Processo Novo

"Causa decidida", recurso especial e IRDR

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

25 de maio de 2022, 8h03

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão expressiva ao julgar recurso especial interposto contra acórdão oriundo de incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR). O tribunal superior julgou o recurso em 18/5/2022, tendo o caso sido noticiado no Informativo de jurisprudência nº 737 da corte, publicado em 23/5/2022.

Spacca
Consta o seguinte destaque, do Informativo: "Não cabe recurso especial contra acórdão proferido pelo tribunal de origem que fixa tese jurídica em abstrato em julgamento do IRDR, por ausência do requisito constitucional de cabimento de 'causa decidida', mas apenas naquele que aplique a tese fixada, que resolve a lide, desde que observados os demais requisitos constitucionais do art. 105, III, da Constituição Federal e dos dispositivos do Código de Processo Civil que regem o tema".

Caso interessantíssimo para os estudiosos dos recursos dirigidos aos tribunais superiores, mas também de elevado alcance prático. Diz respeito à função desses tribunais, aos fundamentos e hipóteses de cabimento dos recursos extraordinário e especial, bem como sobre a definição da natureza do instrumento já corriqueiramente chamado de IRDR, o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto nos artigos 976 e seguintes do Código de Processo Civil.

Em primeiro lugar, voltemos nossa atenção ao conceito de "causa decidida" e sua relação com o cabimento dos recursos extraordinário e especial [1]. A expressão de que ora se cuida consta das disposições constitucionais relativas ao recurso extraordinário e ao recurso especial, que se referem à competência dos tribunais superiores para julgar "causas decididas em única ou última instância", "quando a decisão recorrida" se encartar numa das alíneas dos artigos 102, inciso III, e 105, inciso III, da Constituição.

Quanto ao sentido do vocábulo "causa", a doutrina tem entendido, com base em lições que vêm desde Castro Nunes, passando por José Afonso da Silva e chegando a Rodolfo de Camargo Mancuso, que a Constituição Federal adotou o termo em sentido amplo, tanto para abordar a decisão que julgue o mérito da causa quanto as decisões ditas terminativas, ou seja, que determinam a extinção do processo sem resolução do mérito, e quanto ainda, qualquer questão decidida no processo, mesmo que se trate de decisão oriunda de procedimentos de jurisdição voluntária [2]. Afirma ainda Mancuso que, como não se liga à natureza dos recursos extraordinário e especial a concepção de "justiça" da decisão recorrida (isso é, saber se a controvérsia sobre a ocorrência dos fatos foi adequadamente resolvida), não faria sentido conceberem-se tais recursos como circunscritos às decisões que versassem sobre o mérito [3].

A expressão "causa decidida", assim, é bastante ampla, suficientemente abrangente para conter em si as decisões que julgam IRDR, ainda que estas se limitem a fixar a tese, sem julgar qualquer caso concreto.

Mas outras razões, segundo pensamos, conduzem também à conclusão de que cabe recurso especial, nesse caso.

Ao julgarem os recursos extraordinário e especial, os tribunais superiores desempenham, preponderantemente, função nomofilática (com a qual se relacionam as funções paradigmática e uniformizadora) e, sendo o caso, também função dikelógica (isso é, aplicação da conclusão quanto ao sentido da norma jurídica ao caso concreto).

A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, aqui analisada, é no sentido de que somente se admite o recurso especial nos casos em que, ao julgar o IRDR, o tribunal local aplique a tese fixada a um caso concreto. Consta, do Informativo mencionado: "[…] deve ser ponderado se a questão jurídica decidida deve, necessariamente, ser efetivamente proferida pelo Tribunal de origem em um determinado processo em concreto, uma lide propriamente dita, ou bastaria qualquer pronunciamento judicial para o cumprimento do requisito, ainda que proferido em tese ou abstrato". Assim, parte-se do pressuposto de que, para se fixar a tese jurídica, se abstrairia dos fatos.

A nosso ver, no entanto, assim como para realizar a função nomofilática os tribunais superiores não podem se desprender dos fatos, de igual modo se deve conduzir o tribunal que julga o IRDR.

Discute-se, na doutrina, acerca de se saber se o IRDR se aproximaria daquilo que se convencionou chamar de "causa-piloto" ou, diversamente, do "procedimento-modelo". Alguns afirmam que, enquanto no julgamento de "causa-piloto" haveria uma unidade de cognição — pois o órgão fixa a tese e julga o caso —, no "procedimento-modelo" ocorreria uma cisão cognitiva, já que o órgão se ocuparia apenas de fixar a tese, sem julgar o caso concreto [4].

