Opinião

O debate jurídico trazido pela ADC 51

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26 de maio de 2022, 11h13

Em um contexto de crescimento significativo do uso da internet para a prática de crimes, o plenário do Supremo Tribunal Federal deve decidir, durante o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 51 (ADC 51), se os mecanismos de cooperação internacional previstos pela lei brasileira para a obtenção de provas em território estrangeiro (cartas rogatórias e Acordo de Assistência Jurídico-Penal entre Brasil e Estados Unidos  MLAT) são constitucionais e, caso o sejam, se são instrumentos de utilização obrigatória pelas Cortes brasileiras para a obtenção do conteúdo de comunicações privadas armazenadas no exterior por provedores de aplicações de internet (conceito em que se enquadram, entre outros, os provedores de redes sociais, e-mails e hospedagem de sites).

Para além da questão constitucional direta, o debate também advém da interpretação do artigo 11 caput, parágrafos primeiro e segundo, da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet ou MCI), o qual prevê que a lei brasileira se aplica em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, bem como nos casos em que tais atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, mas que oferte serviço ao público brasileiro, ou em que pelo menos uma empresa integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.

Se por um lado se argumenta que por essa disposição a utilização dos procedimentos de cartas rogatórias ou aqueles previstos nos mecanismos de cooperação internacional estariam dispensados; por outro, também é feita a leitura de que o próprio dispositivo menciona a obediência à lei, sendo a carta rogatória o meio adequadamente previsto para a hipótese ou mesmo o procedimento descrito no acordo de cooperação, geralmente incorporado no ordenamento jurídico por Decreto Legislativo, com força de lei (artigo 59, VI, CF). Ou seja, a própria lei brasileira prevê os mecanismos de cooperação internacional como instrumentos necessários à obtenção de provas no exterior. O parágrafo 2º do artigo 10, do Marco Civil da Internet, também reforça esse ponto, trazendo a exigência de se seguir as hipóteses "e a forma que a lei estabelecer".

A questão é relevante porquanto eventuais ordens judiciais que não obedeçam esse rigor legal podem sujeitar o provedor que possua filial ou escritório no Brasil, mas que não tenha qualquer ingerência sobre a operação da plataforma, a eventuais penalidades por descumprimento.

Trata-se de situação que não tem previsão legal expressa. O MCI apenas prevê a guarda obrigatória dos chamados registros de acesso (IP atrelado a uma data e horário) pelo prazo de 6 meses. As poucas disposições acerca de conteúdo ou outros dados não impõem qualquer obrigação de guarda ou fornecimento, mas apenas e tão somente a obediência às regras de proteção da privacidade, nas hipóteses em que ocorrer eventual tratamento.

Assim, o artigo 11 do MCI não afirma que as decisões da Justiça brasileira serão aplicadas diretamente aos provedores localizados no exterior, tampouco que as autoridades brasileiras a cargo da persecução penal estarão autorizadas a coletar provas diretamente em território estrangeiro ou a executar medidas investigativas no exterior

A questão levada ao debate, portanto, não pode passar ao largo do fato de que a lei brasileira não exige a guarda de conteúdo e de que, em razão disso, não pode ser usada como argumento para exigir de empresas brasileiras sem ingerência sobre servidores estrangeiros, mecanismos de cumprimento direto de ordens judiciais, quebrando o sigilo de dados não salvaguardados pela lei. E mais, que muitas vezes estão protegidos por legislações estrangeiras sob o aspecto da privacidade.

Ressalte-se que grande parte dos provedores de aplicações encontram-se sediados nos Estados Unidos da América, submetendo-se ao Stored Communications Act, legislação que, fora das hipóteses de exceção expressamente previstas em lei, veda a disponibilização de dados de comunicação privada armazenados no país sem que, para tanto, exista uma ordem emitida por autoridade judicial norte-americana.

Não à toa, nessas hipóteses, argumenta-se que a observância dos procedimentos de cooperação internacional é indispensável para que o provedor de aplicações estrangeiro possa disponibilizar o conteúdo de comunicações privadas às Cortes brasileiras sem violar as leis do país em que está sediado. O próprio MCI, em seu artigo 10, caput, prevê que a guarda e disponibilização de dados pessoais e de conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade e vida privada dos usuários e demais partes envolvidas, tratando-se de garantias constitucionais expressamente acolhidas pelo MCI como princípios norteadores do uso da internet no país.

Dessa forma, entendemos que nos casos em que o provedor responsável pela guarda – para quem a ordem deve ser dirigida, nos exatos termos do artigo 10, primeiro parágrafo, do MCI — não for a subsidiária brasileira, mas sim o servidor estrangeiro, devem ser observados os mecanismos de cooperação jurídica internacional regulares estabelecidos pela legislação pátria (cartas rogatórias ou acordos de cooperação mútua).

O julgamento da ADC, de caráter vinculante, deverá colocar um ponto final nessa discussão.

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