Opinião

Atividade policial, Poder Judiciário e o direito fundamental à segurança pública

Autor

  • Francisco Sannini Neto

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo professor do Damásio Educacional e do QConcursos e delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

26 de maio de 2022, 6h30

Nos últimos anos, muito influenciado pelo mensalão e pela operação "lava jato", o Poder Judiciário ganhou papel de enorme destaque na seara penal, ora com um viés mais persecutório, ora com um perfil mais garantista. De maneira ilustrativa, de 2009 até o presente momento (2022), a jurisprudência do STF oscilou algumas vezes sobre a possibilidade de execução provisória da pena após a condenação em segunda instância, fase em que são exauridas as discussões sobre fatos e provas, firmando-se, ao menos por ora, o entendimento de que o cumprimento da pena só pode ter seu início com o trânsito em julgado da condenação (ADCs 43, 44 e 54, relator ministro Marco Aurélio) [1].

Ocorre que, recentemente, a jurisprudência dos tribunais superiores vem promovendo mudanças diretas e significativas na atividade policial, o que, naturalmente, reflete na área da Segurança Pública. De forma exemplificativa, no julgamento do RHC 51.531/RO, o STJ entendeu pela ilicitude da devassa de dados, bem como das comunicações por meio do aplicativo Whatsapp obtidas de forma direta pela polícia em aparelho celular apreendido no flagrante, sem consentimento do usuário ou prévia autorização judicial.

Já no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 603.616, o STF firmou a seguinte tese: "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados" [2].

Registre-se que nos dois precedentes acima indicados nós entendemos que a jurisprudência foi muito bem, adotando posicionamentos que, por um lado, resguardam direitos e garantias fundamentais e, por outro, conferem uma maior segurança jurídica para a atividade policial.

Ocorre que na esteira do julgamento do RE 603.616 pelo STF, surgiram diversos julgados no STJ que, em nosso sentir, são merecedores de críticas, notadamente por comprometeram a promoção de um direito fundamental extremamente relevante: a Segurança Pública, prevista no caput do artigo 5º, da Constituição da República.

Primeiramente, devemos compreender o significado de segurança pública enquanto direito fundamental. Isto, pois, de um modo geral, existe uma visão equivocada acerca do sentido e da dimensão do conceito de segurança. Ao pensar em um direito à segurança, a primeira coisa que nos vem à cabeça é a existência de um "braço armado do Estado", cuja função é unicamente servir ao Governo e suas políticas, o que implicaria, não raro, na restrição de liberdades e garantias individuais.

É claro que se dentro de um Estado democrático de Direito todos devem respeito à lei, torna-se necessária a criação de uma ou várias instituições cujo papel principal seja assegurar a sua observância. Tendo em vista que a lei representa a manifestação da vontade geral, o Estado deve se organizar para impedir a sua violação, valendo-se, entre outras coisas, da previsão de sanções das mais diversas naturezas, observada a fragmentariedade do Direito Penal.

O direito à segurança, nesse contexto, se destaca como uma garantia ou até mesmo uma forma de coação contra atos ilegais, assegurando, outrossim, o convívio em sociedade e a concretização dos demais direitos fundamentais. Percebe-se, pois, que se trata de um dever do Estado para com a população integrante de seu território.

Com efeito, é preciso que se compreenda que a Segurança Pública é um bem jurídico basicamente instrumental. O que se quer dizer com isso? Que ela não constitui um fim em si mesma, mas sim um meio através do qual muitos outros bens jurídicos são assegurados (ex. vida, honra, liberdade, integridade física, patrimônio etc.). Toda vez que a segurança pública ou outras expressões similares (v.g. segurança nacional, ordem pública etc.) são colocadas em primeiro plano ou como fins e não instrumentos para assegurar outros bens jurídicos, descamba-se facilmente para o autoritarismo e a violação dos direitos fundamentais na conformação de um chamado "Estado Policial".

Como bem apreendido pelo teórico lusitano Guedes Valente:

"Quando lemos ou ouvimos falar de segurança, pensamos imediata e erroneamente, em coação, em restrição de direitos, de liberdades e garantias. São poucos os que pensam na segurança como um direito garantístico do exercício dos demais direitos, liberdades e garantias, i. e., como direito garantia. (…). A segurança como bem jurídico coletivo ou supra  individual não pode ser vista em uma perspectiva limitativa dos demais direitos fundamentais, mas, tão só e em uma visão humanista e humanizante, como garantia da liberdade física e psicológica para usufruto pleno dos demais direitos fundamentais. Face a esta realidade, impõe-se a criação de uma força colectiva  Polícia  capaz de promover e garantir, em níveis aceitáveis, a segurança dos cidadãos e dos seus bens, o que onera o Estado de direito democrático a consagrar aquela como sua tarefa fundamental" [3].

