Opinião

Quantificação de dano em acordos de não persecução civil

Autor

  • João Marcos de Araújo Braga Júnior

    é auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia assessor de conselheiro do TCERO doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "Da prescrição no processo de controle externo" publicado em 2021 pela editora Dialética.

25 de maio de 2022, 11h02

No dia 6 de maio, o auditor federal de controle externo Odilon Cavallari de Oliveira, renomado palestrante e autor de obras na seara do controle externo, publicou um artigo aqui na ConJur [1] acerca do parágrafo 3º do artigo 17-B da Lei nº 8.429/92, recentemente incluído pela Lei nº 14.230/21: "§3º Para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 dias".

O autor do artigo argumenta pela inconstitucionalidade do dispositivo, ao menos em uma interpretação literal, por instituir uma obrigatoriedade não apenas da oitiva, mas da própria manifestação do Tribunal de Contas competente, quanto ao valor do dano a ser ressarcido em acordos de não persecução civil propostos pelo Ministério Público a investigados ou demandados pela prática de atos de improbidade administrativa.

Sob sua óptica, essa interpretação retira do órgão de controle externo o status de partícipe desses acordos, caracterizado pela livre disposição em tomar parte na consensualização, colocando-o em posição distinta da do órgão proponente e do agente apontado como responsável  e também do ente público lesado, cuja manifestação não seria obrigatória. Desse modo, haveria "profunda diferença" entre o teor do citado preceito e a colaboração facultativa que restou ajustada no Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público Federal e outras instituições, em matéria de combate à corrupção no Brasil [2].

Para sustentar sua conclusão, Odilon Cavallari apresentou quatro fundamentos, no sentido de que a manifestação obrigatória em tais casos: 1) consistiria num "dever absolutamente estranho" às atribuições constitucionais dos Tribunais de Contas, contrariando o artigo 71 da Constituição Federal; 2) comprometeria a separação e a harmonia entre os poderes republicanos ao atribuir a esses Tribunais, "órgãos auxiliares" do Poder Legislativo, uma função de auxílio ao Ministério Público e ao Poder Judiciário; 3) ofenderia o artigo 71, IV, ao alargar o rol de legitimados a solicitar auditorias e inspeções; e 4) agrediria o devido processo legal substantivo, ao "conferir a cada membro do Ministério Público e do Poder Judiciário prerrogativa que nem mesmo o parlamentar tem", a saber, a de obrigar o Tribunal de Contas a se manifestar sobre determinado assunto.

Em vista disso, o autor defende uma interpretação conforme à Constituição do aludido parágrafo 3º, para conciliar a nova exigência com a esfera de atribuições do órgão de controle externo, discorrendo sobre algumas possibilidades de resposta à interpelação, todas calcadas na liberalidade de a Corte de Contas se manifestar sobre a matéria, dentro de sua conveniência ou de suas condições operacionais, considerando especialmente a exiguidade do prazo previsto, de noventa dias.

A motivação do colega auditor é louvável; incompreendida, a função de controle externo é frequentemente sujeita a amesquinhamentos [3], cabendo aos Tribunais de Contas, aos seus membros e servidores de carreira, e às suas associações representativas, promover os esclarecimentos necessários para salvaguarda da autonomia institucional e da dignidade da função. Além disso, é compreensível o receio de que, com a nova atribuição, sejam os órgãos de controle externo interpelados excessivamente, para atendimento em prazo inexequível, e numa injustificável posição de subalternidade [4].

Não obstante, arguir a facultatividade da manifestação das Cortes de Contas nesses moldes, com a devida vênia, não é o melhor caminho. Primeiro, pelo fato de a literalidade do §3º do artigo 17-B da LIA não conflitar com a Constituição; e segundo, porque a obrigatoriedade da manifestação não exclui o intento de coordenação que deve animar as relações interinstitucionais. Vejamos.

