Direto do Carf

Carf na construção da garantia contra mudanças de critério jurídico

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

25 de maio de 2022, 8h05

A pandemia, felizmente, está cada vez mais distante de nós. Contudo, alguns de seus efeitos parecem ter vindo para ficar, como a realidade dos julgamentos virtuais no âmbito do Carf. Não negamos a saudade da convivência que as sessões de julgamento presenciais em Brasília nos proporcionavam. Porém, o fácil acesso online às discussões de todos os colegiados do Carf é uma ferramenta democrática preciosa para os que lidam com o processo administrativo fiscal, também importando nosso deleite.

Spacca
Assim pudemos desfrutar dos debates dos membros da 1ª Turma da CSRF no julgamento do Acórdão nº 9101-005.982, de 11 de fevereiro de 2022.

A decisão foi proclamada por unanimidade dos julgadores, no mesmo sentido que vem caminhando a jurisprudência tranquila da 1ª Turma da CSRF sobre o tema ali enfrentado, qual seja, a impossibilidade de alteração da sistemática utilizada para o lançamento de ofício do IRPJ, do lucro real para o lucro arbitrado, ao longo do processo administrativo (cf. Acórdãos 9101-005.429, de 8 de abril de 2021; nº 9101-004.213, de 26 de junho de 2019; nº 9101-003.157, de 5 de outubro de 2017).

Entretanto, a pasmaceira sobre o tema é apenas aparente.

O recente Acórdão nº 9101-005.982 pôs luz sobre pontos fundamentais a respeito dos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico contra mudanças de entendimento por parte da autoridade administrativa em matéria tributária. Tais pontos, longe de tranquilos, continuam implicando discussões sobre como devem atuar os julgadores ao se depararem com tais mudanças, sua relação com as hipóteses de nulidade que vigem no PAF e o direito ao contraditório e ampla defesa dos contribuintes no contencioso administrativo.

As dificuldades se instauram pelas razões apresentadas pela conselheira Edeli Pereira Bessa durante os debates sobre o processo que deu origem ao Acórdão nº 9101-005.982, as quais podem ser resumidas na seguinte pergunta: a nulidade nesses casos está no lançamento tributário (lançamento de ofício feito equivocadamente com base no lucro real) ou na decisão de primeira instância proferida pela DRJ (mantendo os lançamentos com base no lucro arbitrado)?

É que quando o assunto é "alteração de critério jurídico", imediatamente somos levados ao artigo 146 do Código Tributário Nacional [1], cuja disciplina trata da impossibilidade de que, no curso do processo administrativo fiscal, a autoridade julgadora inove os motivos que foram originalmente elencados pela autoridade lançadora para fundamentar o auto de infração. Trata-se, efetivamente, de limite imposto pela legislação tributária em favor dos contribuintes, proibindo que novas razões sejam apresentadas para revisar o lançamento de ofício durante o contencioso. Dessarte, nos casos descritos acima, de acordo com o artigo 146 do CTN, deve-se declarar nula da decisão da DRJ que busca manter uma cobrança de IRPJ, argumentando que embora o lançamento pelo lucro real seja inapropriado, o imposto continua sendo devido pela aplicação do arbitramento de sua base.

A lógica por trás dessa garantia que os contribuintes detêm é, na realidade, a conhecida pedra fundamental que baseia o processo administrativo fiscal federal (minuciosamente regulado pelo Decreto 70.235/72, e complementado pela Lei n. 9.784/96, pelo Regimento Interno do Carf e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil): o direito ao contraditório e a ampla defesa.

Afinal, sendo o contribuinte notificado de lançamento tributário que afirma ser devida determinado tributo por razões X, é justamente contra essas razões X que o sujeito passivo se defenderá por meio de impugnação. Caso em decisão de primeira instância pudesse a autoridade julgadora, ao apreciar a inconformidade do contribuinte, manter o auto de infração sob fundamento de que, embora o argumento X seja equivocado, também deveria ser o cobrado o tributo pelas razões Y e Z, o sujeito passivo teria seu direito ao contraditório e à ampla defesa lesionado. Isto porque, alfim, inexistiria o duplo grau de jurisdição administrativa. Ficaria disponível ao contribuinte tão somente o recurso voluntário ao Carf para se defender dos argumentos Y e Z. O Carf atuaria, assim, como instância única, o que vai na contramão de toda a disciplina do processo administrativo fiscal, uma vez que o artigo 5º, inciso LV da Constituição confere aos litigantes, em processo administrativo, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes [2]. Ademais, haveria notória ofensa ao contraditório e a ampla defesa, já que nessa hipótese estar-se-ia diante de típica "decisão surpresa", já há muito tempo criticada pela doutrina e agora expressamente vedada pela legislação processual (artigo 10 do CPC [3]).