Fixadas essas premissas, voltamos à análise da jurisprudência nacional e sua relação com a atividade policial, não sem antes reiterar que o Poder Judiciário não pode jamais se apartar da realidade social, encastelando-se em gabinetes e fechando os olhos para as agruras vivenciadas, cotidianamente, pelos nossos policiais em todo país.

Nesse sentido, merece crítica a decisão do STJ no HC 415.332/SP, em que se reconheceu a ilicitude das provas obtidas pela polícia ao ingressar na residência de um suspeito que empreendeu fuga na via pública após avistar a viatura policial. Na decisão em questão foi destacada a ausência de demonstração da atitude suspeita por parte do acusado que pudesse justificar a violação do domicílio pela polícia.

Ora, com todo respeito ao STJ, mas se um sujeito foge em direção a sua residência ao avistar a aproximação da polícia, nos parece claro que a fuga, por si só, é indicativa da "fundada suspeita". Afinal, o que levaria um cidadão que atua de acordo com a lei e nada deve para a Justiça, a empreender fuga?! Qual a razão para se esquivar de uma eventual abordagem policial, que, aliás, poderia nem acontecer, mas acabou sendo precipitada, justamente, pelo comportamento suspeito do acusado.

Em sentido semelhante, o STJ entendeu, ao julgar o HC 561.360/SP, que o fato de um indivíduo não parar o veículo diante de abordagem policial não autoriza que, após perseguição, os policiais ingressem no domicílio em que o suspeito buscava abrigo.

Note-se que nos dois casos os comportamentos dos acusados levantaram fundada suspeita (exteriorizada pela fuga) de alguma ilicitude, o que legitima a ação policial, inclusive com o afastamento da inviolabilidade domiciliar diante de elementos objetivos que indicam um possível estado flagrancial. É preciso que se compreenda: se não houvesse a fuga, a intervenção dos policiais se limitaria a uma revista pessoal e/ou veicular, exaurindo-se no local da abordagem.

De acordo com o nosso entendimento, ao se esquivar da polícia o cidadão assume o ônus de sofrer com maiores limitações aos seus direitos fundamentais. Se, por ventura, a fuga foi motivada por uma infração administrativa de trânsito, por exemplo, o indivíduo deve sofrer as consequências de sua escolha ao buscar abrigo em sua residência, que, insistimos, não pode servir de escudo para a prática de crimes.

Em reforço, lembramos que o mesmo STJ definiu, sob o rito dos recursos repetitivos, que é crime de desobediência, previsto no artigo 330, do CP, ignorar a ordem de parada de veículo emitida por policial no exercício de atividade ostensiva de segurança pública (REsp 1.859.933). Assim, na segunda hipótese retratada acima, o sujeito que fugiu após a abordagem policial já se encontrava em estado flagrancial pelo crime de desobediência (artigo 302, inciso III, do CPP), o que também justificaria o ingresso no seu domicílio pelos policiais, sendo certo que o eventual encontro fortuito de provas relacionadas a outros crimes representaria um desdobramento natural da ocorrência, aplicando-se perfeitamente a Teoria da Visão Aberta. Isso porque que os policiais, uma vez no interior da casa, não podem fechar os olhos para algo que esteja à plena vista, como drogas, armas de fogo etc.

Ocorre que recentemente o STJ proferiu decisão ainda mais questionável ao entender que exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa)  baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto  de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

No julgado foi pontuado que não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de "fundada suspeita" exigido pelo artigo 244 do CPP.[4]

Percebe-se que a decisão praticamente inviabiliza a abordagem policial seguida de revista pessoal com base nesta interpretação do artigo 244, do CPP. Registre-se, ademais, que o posicionamento ora combatido vai de encontro com a própria jurisprudência do STJ no já citado julgamento do HC 415.332/SP, que, vale dizer, também é da relatoria do ministro Rogério Schietti, se, não, vejamos:

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo paciente, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a permitir o ingresso em seu domicílio, sem seu consentimento  que deve ser mínima e seguramente comprovado  e sem determinação judicial.

Fica claro, portanto, que no julgado em destaque o próprio STJ reconhece que a intuição do policial, pode, sim, dar ensejo a abordagem e busca pessoal. Sobre o tema, são esclarecedoras as lições de Marcelo Lessa ao tratar do tirocínio policial como justificativa para a abordagem: 

"(…) a fundada suspeita provém da análise, em parte objetiva (algo concreto), do conjunto comportamental do indivíduo, cuja realização se baseia na experiência profissional e na capacidade de percepção adquirida pelo policial na constância da sua atividade (o tirocínio fundado e não presumido), a qual possibilita a identificação de condutas (comportamentos) e situações concretas (cenários) que justifiquem a abordagem e a busca, diante da probabilidade ou da iminência de uma prática ilícita ou antissocial. Desse modo, não existe pessoa ou atitude suspeita, mas sim, pessoa em atitude fundamentadamente suspeita, é um binômio" [5].