Os Tribunais de Contas são órgãos pertencentes à República, dotados de independência em face dos demais órgãos e Poderes, e, como tais, não são "auxiliares" de nenhum deles. É pacífico na doutrina e na jurisprudência que o "auxílio" prestado ao Poder Legislativo, consoante o caput do artigo 71 da Carta Magna, não implica subordinação ou secundariedade do órgão técnico para com o órgão político: ambos partilham da função controladora descrita no caput do artigo 70, como coprotagonistas, prezando o primeiro de plena autonomia no desempenho de sua missão, pelo exercício de competências exclusivas, constantes do artigo 71 e de outros dispositivos. A mesma autonomia, aliás, que ostenta o Ministério Público no desempenho de suas atribuições [5].

A par das competências elencadas na CF/88, porém, há outras competências conferidas por lei aos Tribunais de Contas, como aquelas previstas em suas leis orgânicas, a exemplo do acompanhamento da arrecadação da receita por meio de demonstrativos próprios (exempli gratia artigo 1º, IV, da Lei Orgânica do TCU) e da resposta a consulta sobre a aplicação de dispositivos legais e regulamentares (exempli gratia o inciso XVII).

Leis nacionais também conferem competências aos órgãos de controle externo, tais como: a) a emissão de alertas  sobre o cumprimento das metas fiscais e dos limites da dívida pública e de despesas com pessoal (artigo 59, §1º, da Lei Complementar nº 101/00); b) o processamento, julgamento e aplicação de sanções por infrações administrativas contra as leis de finanças públicas (artigo 5º, §2º, da Lei nº 10.028/00); e c) o exame de editais de licitação (artigo 113, §2º, da Lei nº 8.666/93, ainda em vigor).

Nada há de estranho, pois, no surgimento de nova competência legal se esta se afina com o perfil institucional dos Tribunais de Contas delineado na Constituição, recordando-se que suas atribuições se diferenciam em vista das diversas finalidades que devem alcançar, conformando os procedimentos usados para tanto e as manifestações que deles derivam. Competências constitucionais e legais dessas Cortes se classificam, destarte, com base em sua natureza jurídica, sendo umas de ordem fiscalizadora ou judicante, e outras de qualidade corretiva, sancionadora, normativa ou opinativa [6].

A nova atribuição não exorbita ou contraria o regime orgânico-funcional dos Tribunais de Contas, porquanto não contrasta com as existentes e, sobretudo, não desnatura sua atuação fiscalizadora ou judicante, uma vez que se reveste de natureza opinativa (ou consultiva, a depender da nomenclatura adotada).

Portanto, não se cuida de nova espécie de deflagração de inspeção ou auditoria, solicitada por autoridade ou instituição diversa dos legitimados do inciso IV do artigo 71 da CF/88. Muito menos impede o julgamento de contas (artigo 71, II). Em verdade, referida manifestação se assemelha a outras de mesmo jaez, tais como o parecer prévio emitido sobre as contas anualmente prestadas (artigo 71, I) e a sobredita resposta a consulta formulada por autoridade competente.

Prova maior dessa coerência é que a nova competência encontra um paradigma no próprio texto constitucional: o pronunciamento conclusivo sobre despesas não autorizadas, solicitado pela comissão parlamentar dedicada a assuntos orçamentários, nos termos do artigo 72, §1º. Confira-se:

"Artigo 72. A Comissão mista permanente a que se refere o artigo 166, §1º, diante de indícios de despesas não autorizadas, ainda que sob a forma de investimentos não programados ou de subsídios não aprovados, poderá solicitar à autoridade governamental responsável que, no prazo de cinco dias, preste os esclarecimentos necessários.
§1º Não prestados os esclarecimentos, ou considerados estes insuficientes, a Comissão solicitará ao Tribunal pronunciamento conclusivo sobre a matéria, no prazo de trinta dias.
§2º Entendendo o Tribunal irregular a despesa, a Comissão, se julgar que o gasto possa causar dano irreparável ou grave lesão à economia pública, proporá ao Congresso Nacional sua sustação".

Em tal situação, o órgão do Poder Legislativo provoca o Tribunal de Contas para que este se pronuncie sobre a matéria, com redação no imperativo: "solicitará". Contudo, a participação da Corte se limita à emissão de uma opinião técnica; a atuação fiscalizatória anterior, que identifica indícios de despesas não autorizadas e busca esclarecimentos da autoridade responsável, e a adoção de providências, subsequente ao opinativo, restam a cargo do órgão solicitante.