Daí é que percebemos a íntima relação do artigo 146 do CTN com o artigo 59, II do Decreto nº 70.235/72, quando este último determina que são nulos os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa. A bem dizer, o que faz o referido artigo 59 é deixar clara a sanção prevista pelo ordenamento jurídico (nulidade) contra decisões administrativas viciadas, por ferirem o direito ao contraditório e à ampla defesa dos administrados, sendo que uma das possíveis causas desse ilícito é aquela descrita no artigo 146 do CTN: a mudança de critério jurídico no bojo do PAF.

Para que fique claro: a nulidade é da decisão que inova os fundamentos do auto de infração, e não do lançamento em si.

Todavia, nos casos aqui tomados como exemplo, além da nulidade da decisão proferida no âmbito do PAF que culminava na alteração de critério jurídico, uma segunda nulidade existe, a do próprio lançamento tributário.

E aí que entra o passo a mais, dado pelo Acórdão 9101-005.429. Explicamos.

Essa decisão, como as demais citadas alhures, menciona o artigo 146 do CTN, bem como os conceitos de erro de fato e erro de direito. Assim, na esteira da jurisprudência do Carf e nos limites que interessavam à solução daquele caso concreto, o precedente não traça uma precisa distinção entre a nulidade da decisão e a nulidade do lançamento tributário. Entretanto, o julgado bem coloca que as nulidades verificadas no âmbito do PAF não se resumem ao artigo 59 do Decreto 70.235/72 e, nesse sentido, lembra que ofensas ao artigo 142 do CTN igualmente maculam a validade do lançamento tributário. Nos dizeres do relator Caio Cesar Nader Quintella: "considerando esse comando jurídico, uma vez que na identificação da matéria tributável e no cálculo do montante devido a Autoridade Fiscal adotou um determinado regime/modalidade de tributação da renda do contribuinte (e suas demais consequências legais), este não pode ser corrigido ou cambiado". Assim fazendo, incrementa os demais precedentes [4], que mencionam a necessidade de ser efetuado lançamento complementar em qualquer hipótese de agravamento da autuação fiscal, sendo que o artigo 41 do Decreto nº 7.574/2011, regulando o artigo 18, §3º do Decreto 7.235/72, fixou as restritas hipóteses em que é possível o ajuste do lançamento.

No mais profundo ímpeto de contribuir com o debate, racionalizando questões que geram tropeços, aqui apresentamos o próximo passo seguro a respeito do tema.

Para que ele seja dado, já foi traçada a premissa essencial: a nulidade da decisão administrativa, por alteração do critério jurídico que fora utilizado no lançamento tributário, regida pelos artigos 146 do CTN e 59, II do Decreto 70.235/72, não se confunde com a nulidade do lançamento tributário. Por isso é que podemos encontrar diversos precedentes do CARF anulando a decisão da DRJ com base nesses dispositivos, e determinando que novo julgamento, adstrito aos elementos de fato e de direito postos na motivação do ato administrativo de lançamento (critério jurídico), seja proferido pelo colegiado a quo.

Sedimentado esse ponto, pergunta-se: onde então podemos encontrar o regime de controle do lançamento tributário, no que concerne aos seus motivos? Resume-se ao princípio da legalidade e ao disposto no artigo 142 do CTN? É possível precisar o que é normalmente tratado pela doutrina como princípio da inalterabilidade prejudicial do lançamento [5]?

Como diz o ditado, as vezes é necessário dar um passo atrás para dar dois passos para frente. Assim, precisamos retomar a natureza do processo administrativo fiscal, enquanto via contenciosa cuja particularidade é justamente se dar no seio da Administração Pública, a qual atipicamente atuará para a solução de litígios entre fisco e contribuinte, assim como promoverá o controle interno dos atos emitidos pelas autoridades fiscais federais (cf. artigo 53 da Lei nº 9.784/96). Nesse contexto, o traço diferencial do contencioso administrativo, em comparação com o judicial, é que sempre terá como base um ato administrativo (o lançamento tributário, em casos de auto de infração; ou o despacho decisório, em casos de pedido de ressarcimento/restituição), com seus conhecidos cinco elementos: competência, forma, objeto, motivo e finalidade. Necessário, então, socorrermo-nos do Direito Administrativo para analisar o regime jurídico de controle da legitimidade desses elementos.

Para o que nos interessa no presente artigo, importa por foco no motivo, que é fonte primordial da possibilidade de controle do ato administrativo, seja por órgão externo (Poder Judiciário, Tribunal de Contas etc) ou interno (autotutela da Administração Pública), sempre tendo em vista o interesse público, o bem comum que guia a atuação administrativa.

A base legislativa para a elaboração da teoria dos vícios do ato administrativo encontra-se na Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/65), cujo artigo 2º, parágrafo único, alínea "d", prescreve que são nulos os atos lesivos ao patrimônio público no caso de inexistência de motivos, sendo que "a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido".