Semelhante paralelo pode ser feito em relação ao recurso especial repetitivo. Nesse caso, o Superior Tribunal de Justiça fixa a tese, antes de aplicá-la ao caso. Há, por assim dizer, uma separação, em dois momentos, das atividades desempenhadas pelo tribunal, sendo que a fixação da tese jurídica é o que há de mais relevante, nesse contexto.

Mas essa separação entre etapas do julgamento do mérito do recurso especial (que se opera também quanto ao recurso extraordinário, mutatis mutandis) não se manifesta apenas se a esse recurso se aplicar o regime dos casos repetitivos. No caso dos tribunais superiores, a Constituição impõe esse modo de proceder no julgamento de recurso extraordinário ou de recurso especial mesmo que não se aplique ao caso o procedimento do julgamento de casos repetitivos. Com efeito, os artigos 102, inciso III, e 105, inciso III, da Constituição estabelecem que compete ao tribunal superior julgar as causas decididas quando a decisão recorrida contrariar a norma constitucional ou federal infraconstitucional. A expressão "quando", usada no dispositivo constitucional, opera como conjunção subordinativa condicional. Desse modo, se a decisão recorrida contrariar a norma constitucional ou federal, o tribunal superior julgará a causa. Trata-se de orientação aplicável assim ao recurso especial, como ao extraordinário [5]. Se isso vale para os recursos especiais em geral, é certo que, aplicando-se o regime dos casos repetitivos, a separação entre os fenômenos aparece bastante nítida, pois o Superior Tribunal de Justiça haverá de enunciar, antes, a tese jurídica firmada, para, então, e se for o caso, aplicá-la ao caso.

Mesmo nessas hipóteses, ainda que se afirme que o tribunal superior não julga o caso ao fixar a tese — o que poderia permitir afirmar haver aproximação com o "procedimento-modelo" —, também aqui o órgão jurisdicional haverá de compreender o fenômeno jurídico em seu todo, isso é, a partir dos fatos jurídicos.

Com isso quer-se dizer que, mesmo quando o tribunal local apenas fixa a tese ao julga o IRDR, sem aplicá-la a qualquer caso concreto, inarredavelmente o faz a partir de fatos jurídicos.

Como vimos sustentando [6], rigorosamente, nenhuma questão pode ser exclusiva ou puramente de direito. Afinal, pensa-se na construção de normas jurídicas para resolver problemas, e problemas que ocorrem no plano dos fatos. É, até mesmo, difícil pensar-se em norma jurídica sem se recorrer a um fato, ainda que hipotético. O que se quer dizer, ao se afirmar que se decide questão que seja somente de direito, é que a controvérsia diz respeito não ao modo como ocorreram os fatos, mas apenas sobre como deve ser considerada a disposição constitucional ou legal ou o princípio jurídico que servirá à solução da controvérsia.

Disso se extraem duas conclusões importantes:

De um lado, não se pode dizer que, caso o fenômeno seja considerado variação do "procedimento-modelo", haveria no julgamento do IRDR cisão cognitiva e distanciamento dos fatos jurídicos dos quais o problema emergiu. A tese jurídica deve ser firmada em atenção aos problemas sociais dos quais surge a questão. Não existe questão de direito "pura", como se quiséssemos fazer uma assepsia em relação a fatos.

De outro lado, também não se pode dizer que, caso se considere que o mecanismo tenha natureza similar ao do julgamento de "causa-piloto", não haveria tal cisão cognitiva, pois também aqui a fixação da tese jurídica será imprescindível para que ela sirva de padrão decisório não apenas em relação aos processos que se encontrem sobrestados, mas, também, em relação a casos futuros.

Essas conclusões, a nosso ver, devem se aplicar tanto ao caso de recursos repetitivos, quanto ao de julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas [7].

Por tais razões, a decisão que julga IRDR, ainda que se limite a fixar tese que será aplicada a casos, insere-se na definição de "causa decidida", razão pela qual, no caso, o recurso especial deve ser considerado admissível. Embora essa não tenha sido a orientação manifestada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no caso até aqui mencionado, é interessante notar que ela conta com a simpatia de integrantes do tribunal, manifestada em outras decisões [8].

Embora não digam respeito, propriamente, à definição de "causa decidida", dois pontos merecem reflexão, e poderiam conduzir à mudança de orientação hoje prevalecente no Superior Tribunal de Justiça:

A tese firmada no julgamento do IRDR deve ser aplicada na área de jurisdição do tribunal local (artigo 985 do Código de Processo Civil). Caso não se admita recurso especial contra a decisão que tenha se limitado a fixar a tese, se acabará permitindo a manutenção ou, até, a propagação de entendimentos diversos dos adotados pela jurisprudência de outros tribunais e do próprio Superior Tribunal de Justiça. Caso esse tribunal não exerça a sua função uniformizadora, se permitirá que o mesmo texto de lei federal tenha um sentido normativo diferente, em determinado Estado ou região.