Em face dessas características, é possível divisar na nova competência o mesmo padrão: a) o Tribunal será instado a opinar sobre um aspecto determinado, a saber, o valor do dano a ser ressarcido por meio de acordo de não persecução civil em casos de improbidade administrativa; b) e será instado a fazê-lo por outro órgão estatal, no caso, o Ministério Público; c) a provocação é obrigatória ("deverá"), assim como a própria manifestação ("se manifestará"); d) o Tribunal se manifestará sem promover fiscalizações com os instrumentos habituais (inspeções e auditorias), e sem tampouco julgar contas; e) o pronunciamento do Tribunal não vinculará o órgão ministerial, seja quanto à celebração do acordo de não persecução, seja quanto ao valor do dano quantificado.

Neste ponto, vê-se que o pronunciamento da Corte de Contas somente se tornaria vinculante se expressamente dispusesse o comando legal [7], que não o faz. Assim sendo, o valor a ser ressarcido permanece objeto de pactuação entre as partes, da qual o órgão controlador, de fato, não participa. E esse valor deverá, ainda, ser submetido à oitiva do ente público lesado e à posterior homologação judicial, nos termos dos incisos I e III do §1º do artigo 17-B da LIA.

Diante disso, a atuação de ambos os órgãos, ambientada num microssistema de proteção da probidade e da gestão pública [8], não implica subordinação ou interferência de qualquer deles sobre o outro. Bem compreendidos os papeis de cada qual, sua participação deve ser articulada sob o prisma da cooperação, de modo a contrabalançar sua independência com a proteção da confiança legítima do cidadão na coerência dos atos do poder público.

Nesse sentido, a fim de preservar o equilíbrio entre autonomia e coerência, o reparo interpretativo que se há de fazer ao §3º do artigo 17-B da LIA não reside no caráter obrigatório da manifestação do Tribunal de Contas, mas na calibração das condições necessárias ao seu cumprimento, sem as quais resta inviabilizada a análise da solicitação.

Essa calibração deve ser feita pelos próprios Tribunais, uma vez que o preceito em comento, ao lhes designar uma nova atribuição, igualmente lhes confere os meios para bem desempenhá-la [9], incluindo o poder de regulamentar seu exercício — expressão de sua competência normativa, aliás (artigo 73, c/c. artigo 96, I, "a", da CF/88)  considerando três principais fatores: 1) o fornecimento, pelo órgão solicitante, dos elementos indispensáveis para a quantificação do dano; 2) o prazo para realizá-la; 3) o valor histórico do dano, a funcionar como alçada.

Ainda que restrita ao quantum debeatur [10], a manifestação da Corte não se reduz a simples cálculo, consistindo em verdadeiro juízo de mérito, no qual, para aquilatar a lesão ao erário, precisa de suficientes informações sobre as condutas praticadas e sobre seus agentes, a serem fornecidas pelo órgão solicitante.

De igual sorte, a insuficiência de informações e documentos ou a complexidade da avaliação a ser feita podem justificar modulações na fluência do prazo, condicionando o termo inicial ou a ocorrência de suspensão ou interrupção. O prazo legal há de ser visto como um prazo impróprio, apenas uma referência, a ser observada na medida do possível, mas sem efeito de preclusão.

Por fim, a interpelação do Tribunal deve mesmo se adequar às suas possibilidades operacionais, tendo em vista as demais atribuições e a relação de custo-benefício da prática do ato. Sem ser uma conveniência, as solicitações para quantificação de dano devem passar pelo mesmo filtro a que se sujeitam outras provocações, inclusive as tomadas de contas especiais (exempli gratia o artigo 8º, §2º, da LOTCU), relativo ao volume de recursos envolvidos.

Atentos a esses fatores, o Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas, a Associação de Membros dos Tribunais de Contas do Brasil, o Instituto Rui Barbosa e a Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios editaram a Resolução Conjunta CNPTC/ATRICON/IRB/ABRACOM nº 01, de 13 de maio de 2022 [11], com diretrizes para orientar as Cortes de Contas do país na regulamentação dos procedimentos a serem adotados para a quantificação de dano em acordos de não persecução civil por improbidade administrativa.

