Opinião

Qualificação do investimento em educação e princípios da economicidade e eficiência

Autores

  • Sarah Campos

    é procuradora-geral do município de Contagem-MG mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa membro da Rede Internacional de Cátedras Instituições e Personalidades sobre o Estudo da Dívida Pública (RICDP) e da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) presidente do Instituto de Apoio às Atividades de Ensino (Instituto Prunart) Pesquisa e Extensão do Prunart/UFMG coordenadora de Assuntos Jurídicos e Relações de Trabalho no Serviço Público do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE) e membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas de Minas Gerais (ABCMCJ-MG).

  • Pedro Henrique Esteves Fonseca

    é bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) monitor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais pesquisador conselheiro e Fundador da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário da UFMG (Laft/UFMG).

26 de maio de 2022, 9h06

No último dia 11 de abril, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda à Constituição nº 13/2021[1],  anteriormente aprovada no Senado, com redação dada pelo substitutivo da relatora, Senadora Soraya Thronicke. A proposição converteu-se na mais recente Emenda Constitucional nº 119/2022, promulgada em 27 de abril de 2022.

Em síntese, a emenda acrescenta o artigo 119 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para vedar a responsabilização dos gestores que, nos exercícios de 2020 e 2021 e em decorrência da situação de calamidade causada pela pandemia da Covid-19, não tenham adimplido o investimento mínimo em educação encartado no artigo 212 da CRFB/88.

Desde logo, importa esclarecer que a nova norma, nos termos em que promulgada pelo Congresso Nacional, não representa salvo-conduto para os gestores e nem tem o condão de mitigar "o mínimo inegociável à educação" [2].

A redação chancelada prevê a necessidade de complementação, até o exercício financeiro de 2023, da diferença a menor entre o valor aplicado e o valor mínimo exigível computado nos exercícios de 2020 e 2021.

Registra-se justificada apreensão gerada pelo novo dispositivo, sobretudo em um contexto legislativo em que já se ensaiaram esforços pela flexibilização ou desvinculação total dos mínimos constitucionais da educação (e da saúde).

Mas o debate estará melhor orientado sob a égide da situação de elevada excepcionalidade causada pela pandemia da Covid-19  sobretudo em âmbito municipal.

O artigo 212 da CRFB/88 estabelece, para os municípios, a aplicação de 25% da receita de impostos em despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino.

Segundo Nota Técnica da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), que compila a informações registradas no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (SIOPE), pelo menos 358 municípios não atingiram o percentual constitucional em 2020. Em 2021, dos 3.181 que registraram seus dados, 15,2% aplicaram abaixo do mínimo constitucional [3].

Os indicadores demonstram (suprimindo qualquer posicionamento político-ideológico) a existência de óbice na execução orçamentária, causado pela situação de calamidade pandêmica.

Não se está diante de um ataque coordenado contra o direito fundamental à educação em sua dimensão orçamentária, consubstanciado no artigo 212 da CRFB/88. Não se pode, com seriedade, argumentar que centenas de gestores municipais, de maneira deliberada, tenham conspirado para deixar de aplicar a receita mínima em educação, sob pena de tornarem-se inelegíveis.

Trata-se de questão aritmética: a forçosa redução de despesas não foi opção dos gestores, mas realidade que se impôs à norma e à gestão.

Merecem destaque: 1) a redução de gastos de manutenção das estruturas escolares (considerando o encolhimento exponencial de despesas de limpeza, fornecimento de água e energia elétrica, por exemplo); 2) a redução do quadro de pessoal (considerando a demissão de servidores contratados temporariamente); 3) a impossibilidade de concessão de reajuste para os servidores efetivos (considerando a edição da Lei Complementar  Federal nº 173/2020 e o posicionamento restritivo adotado pelo Supremo Tribunal Federal); 4) a redução (ou, em alguns casos, anulação) de gastos com transporte escolar, na emergência do regime de ensino remoto; 5) dentre outras reduções em despesas correntes.

A Confederação Nacional de Municípios (CNM), bastante a propósito, sustentou a necessidade da medida com suporte na dificuldade dos gestores em programar o investimento mínimo, especialmente com o fechamento das escolas na modalidade presencial e a consequente redução dos custos operacionais [4]. Não é demais considerar a fáctica dificuldade no planejamento dos gastos educacionais em período de excepcionalidade pandêmica, com variáveis que vulnerabilizam a previsibilidade na adoção de uma política educacional com gastos sustentáveis em meio às incertezas.

Para mais, é se contemplar na equação que a despesa que mais cresceu recorrentemente nos orçamentos municipais de ensino é correspondente aos dispêndios com merenda escolar. Fundamentada na estratégia adotada pela Lei Federal nº 13.987/2020 que viabilizou a entrega dos produtos de alimentação escolar diretamente aos alunos, fora do ambiente escolar, com recursos Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Sobrevém que as execuções com merenda escolar não integram o cômputo do mínimo constitucional.

