Controvérsias Jurídicas

A teoria da base objetiva e a renegociação contratual

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

26 de maio de 2022, 8h04

A pandemia do coronavírus fixou novo paradigma na sociedade contemporânea. O mundo terá de enfrentar suas consequências e, provavelmente, assistir a uma mudança comportamental, social e econômica da sociedade, com enormes repercussões na esfera jurídica. Nesse contexto, merece destaque a decisão da 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em voto de lavra do desembargador César Zalaf, no sentido de reconhecer a Teoria da Imprevisão em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel, para substituir o índice de correção monetária IGP-M pela Taxa Referencial ou IPCA, dado os reajustes desproporcionais que atingiram o patamar de 25% em janeiro de 2021 [1]. Sustentou o magistrado que a pandemia causou um descontrole do índice previsto na avença, implicando em desequilíbrio contratual e em onerosidade excessiva para uma das partes.

Não se trata de questão incontroversa, tendo em vista que parte da doutrina e da jurisprudência, em prestígio ao princípio do pacta sunt servanda, entende pela manutenção dos termos contratuais estabelecidos entre as partes [2]. Contudo, paradigmaticamente, o voto sob exame aplicou os institutos previstos nos artigos 317 e 478 do Código Civil e a teoria da base objetiva do contrato, a qual permite a readequação contratual fundada no artigo 6º, V do Código de Defesa do Consumidor.

Dada sua imprevisibilidade, juridicamente o fenômeno da pandemia se classifica como caso fortuito. Ninguém, na passagem de 2019 para 2020, poderia antever a tragédia humanitária, sanitária e econômica que estava por vir. Além de imprevisível, trata-se de evento incontrolável, o qual não teria como ser evitado, ainda que previsto. Nos termos do Código Civil, o caso fortuito e a força maior provocam a resolução do contrato em vigor, sem obrigação de perdas e danos a nenhuma das partes. No mesmo sentido, José Fernando Simão [3] leciona que por se tratar de uma pandemia viral imprevisível e incontrolável pelas forças da natureza, a tendência é de se classificar tal acontecimento como caso fortuito ou força maior, incidindo a regra do artigo 393 do CC [4].

Não é essa, contudo, a regra a reger a hipótese, uma vez que a melhor maneira de promover o enfrentamento deste drama, seja do ponto de vista jurídico, seja sob o prisma econômico, é manter em vigência os contratos afetados, sob pena de provocar paralisação total das atividades e desemprego em massa. O caminho ditado pelo senso de razoabilidade é a aplicação da Teoria da Imprevisão ou da Base Objetiva, previstas na legislação civil e no CDC, com a adoção da cláusula rebus sic stantibus, restabelecendo os níveis de paridade existentes ao tempo da celebração do ajuste.

Há muito, os doutrinadores discutem a distinção entre os institutos. Para Orlando Gomes [5], a teoria objetiva de caso fortuito caracteriza-se pela imprevisibilidade ou irresistibilidade do evento determinante da impossibilidade de cumprir a obrigação. A teoria subjetiva, por sua vez, considera a ausência de culpa, quaisquer que sejam os elementos intrínsecos do fato. Posteriormente, a teoria objetiva subdividiu-se. O caso fortuito ficou caracterizado pela imprevisibilidade do acontecimento — cui praevidere non potest — e a força maior pela irresistibilidadevis cui resist non potest.

Se é verdade que, em 2020, o argumento da imprevisibilidade e irresistibilidade foi validamente acolhido, com o passar do tempo e a ampla cobertura da mídia, a devastadora doença já não era mais desconhecida, tampouco, seus deletérios efeitos econômicos e jurídicos. Com isso, os novos contratos já nasciam sob a influência da nova realidade. Na passagem para 2021, vários veículos de comunicação noticiaram o lockdown decretado pelo governo chinês e a construção, a toque de caixa, de hospitais para o atendimento de infectados com síndrome respiratória aguda grave. Diante de tais circunstâncias, a tese da imprevisibilidade e irresistibilidade foi perdendo força no sentido de autorizar a extinção pura e simples dos contratos. De igual forma, as medidas restritivas de circulação de pessoas adotadas pelos governos estaduais e municipais não impossibilitaram por completo a execução do contrato, mas, em sua grande maioria, o dificultou. A prestação continuou exequível, embora de forma mais custosa ao devedor.

Não restam dúvidas, porém, que o surto do coronavírus trouxe desequilíbrio aos contratos firmados antes de sua existência, especialmente nos de execução prolongada. Trata-se de fato superveniente ensejador de revisão contratual. Como bem elucidado por Flávio Tartuce e Daniel Morim Assumpção Neves [6], em obediência ao princípio da função social dos contratos, o ordenamento jurídico pátrio sempre buscou a manutenção do ponto de equilíbrio do negócio ou a equivalência material contratual, vedando a onerosidade excessiva para uma das partes e o enriquecimento ilícito para a outra, autorizando, nesses casos, a revisão do pacto. Entretanto, não podemos tratar todos os contratos de forma uniforme, desconsiderando as especificidades que a própria legislação fez questão de reforçar.

