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Implicações do julgamento do STF sobre gratuidade no processo trabalhista

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26 de maio de 2022, 7h06

No último dia 3 de maio foi publicado o acórdão do Supremo Tribunal Federal no Diário da Justiça Eletrônico, dando conta da íntegra do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.766, que avaliou a constitucionalidade de parte das disposições da Lei nº 13.467/2017, intitulada de reforma trabalhista, referentes à amplitude dos efeitos dos benefícios da justiça gratuita previstos nos artigos 790-B, caput e § 4º, 791-A, § 4º e 844, § 2º, todos da CLT.

O primeiro ponto a merecer atenção, de acordo com o constante no acórdão e na certidão de julgamento, é a existência de ruído de comunicação entre a amplitude do pedido inicial e o conteúdo da decisão do ministro Alexandre de Moraes, que liderou a tese vencedora, e o próprio teor do acórdão ora publicado, que não traduz exatamente o que consta do citado voto condutor proferido na sessão plenária.

Isso porque no acórdão consta ter sido decidido pela inconstitucionalidade integral do § 4º do artigo 791-A da CLT, enquanto o voto do ministro Alexandre, nos limites do pedido da inicial da ADI, declarou a inconstitucionalidade apenas de parte deste dispositivo, restringindo-se à expressão "desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa".

Tanto a contradição foi constatada pela comunidade jurídica, que o Advogado-Geral da União apresentou embargos de declaração atacando o acórdão, encontrando-se pendente de apreciação e julgamento pela Corte.

Independentemente da necessidade de correção da contradição ou erro material contido na fundamentação e no dispositivo do acórdão, certo é que as argumentações contidas nos votos dos outros ministros do Supremo têm a característica de obiter dictum, já que não tiveram adesão majoritária, na medida em que restou claro ter sido o voto do Ministro Alexandre de Moraes a tese prevalecente, que deverá ser obrigatoriamente observada, em razão de seu efeito vinculante.

E essa decisão, diferente do que tem sido afirmado por algumas interpretações de juristas e decisões recentes dos tribunais trabalhistas, não isenta o trabalhador beneficiário da justiça gratuita da condenação ao pagamento dos honorários do perito e da verba honorária dos advogados da parte adversária. O próprio Supremo, em tantos outros precedentes, já deixou claro que não se deve confundir a suspensão da exigência quanto às despesas do processo com a sua isenção, já que "o beneficiário da justiça gratuita, quando vencido, deve ser condenado a ressarcir as custas antecipadas e os honorários do patrono vencedor". "Entretanto, não está obrigado a fazê-lo com sacrifício do sustento próprio ou da família." (STF – Plenário – RE nº 249.003 — DJE 10.05.2016).

No caso da ADI nº 5.766, o que ficou decidido como sendo inconstitucional é a possibilidade automática de o trabalhador beneficiário da justiça gratuita ser executado quanto aos honorários, periciais e advocatícios, quando sucumbente, pelo simples fato de ter recebido qualquer montante na mesma ação trabalhista.