Tenha-se presente, ainda, que a própria jurisprudência dos tribunais superiores foi se firmando, pouco a pouco, no sentido de que seria possível o julgamento da tese em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida [9] ou em recurso especial repetitivo, a depender do obstáculo que poderia conduzir ao não conhecimento do recurso. Essa orientação conduziu, por exemplo, a que o Código de Processo Civil de 2015 viesse a prever regra no sentido de que a desistência do recurso não impediria a fixação da tese pelo tribunal superior (artigo 998, parágrafo único, do Código) [10].

A consolidar-se a orientação de que o recurso especial não é admissível contra decisão de tribunal local que se limite a fixar a tese no julgamento de IRDR, deixará o Superior Tribunal de Justiça de desempenhar a relevantíssima função nomofilática, para cuja efetivação foi concebido.

 


[1] Para um exame mais aprofundado, cf. o que escrevemos em Prequestionamento, Repercussão Geral da Questão Constitucional, Relevância da Questão Federal (7ª ed., 2017). Analisamos o assunto também nos livros Constituição Federal Comentada (7ª ed., 2022) e Código de Processo Civil Comentado (8ª ed., 2022). Todas as obras referidas foram publicadas pela Editora Revista dos Tribunais (mais informações aqui: https://linktr.ee/profmedina).

[2] Assim, Castro Nunes: "O texto constitucional emprega a palavra causa ('causas decididas pelas justiças locais') no seu sentido mais amplo e compreensivo. É todo procedimento em que se decida do direito da parte. Não é preciso que seja, formalmente, uma ação. Qualquer processo, seja de que natureza for, se nele for proferida decisão de que resulte comprometida uma lei federal, é uma causa para os efeitos do recurso extraordinário. Aliás, é essa acepção que corresponde à palavra causas na terminologia forense – 'processos judiciários, seja qual for a natureza, ou fim'" (Teoria e prática do Poder Judiciário, ed. Forense, 1943, p. 328). No mesmo sentido, José Afonso da Silva: "Para o cabimento do recurso extraordinário, pois, não há cogitar se se trata de processo de jurisdição voluntária ou de jurisdição contenciosa. Se o processo é cautelar, principal ou incidental. Basta que a decisão, proferida em qualquer deles, encerre uma questão federal e seja irrecorrível no mesmo sistema judiciário. Só isto é pressuposto dele. A natureza, o tipo de processo não constitui seu pressuposto" (Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro, ed. Revista dos Tribunais, 1963, p. 293).

[3] Recurso extraordinário e recurso especial, 8ª ed., ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 80.

[4] Cf. o que escrevemos nas obras acima mencionadas. Cf. também, em termos mais sintéticos, o que observamos em: Entre julgar casos e teses: Transformações recentes dos papéis desempenhados pelos Tribunais no direito brasileiro, Revista dos Tribunais, v. 1000, fev./2019, p. 237-249. As principais conclusões a que chegamos são transpostas para o presente texto.

[5] Versando a respeito, escreveu o ministro Teori Zavascki: "Questões terminológicas à parte, o certo é que, admitida a sua natureza revisional, o julgamento do recurso do extraordinário (como também, mutatis mutandis, o do especial, no STJ) comporta, a rigor, três etapas sucessivas, cada uma delas subordinada à superação positiva da que lhe antecede: (a) a do juízo de admissibilidade, semelhante à dos recursos ordinários; (b) a do juízo sobre a alegação de ofensa a direito constitucional (que na terminologia da Súmula 456/STF compunha, conforme já registrado, o juízo de conhecimento); e, finalmente, se for o caso, (c) a da complementação do julgamento da causa" (voto proferido no julgamento do RE 346.736 AgR-ED, 2ª T., j. 4/6/2013, de que foi Relator).

[6] Cf. o que observamos nas obras acima referidas.

[7] Chegamos a essas conclusões, aqui bastante resumidas, no artigo antes mencionado.

[8] Cf. votos vencidos proferidos no seguinte julgamento do Superior Tribunal de Justiça: REsp nº 1.631.846/DF, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relatora p/ o acórdão ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 22/11/2019. O tema também foi examinado pelo Tribunal nos seguintes julgados: ProAfR no REsp nº 1.818.564/DF, relator ministro Moura Ribeiro, 2ª Seção, DJe de 4/10/2019; ProAfR no REsp nº 1.881.272/RS, relator ministro Sérgio Kukina, relator p/ o acórdão ministro Gurgel de Faria, 1ª Seção, DJe de 26/11/2021.

[9] A respeito, manifestamo-nos em legal opinion sobre caso bem peculiar (disponível aqui).

[10] Registro, aqui, meu agradecimento ao professor Rafael de Oliveira Guimarães, que fez essas importantes sugestões.

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    é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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