Por força das vedações contidas no artigo 71, IV da Lei Federal nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases  LDB), as despesas com "programas suplementares de alimentação, assistência médico-odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social" não compõem o conceito de manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE).

O cenário traçado é de encolhimento substancial de despesas típicas de custeio, com exponencial amplificação de despesas assistenciais que, ainda que relacionadas à atividade escolar, não se incorporam ao mínimo constitucional.

Pela via das receitas, regra geral, não se observou perda expressiva de arrecadação tributária ou de receitas transferidas. Pelo contrário, em boa parte dos munícipios [5], a arrecadação se manteve estável ou teve variação real positiva.

No caso de Minas Gerais, como agravante, há que se considerar o acordo feito entre o Estado e os municípios para ressarcimento de parcelas vencidas do Fundeb retidas nos exercícios anteriores  que terminou por injetar ainda mais receita vinculada à manutenção e desenvolvimento de ensino nos caixas municipais, no mesmo período de supressão da demanda de despesa.

Seria possível argumentar que os gestores, cônscios da situação de pandemia, poderiam remanejar recursos para outras expensas de M.D.E. catalogadas no artigo 70 da LDB, como a aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino.

A solução parece ignorar o fato de que os referidos investimentos afiguram maior complexidade que as despesas de custeio previsíveis. Em regra, configuram despesas de capital que exigem programação orçamentária e submissão a ritos específicos de contratação e execução.

Não é demais ressaltar as dificuldades inerentes à realização e finalização, com êxito, de processos licitatórios para aquisição de bens e serviços no âmbito da Administração Pública [6], especialmente no contexto de recessão econômica provocada pela pandemia. 

O preceito constitucional estampado no piso educacional do artigo 212 da CRFB/88 não é compatível com qualquer exegese que adote o investimento como um fim em si mesmo  dissociado dos princípios da economicidade e eficiência e sem o viés qualitativo.

Nas saudosas lições do Professor Ricardo Lobo Torres (2008, p. 279)  [7] o conceito de economicidade, encartado como princípio do controle de contas no artigo 70 da CRFB/88, corresponde ao ideal de justiça no âmbito orçamentário.  Traduz o referido autor que "significa controle da eficiência na gestão financeira e na execução orçamentária, consubstanciada na minimização de custos e gastos públicos e na maximização da receita e da arrecadação".

Quando se examina o princípio da eficiência previsto no artigo 37 da CRFB/88, melhor se ilumina o defendido pelo professor Regis Fernandes de Oliveira (2014) [8], para quem não se trata de princípio de direito administrativo, mas mesmo de direito financeiro. O professor leciona que o administrador, na escolha do gasto, deve fazer a opção pelo interesse que objetiva tutelar, dentre os valores definidos pelo constituinte  trata-se de gastar com eficiência, em seu aspecto qualitativo e não só de gastar determinado montante.

É dizer: ainda que a leitura mais consentânea do artigo 212 da CRFB/88 exigisse a execução emergencial de investimentos em obras públicas, com a finalidade exclusiva de cumprimento do piso educacional, há um agravante municipal: vultuosa parte das prefeitas e prefeitos que iniciaram seus mandatos no exercício de 2021 trabalham com o planejamento orçamentário de gestões passadas  com margem reduzida para repactuação.

Por conseguinte, o punctum saliens da solução adotada pela EC nº 119/2022 deve partir do questionamento: para preservação do direito à educação, é preferível admitir a distorção (causada pela situação de pandemia) que incentiva o gasto educacional dissociado de planejamento, eficiência e economicidade? Ou melhor se conforma o preceito constitucional ao autorizar a repactuação e reprogramação das despesas  com a possibilidade de compensar os déficits de 2020 e 2021 até o exercício de 2023?

É certo que a EC representou solução emergencial para um momento de elevada excepcionalidade e está longe de ser perfeita. Dentre os seus efeitos, é necessário verificar as consequências do descumprimento em 2020 não ser compensado até 2023 (em mandatos diferentes). Isto é: caso o gestor de 2023 não compense gastos a menor "herdado" de gestor anterior, quem deverá ser responsabilizado?

Para além das soluções emergenciais, discussões em torno da contabilização do mínimo constitucional de modo quadrienal (coincidente com o mandato do gestor) poderão e deverão ser feitas  novamente em atenção à economicidade, eficiência e programação orçamentária.

Pela via infraconstitucional, a reforma do rol de manutenção e desenvolvimento do ensino dos artigo 70 e 71 da LDB [9], seja para incluir novos gastos no cômputo, seja para gerar segurança jurídica em torno de programas inovadores como vale-compras destinados ao material didático também seria bem-vinda.