Segundo a decisão, a possibilidade de pagamento das despesas relacionadas aos honorários, periciais e advocatícios, pelo trabalhador vencido que teve a concessão dos benefícios da justiça gratuita, deve ser avaliada, caso a caso, analisando-se a permanência da condição de hipossuficiência no momento da satisfação da despesa processual, que é após o trânsito em julgado, pressupondo a sua condenação na fase de conhecimento.
É muito importante sublinhar que tanto para pagamento dos eventuais honorários periciais, quanto para pagamento dos honorários sucumbenciais, estabeleceu-se não ser critério definidor da exigibilidade das despesas o fato de o trabalhador beneficiário da justiça gratuita ter obtido créditos no próprio processo ou mesmo em outra demanda.
O que se definiu na ADI nº 5766 é que a verificação da permanência da situação de hipossuficiência do trabalhador beneficiário da justiça gratuita deve ser feita caso a caso e não de forma automática, a partir de qualquer valor recebido.
Em palavras outras, o que o Supremo afastou foram as interpretações mais diretas que entendiam pela possibilidade de se determinar, na própria sentença, que do montante objeto da condenação já fosse deduzido o valor para o pagamento dos honorários, mesmo que a quitação destes últimos deixasse o trabalhador sem saldo remanescente algum.
Conforme um dos autores deste texto já havia defendido há tempos[1], entendemos que o Supremo andou bem ao não estabelecer, em abstrato, qual seria o valor obtido em uma demanda capaz de alterar a condição de hipossuficiente do trabalhador beneficiário da justiça gratuita, de forma que o juízo da execução é quem deve avaliar, no caso concreto, levando em conta todas as circunstâncias daquele caso específico, se o montante recebido retira o trabalhador da condição de miserabilidade, apta a autorizar a revogação da gratuidade, para, aí sim, as despesas poderem ser executadas em desfavor de alguém que não é mais um, juridicamente, débil.
Ao decidir assim, a Suprema Corte assegurou que o verdadeiro hipossuficiente, que se mantém na condição de miserabilidade jurídica durante todo o processo, tenha assegurado o direito de amplo acesso ao Poder Judiciário, sem, contudo, conceder-lhe salvo-conduto para que deduza pretensões destituídas de fundamento ou lastro probatório, porque consciente de que nunca arcaria com as despesas processuais.
Percebe-se claramente a preocupação do STF em não criar obstáculos para que o trabalhador beneficiário da justiça gratuita busque o Poder Judiciário para defender seus direitos, ao mesmo tempo em que não estimula a litigância irresponsável, sem que as partes dimensionem os custos e riscos processuais, conforme bem pontuado neste trecho do voto do Ministro Alexandre de Moraes:

Assim, não há excesso legislativo ou desproporcionalidade na possibilidade de que o jurisdicionado da Justiça Trabalhista, de quem não se exigiu antecipação de despesas para o ingresso em juízo, seja posteriormente responsabilizado por despesas a que deu causa, nas hipóteses em que possuir condições financeiras para tanto, pois, nesse específico cenário, seria indevidamente favorecido por política pública financiada pela sociedade em prol daqueles mais necessitados.

Seguindo nesta mesma direção, a Corte Superior decidiu manter a higidez do § 2º do art. 844 da CLT, declarando-o constitucional, por entender que compete ao trabalhador uma “cooperação mínima para o exercício da jurisdição, no contexto em que o Estado se dispôs a tutelar o pleito do trabalhador sem exigência de custas”.

Dito de outra forma: ainda que hipossuficiente, o trabalhador precisa litigar com responsabilidade, observando os princípios da boa-fé, da lealdade processual, cumprindo as suas obrigações mínimas, tal qual a de comparecer aos atos processuais designados, justificando, fundamentadamente, a impossibilidade, mesma conduta que se exige dos empregadores, normalmente réus nas ações trabalhistas.

A previsão legal concede prazo razoável para o trabalhador justificar sua ausência, cabendo ao juízo da causa auferir no caso concreto a pertinência da justificativa, para o caso de, acolhendo-a, dispensá-lo de arcar com essa despesa.
Mais uma vez, percebe-se o norte orientador do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o hipossuficiente deve ter amplamente assegurado o seu acesso ao Poder Judiciário sem ter que arcar com as custas e despesas processuais. Porém, deve agir em juízo de forma proba e comprometida, pleiteando apenas o reconhecimento de direitos verossímeis e com algum lastro probatório, cumprindo suas obrigações processuais ao tempo e modo corretos, atendendo as intimações judiciais e comparecendo aos atos processuais designados, ainda restando o direito-dever de justificativa fundamentada nas hipóteses imprevisíveis de não puder fazê-lo.
Em conclusão, a ratio decidendi do acórdão proferido na ADI nº 5.766 do Supremo Tribunal é na linha de que todos os litigantes trabalhistas que sejam sucumbentes devem ser condenados nas despesas do processo (custas processuais, honorários periciais e dos advogados), independentemente da posterior concessão dos benefícios da justiça gratuita na mesma sentença, em capítulo próprio, a qual suspenderá a exigibilidade da cobrança, até que a parte adquira condições financeiras que lhe retire da situação de miserabilidade, autorizando que o juiz da execução, caso a caso, revogue os benefícios da gratuidade, colocando parte dos seus créditos em descoberto para que as despesas processuais sejam executadas, se já não houver consumado o prazo da prescrição intercorrente quanto às respectivas pretensões.


[1] MOLINA, André Araújo. A gratuidade da justiça no contexto da reforma trabalhista. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, vol. 197, p. 57-82, jan. 2019.

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