O CDC disciplina a matéria em seu artigo 6º, V [7], pelo qual é possível constatar que a norma trata da alteração das circunstâncias iniciais do negócio celebrado, não se confundindo com as hipóteses de vício originário da formação do negócio. O ponto preponderante na distinção entre a revisão por fato superveniente no Código Civil e no CDC é a imprevisibilidade.

Sem dúvida, assistir-se-á nos próximos anos a debates sobre a forma mais adequada para a revisão dos contratos que ficaram desequilibrados ou tiveram sua execução dificultada em razão da pandemia do coronavírus. O mais importante é analisar cada situação com equilíbrio e bom senso. Em razão da absoluta extraordinariedade da pandemia, responsável pela paralisação de quase toda atividade econômica mundial, obrigando os chefes de Estado a tomarem medidas de exceção na busca da contenção de sua disseminação, o prudente operador do Direito deverá priorizar princípios jurídicos de caráter funcional e teleológico, no lugar do tecnicismo hermético.

Além da segurança jurídica, tais princípios devem se nortear pela equivalência material e a boa-fé objetiva. Na persecução desses princípios, a regra do pacta sunt servanda é mitigada pelo rebus sic stantibus, possibilitando a revisão contratual em razão de fatos extraordinários supervenientes. São dois institutos disciplinadores da questão. Levando-se em conta a inaplicabilidade da resolução contratual por caso fortuito ou força maior, encontra-se a possibilidade de revisão contratual no artigo 317 do Código Civil (teoria da imprevisão), a qual prescinde que o fato novo seja irresistível, exigindo, porém, que seja imprevisível.

Por sua vez, o CDC, por dar proteção especial a uma das partes em razão de sua vulnerabilidade (consumidor), adotou em seu artigo 6º, V, a teoria da base objetiva, que prescinde que o fato novo seja irresistível ou imprevisível, bastando que seja extraordinário e altere o desejo intrínseco das partes no momento de sua celebração do acordo. O instituto consumerista, de modelo relacional que remonta à common law, é resolvido pelo ordenamento jurídico pátrio pelos princípios da confiança, boa-fé e acessoriedade das relações pré-consumo ou pela teoria da aparência. Desta forma, constitui-se como uma das mais relevantes contribuições na teoria contratual brasileira, criando um modelo que permite a continuidade da execução do acordo, desde que renegociado sob novas promessas, a fim de se evitar abusos que criem prejuízos desproporcionais a uma das partes.

Quanto ao caso concreto, não restam dúvidas de que a manutenção do índice IGP-M previsto originariamente acarretaria em abusividade, tendo em vista o descompasso de direitos e obrigações entre os contratantes. O desequilíbrio contratual contraria sua própria essência, uma vez que as partes esperam contraprestações recíprocas e equânimes na execução do acordo. Encerra-se com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques: "O inciso V do art. 6º do CDC traz esse direito de revisão, de forma mais ampla do que o CC/2002, seja porque não exige a vantagem excessiva do fornecedor (como o art. 478 do CC/2002), seja porque prevê que os contratos bilaterais e não só os unilaterais (reais) como o mútuo previstos no art. 478 do CC/2002, podem ser revisados. As cláusulas abusivas estão desde o início no contrato, mas muitas vezes sua descoberta se dá a posteriori, quando o consumidor deseja dar eficácia a um seu direito, assegurado pelo CDC ou pelo standard de conduta objetiva da boa-fé e o fornecedor tenta fazer valer a cláusula prevista naquele contrato. A solução do sistema geral é geralmente a rescisão, ou melhor, a resilição do contrato, mas o CDC (art. 51, § 1º) privilegia a continuidade do vínculo, daí ter assegurado ao consumidor este direito de revisão" [8].

 


[1] TJ-SP. Ap. nº 1001459-51.2021.8.26.0386. Relator des. César Zalaf, 14ª Câmara de Direito Privado, DJe 16/5/2022.

[2] TJ-SP. Ap. nº 1035706-26.2020.8.26.0196. Relator des. Alexandre Coelho, 8ª Câmara de Direito Privado, DJe 20/3/2022.

[3] SIMÃO, José Fernando. O contrato nos tempos do Covid-19: Esqueçam da força maior e concentrem na base do negócio. São Paulo. CONJUR. 2020.

[4] Art. 393, CC: "O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado".

[5] GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2005.

[6] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito do Consumidor: Direito Material e Processual/ Flávio Tartuce, Daniel Amorim Assumpção Neves – 7ª edição. Rio de Janeiro: ed. Forense; São Paulo: ed. MÉTODO, 2018.

[7] Art. 6º. São direitos básicos do consumidor. V – A modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

[8] MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 6ª edição. São Paulo, ed. Thompson Reuters, 2019, p. 345.

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