Do dispositivo transcrito é possível extrair que o motivo restará maculado por vício quando for inexistente a matéria de fato, ou seja, quando não encontrar uma respectiva correspondência no mundo social. Afinal, a hipótese de incidência das normas jurídicas é pincelada dos acontecimentos do mundo real/fenomênico e, por isso, é necessário que haja um acontecimento fático para irradiar os efeitos jurídicos nela prescritos.

Outrossim, segundo o citado dispositivo legal, a inexistência do motivo pode ocorrer não só relativamente à matéria fática, mas também no que tange ao motivo jurídico, nos casos de inexistência da matéria de direito indicada na motivação, como por exemplo a anterior revogação da lei elencada como embasamento do ato.

O artigo 2º, p.u., "d", ainda coloca que, além da inexistência, pode ser verificada a situação de falsidade/inadequação do motivo, hipótese na qual o fato é existente, mas não se enquadra na prescrição legal posta no ato administrativo.

Disso conclui-se que são três as modalidades de vício relacionados ao motivo que podem acometer ato administrativo: 1) a inexistência de norma jurídica que lastreie a sua prática; 2) a inexistência de fato que ensejaria a sua emanação; e 3) inadequação entre motivos de fato e de direito, "o que ocorre quando os fatos verificados não se subsomem na hipótese normativa" [6].

Observando essa preciosa legislação, até agora visivelmente subutilizada, é possível resolver com muito mais tranquilidade problemas cotidianos do contencioso no Carf. No exemplo aqui abordado, tendo a autoridade lançadora emitido ato administrativo afirmando ser o caso de cobrança de IRPJ com base no lucro real, quando na realidade, em razão da escrita contábil do contribuinte ser imprestável, dever-se-ia apurar o quantum devido com base no lucro arbitrado, existe uma inadequação entre os elementos de fato e o direito que rege a matéria (artigo 47 da Lei no. 8.981/95). Assim, com base no artigo 2º, p.u., "d" da Lei nº 4.717/65, imperioso que se reconheça o vício quanto ao motivo do ato administrativo de lançamento, decretando sua nulidade. Não é necessário o apelo ao artigo 146 do CTN, que apesar de trazer norma importantíssima para garantir o contraditório e a ampla defesa dos contribuintes no âmbito da revisão do lançamento de ofício, trata de questão diversa. Tampouco se faz necessário utilizar a figura do erro de direito, que apesar de amplamente adotada pela doutrina e pela jurisprudência (Recurso Especial n. 1.130.545/RJ) [7], (1) não encontra respaldo no texto do Código Tributário Nacional; (2) faz uso do conceito de "erro", o qual é umbilicalmente ligado ao direito privado, onde a "vontade" faz diferença na análise dos atos jurídicos, realidade essa inexistente no direito público [8]; (3) incorre na dificuldade da separação efetiva entre erro de fato e erro de direito, quando se constata que ambos desdobram-se sobre a interpretação de um mesmo fato [9].

Parece-nos, então, essencial que passemos a dar maior valor à disciplina de Direito Administrativo que, sem sombra de dúvida, muito contribui para reger o contencioso fiscal no âmbito do Carf. Isto porque temos uma realidade jurídico-tributária empobrecida de regras para cuidar, com clareza, dos problemas experimentados dentro e fora do processo administrativo fiscal, como o destacado no presente artigo. A nossa proposta de integração das disposições trazidas pela legislação tributária com o regime de controle e revisão dos atos administrativos, criando um leque de limites à retroatividade de novos entendimentos, prejudiciais aos contribuintes, o qual se denomina garantia contra mudança de critério jurídico pela Administração Tributária, encontra-se minuciosamente abordada em livro recém-publicado pelo IBDT [10], fruto da tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em março de 2022.

Esperamos, com esses novos passos, contribuir para a consolidação da disciplina do processo administrativo fiscal, fixando direitos dos contribuintes e da Administração Tributária, tornando segura e aprazível nossa caminhada diária pelos meandros do Carf.

Por fim, os colunistas desse espaço não poderiam deixar de parabenizar o mais novo presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Carlos Henrique de Oliveira, auditor fiscal da RFB, professor e pesquisador. Desejamos ao novo presidente passos largos numa certa caminhada de sucesso, sempre em defesa do permanente aprimoramento desse quase centenário tribunal que nos une.

 


[2] MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). 5ª ed. São Paulo: Dialética, 2010.

[3] Artigo 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

[4] Acórdãos 9101-005.429; nº 9101-004.213; e nº 9101-003.157.

[5] MICHELS, Gilson Wessler. PAF — Processo administrativo fiscal. Litigância tributária no contencioso administrativo. São Paulo: Cenofisco, 2018. p. 37.

[6] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Motivo e motivação do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. p. 150-151.

[7] Proferido pela sistemática dos recursos repetitivos.

[8] Não por outra razão, não se vê o apelo às citadas figuras (erro de fato e erro de direito) nos estudos de Direito Administrativo. (ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 539).

[9] SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 534.

Autores

  • Brave

    é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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