Sem embargo do exposto, não se pode olvidar que existe uma busca pessoal sem qualquer relação com o artigo 244, do CPP, e que deve ser realizada de forma preventiva, com respaldo no direito fundamental à segurança pública e justificada pelo Poder de Polícia do Estado, que, como é cediço, tem aptidão para limitar direitos em busca da Supremacia do Interesse Público. Nas palavras de Lessa:

"A abordagem preventiva (e falemos preliminarmente da abordagem, para depois enfrentarmos a busca), é uma interpelação excepcional decorrente do poder de polícia e do poder-dever de vigilância do Estado, e que objetiva, com razoabilidade e prévia suspeita instintiva objetiva (note-se, e não mera suposição para fins de invasão sumária de privacidade), preservar a ordem pública, prevenir delitos e atos antissociais ou atender as conveniências e necessidades coletivas. Diz-se também que tem ela natureza protetiva (ou de segurança) por exigir a suspeita razoável (e não mera suspeita) de que o indivíduo representa algum tipo de perigo atual ou iminente para o policial ou para o público em geral, exigindo-se, assim, uma ação ativa (e jamais omissiva) dos órgãos de defesa social".

É justamente nesse contexto que nos insurgimos contra a decisão do STJ, que nesse caso específico coloca em risco a Ordem Pública e inviabiliza o trabalho preventivo das agências policiais. Seria impossível combater o tráfico de drogas ou de armas de fogo, cujos criminosos se valem rotineiramente das nossas rodovias e estradas para transportar os ilícitos, sem a realização de um policiamento preventivo-fiscalizatório.

Como ficaríamos nesses casos? A polícia rodoviária não mais poderá abordar e revistar, ainda que aleatoriamente, veículos que trafegam pelas rodovias?! E os motociclistas, não mais poderão ser abordados pelas polícias civil e militar?! Parece-nos que a decisão fecha os olhos para uma triste realidade em que criminosos se "fantasiam" até de entregadores de encomendas para circular dissimuladamente e, quando tiverem a chance, realizarem assaltos, se valendo, não raro, de violência contra as vítimas.

Por obviedade, a realização de uma busca pessoal causa constrangimento, mas trata-se de um ônus plenamente justificável pelo interesse coletivo de assegurar a incolumidade das pessoas. Não por acaso, diversos estabelecimentos e eventos de todos os gêneros exigem a revista pessoal como condição para o ingresso de pessoas. No Estatuto do Torcedor, por exemplo, existe expressa previsão no artigo 13-A, inciso III, de que é condição de acesso e permanência no recinto, o consentimento para a revista pessoal de prevenção e segurança.

Frente ao exposto, embora reconheçamos um papel relevante do Poder Judiciário ao estabelecer vetores que confiram maior segurança jurídica para a atividade policial, reiteramos que sua intervenção não pode se apartar da realidade social e das estatísticas criminais que, infelizmente, não param de crescer. Nos casos criticados neste texto, temos a convicção, pelos substratos fáticos e jurídicos aqui destacados, que a jurisprudência, ao que tudo indica, encastelada, prestou um enorme desserviço à sociedade.


[1] Antes disso, o STF já admitiu a execução provisória da pena após a condenação em 2ª instância, entendimento que perdurou até 2019: STF, HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki, j. 17.02.2016.

[2] Em outros julgados, o STJ já se posicionou pela necessidade da polícia registrar, por meio de câmeras, o consentimento do morador antes de ingressar na sua residência (HC 598.051) e anulou reconhecimento pessoal realizado sem a observância do regramento imposto pelo artigo 226, do CPP (HC 712.781).Em tais casos, entendemos que as decisões foram corretas.

[3] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria Geral do Direito Policial. 2ª. ed. Coimbra: Almedina, 2009. p.94-95.

[4] STJ, HC 158.580/BA, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 19.03.2022.

[5] LESSA, Marcelo de Lima. Afinal, é apenas a fundada suspeita que, em regra, autoriza a busca pessoal? Disponível: https://jus.com.br/artigos/97381/afinal-e-apenas-a-fundada-suspeita-que-em-regra-autoriza-a-busca-pessoal . Acesso em 10.05.2022.

Autores

  • Brave

    é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação da Unisal-Lorena, da Acadepol-SP e do Damásio Educacional, mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público, colunista do Canal Ciências Criminais e autor de livros jurídicos.

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