Em boa hora, a reforma da legislação também poderia servir à uniformização do controle de contas, reduzindo a margem de interpretação e orientações divergentes dos Tribunais  especialmente em relação a se contabilizar, no piso, também as despesas empenhadas e não apenas as despesas pagas.

O fato é que as discussões em torno da qualificação do mínimo constitucional, isto é: da superação do "carimbo" quantitativo em torno de percentual de receita para avaliar a qualidade dos gastos deve ser pautada de modo a fortalecer o preceito fundamental adotado pelo constituinte, nunca de modo a mitigá-lo.

Segundo dados recentes da Frente Nacional de Prefeitos [10], pelo menos R$ 7 bilhões deixaram de ser aplicados em 2021 com despesas de manutenção e desenvolvimento de ensino. Assim, acrescidos ao R$ 1bi remanescente em 2020, a EC devolverá à Educação, pelo menos, R$8bi até 2023.

Não se trata de retirar recursos da educação, mas de preservá-los. Sem a EC, não se pune apenas os gestores, mas os cidadãos e seu direito fundamental ao ensino. Não se pode admitir, sob pena de esvaziar o debate, que as tentativas de aprimorar o gasto mínimo em educação sejam repelidas como ataques a direitos fundamentais.

O "gasto apressado" e orientado apenas ao implemento quantitativo de percentual com a finalidade de evitar sanções não preserva o direito fundamental à educação, mas o desqualifica.


[1] BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição nº 13, de 2021. Acrescenta o artigo 115 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para determinar que os Estados o Distrito Federal e os municípios, bem como seus agentes, não poderão ser responsabilizados pelo descumprimento, no exercício financeiro de 2020, do disposto no caput do artigo 212 da Constituição Federal. Brasília, DF: Senado Federal, 2021. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/148543

[2] COMPARATO, Fábio; TORRES, Heleno Taveira; PINTO, Elida Graziane; SARLET, Ingo Wolgang. Financiamento dos direitos à saúde e à educação: mínimos inegociáveis. In: Consultor Jurídico. 27 de julho de 2016. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-jul27/financiamento-direitos-saude-educacao-minimos-inegociaveis.

[3] FRENTE NACIONAL DOS PREFEITOS. NOTA TÉCNICA — PEC 13/2021. 07 de abril de 2022. Disponível em: https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/987-nota-tecnica-pec-13-2021

[4] CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. CNM defende aprovação da PEC sobre o percentual mínimo das receitas para a educação em audiência no Senado. 24 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.cnm.org.br/comunicacao/noticias/cnm-defende-aprovacao-da-pec-sobre-o-percentual-minimo-das-receitas-para-a-educacao-em-audiencia-no-senado;

[5] VALOR ECONÔMICO. Gasto com educação dos municípios fica 7,2 p.p. abaixo do mínimo no primeiro semestre. 12 de agosto de 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/08/12/gasto-com-educao-dos-municpios-fica-72-pp-abaixo-do-mnimo-no-primeiro-semestre.ghtml

[6] COSTA, Caio César de Medeiros; TERRA, Antônio Carlos Paim. Compras públicas: para além da economicidade. Brasília: Enap, 2019. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/4277/1/1_Livro_Compras%20p%C3%BAblicas%20para%20al%C3%A9m%20da%20economicidade.pdf

[7]   TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, volume V: O Orçamento na Constituição. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[8]  OLIVEIRA, Régis Fernandes. Curso de Direito Financeiro. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

[9] É interessante salientar a existência do PLS  573/2015, que alteraria os artigos 70 e 71 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para considerar como de manutenção e desenvolvimento do ensino as despesas com alimentação e uniformes escolares.

[10] FRENTE NACIONAL DOS PREFEITOS. NOTA TÉCNICA  PEC 13/2021. 07 de abril de 2022. Disponível em: https://multimidia.fnp.org.br/biblioteca/documentos/item/987-nota-tecnica-pec-13-2021 .   

Autores

  • Brave

    é procuradora-geral do município de Contagem-MG, mestre em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, membro da Rede Internacional de Cátedras, Instituições e Personalidades sobre o Estudo da Dívida Pública (RICDP) e da Comissão de Direito Administrativo do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), presidente do Instituto de Apoio às Atividades de Ensino (Instituto Prunart), Pesquisa e Extensão do Prunart/UFMG, coordenadora de Assuntos Jurídicos e Relações de Trabalho no Serviço Público do Movimento Gestão Pública Eficiente (MGPE) e membro da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas de Minas Gerais (ABCMCJ-MG).

  • Brave

    é bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), monitor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador, conselheiro e Fundador da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário da UFMG (Laft/UFMG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!