O acolhimento dessas diretrizes decerto permitirá aos órgãos de controle externo se desincumbirem de seu novo dever legal, em cooperação com o Ministério Público, e sem prejuízo de sua autonomia.


[1] Cf. "Tribunais de contas e improbidade: cálculo do dano é facultativo". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-06/odilon-cavallari-tribunais-contas-improbidade?msclkid=cbee0cf8cf9711eca0fbe18cc3053b0f. Acesso em 06mai2022.

[2] Celebrado em 06/08/2020, sob a coordenação do Supremo Tribunal Federal, versando especialmente sobre a celebração dos acordos de leniência previstos na Lei nº 12.846/13. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Acordo6agosto.pdf. Acesso em 10mai2022.

[3] São exemplos marcantes o RE 848.826, o RE 636.886 e o RE 1.003.433.

[4] Curiosamente, o dispositivo também suscitou preocupação quanto a um possível efeito vinculante da manifestação dos Tribunais de Contas. Murilo e Matheus Volpi argumentam que, ao tornar a apuração do dano um "ato complexo", ele criou competência não prevista no rol "taxativo" de atribuições dos Tribunais de Contas e "solapou a autonomia e independência funcional do Ministério Público". Cf. "A Lei nº 14.230 e a definição do valor do dano ao erário nos inquéritos civis". Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2022-mar-10/opiniao-valor-dano-erario-inqueritos-civis?msclkid=4bf9d213cf9511ecbf5808e6ac9e896e. Acesso em 06mai2022.

[5] Carlos Ayres Britto enfatiza que: "[…] quando a Constituição diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo 'com o auxílio do Tribunal de Contas da União' (artigo 71), tenho como certo que está a falar de 'auxílio' do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Quero dizer: não se pode exercer a jurisdição senão com a participação do Ministério Público. Senão com a obrigatória participação ou o compulsório auxílio do Ministério Público. Uma só função (a jurisdicional), com dois diferenciados órgãos a servi-la. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro". Cf. "O regime constitucional dos Tribunais de Contas", pp. 06-07. Disponível em: https://www.editoraforum.com.br/noticias/o-regime-constitucional-dos-tribunais-de-contas-ayres-britto/. Acesso em 07mai2022. O STF já aduziu: "[…] Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. […]". Cf. a ADI 4190 MC-REF. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur179251/false. Acesso em 09mai2022.

[6] Na lição de Ayres Britto, distinguem-se os conceitos de "função", como sendo a atividade-fim do órgão, e de "competência" como o poder instrumental para concretizá-la. Cf. BRITTO, C. A., op. cit, pp. 06-07. Todavia, as classificações variam na escolha do termo e no número de poderes instrumentais existentes. Cf. LIMA, L. H. Controle externo: teoria e jurisprudências para os tribunais de contas. 7.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018, pp. 83-88.

[7] Relativa preponderância tem o parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente por Prefeito, que só deixa de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal (artigo 31, §2º, da CF/88).

[8] Sistema que vem se configurando com relevantes mudanças na legislação, como a Lei nº 14.230/21 e a Lei nº 12.846/13, intitulada "Lei Anticorrupção", que positivou o acordo de leniência, similar ao acordo de não persecução civil.

[9] Entre os exemplos de aplicação da teoria dos poderes implícitos, os precedentes da Corte Suprema que tratam dos Tribunais de Contas relacionam-se ao poder geral de cautela. Cf., verbi gratia: MS 24.510/DF, MS 33.092/DF e MS 35.038 AgR/DF.

[10] Luciano Ferraz, em artigo publicado também na Revista Consultor Jurídico, assevera que o papel do Tribunal de Contas nos casos de acordo de não persecução civil por improbidade administrativa é o de "árbitro do quantum debeatur" Cf. FERRAZ, L. "Tribunal de Contas como árbitro do ressarcimento na nova LIA". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-abr-07/interesse-publicotribunal-contas-arbitro-ressarcimento-lei-improbidade-administrativa. Acesso em 08mai2022.

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  • é auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Rondônia, assessor de conselheiro do TCERO, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "Da prescrição no processo de controle externo", publicado em 2021 pela editora Dialética.

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