isto — o direito administrativo? Muito se fala hoje na "ascensão dos não-eleitos", ou de como as decisões administrativas estão se transferindo de um polo clássico (o do legislativo e do executivo) para um universo multipolar, onde cada vez mais órgãos reguladores e demais atores políticos não-eleitos (tribunais, MP, cortes de contas etc.) estariam tendo um papel cada vez maior na gestão pública. Podem me chamar de jurássico, não me importo. A legitimidade conta, e, em países como o Brasil, em que o judiciário é legitimamente demandado como poucas outras nações no mundo (ver a diferença entre judicialização e ativismo em diversos textos meus), juízes e tribunais — penso assim —têm muitas tarefas mais importantes do que fiscalizar festas juninas e "legislar" sobre parque de diversões. O cometa vem aí e o estamos preocupados com festas juninas (não estou dizendo que isso é desimportante; o bom leitor saberá interpretar o que estou dizendo).
Sexto, sétimo (e outros) erros: deixemos, rogo eu, que a Constituição nos diga algo. Falando dos erros especificamente, fica evidente que a portaria-decisão afronta alguns aspectos procedimentais-constitucionais-legais (direito de reunião, pois a portaria não fundamenta quais seriam os riscos envolvendo festas juninas e a eventual participação de crianças). Há inúmeras festas pelo Brasil. Por que apenas as de São Luís apresentariam riscos — a esse patamar para emitir portaria genérica desse jaez — para crianças e adolescentes? Além disso, há o sério problema da fundamentação, da razoabilidade e da isonomia, tudo indicando a impossibilidade de qualquer "ponderação" do direito fundamental de reunião (e lazer).
A portaria poderia ser atacada por inúmeras outras frentes (o que são aquelas discriminações etárias por horários? Agora magistrados irão decidir quando um jogo de futebol acaba porque há crianças menores de 12 anos no estádio?).
Há algum tempo escrevi um livro chamado "Precisamos falar sobre Direito e Moral". Estou cada vez mais convicto que precisamos falar sobre muitas coisas do direito. E disso exsurge uma questão: ou o gestor assume seu protagonismo constitucionalmente assegurado, ou os "não-eleitos" serão os novos gestores integralmente, e não mais apenas "nas horas vagas".
Por último: fiquei vivamente impressionado com a expressão "os locais porventura frequentados por crianças e adolescentes". É de grande certeza e especificidade…
Num retranca final, repito o que disse acima, para me prevenir do ataque dos haters: o cometa vem aí e o estamos preocupados com festas juninas. Atenção: não estou dizendo que isso é desimportante; o bom leitor saberá interpretar o que estou dizendo. O evidente exagero da portaria fala por si.
[1] Ver, para tanto, as três perguntas de minha proposta de Teoria da Decisão, onde uma delas fala que um juiz deve se perguntar, ao decidir sobre qualquer questão: minha decisão pode ser universalizável? Caso a resposta seja negativa, o juiz incorrerá em ativismo. Caso flagrante o da presente portaria.
[2] Casos como esse me fazem remeter o leitor ao livro Direito Administrativo do Medo (2. ed., RT, 2022), de Rodrigo Valgas dos Santos. O autor trabalha bem os motivos de como as motivações ideológicas do judiciário muitas vezes causam atrofia na gestão pública, causando inúmeras disfuncionalidades. Portarias como essa — e eventual inação ou obediência cega da prefeitura de São Luís — dariam um ótimo exemplo para edição futura atualizada da obra. Em evento recente, ao debater os assuntos discutidos na obra, certo ministro do Tribunal de Contas da União disse que era função, sim, dos órgãos de controle "dar medo no gestor público". Me pergunto: onde vamos parar? Se um ministro da mais alta instância de controle fala isso, imaginem como irão se portar gestores competentes por todo o país…
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