Opinião

Da tutela do patrimônio histórico-cultural: cidadania patrimonial em debate

Autor

  • Lucas Gabriel Pereira

    é advogado criminal e administrativo especialista em Direito Municipal (ética e efetivação de direitos fundamentais) pela FDRP/USP de Ribeirão Preto presidente do Conppac (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão) ex-representante da 12ª Subseção da OAB-SP na Câmara Municipal e ex-presidente da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência da 12ª Subseção da OAB do estado de São Paulo (2019-2021).

24 de maio de 2022, 19h22

O direito à memória e à história via preservação do patrimônio cultural brasileiro é um constante inquilino da gestão orçamentária e política no Brasil. Ao surgir um pequeno sinal de crise no horizonte, o corte de verbas é quase inevitável. Ante esse fato, tomo emprestado uma metáfora da douta procuradora de Contas do Ministério Público de São Paulo, doutora Élida Graziane, pra ilustrar esse enredo: "tudo é questão de prioridade alocativa"

O presente ensaio visa a apresentar um esboço acerca da tutela do patrimônio histórico-cultural brasileiro, da imprescindibilidade da preservação da memória e da história de nossos pais construtores, como elemento formador de uma consciência política crítico-cidadã, dentre outros. Dispensa-se, ao abordar as raízes históricas do tratamento jurídico-brasileiro, elegendo como escopo final, suscitar o debate em torno da constituição de uma cidadania patrimonial.

A tutela do patrimônio cultural encontra-se inserida na seção II, do capítulo III, dentro do título VIII, da "ordem social": artigos 215 e 216, da CRFB/88. Neste organograma, o constituinte esmiuçou o tratamento do patrimônio histórico-cultural no catálogo dos direitos sociais, consoante disposto inicialmente nos artigos 6º e 7º, da constituição da república federativa do Brasil de 1988.

O que diz a CRFB/88 a respeito do patrimônio cultural?

"Artigo 215.  O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
(…)
§3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 48, de 2005)
I – defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; II – produção, promoção e difusão de bens culturais; (…) IV – democratização do acesso aos bens de cultura” (todos incluídos pela EC nº 48/2005).
Artigo 216.  Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico".

Perceba, caro (a) leitor (a), que a tutela patrimonial está disposta subsequente ao da cultura, propriamente dito. O substantivo "patrimônio" é prontamente acompanhado-complementado do adjetivo "cultural", formando o verbete que origina o núcleo central de sustentação do edifício objetivado pelo constituinte: a tutela do patrimônio cultural como instrumento de conscientização cidadã (cidadania patrimonial), de preservação da memória, da história, dentre outros.

Patrimônio é palavra que deriva do latim pater, aquele que cuida (va) das coisas da família, segundo o direito romano clássico.

Nessa toada, a tutela patrimonial é uma tutela contra os vassalos parricidas. Parricídio é como crime daquele que vier a promover a derribada dos bens alcançados pelo tombamento, segundo as regras de proteção do decreto-lei, nº 25, de 30 de novembro de 1937, promulgado pelo presidente Getúlio Vargas.

Segundo o decreto:

"Artigo 1º  Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico".

Considerando a tutela patrimonial uma das formas de tutelar a cultura, insta perquirir a respeito do patrimônio cultural brasileiro, nesses tempos sombrios que jazem sobre todos. Dado o déficit de cidadania  ativa e passiva  que acomete nosso povo, sem a criação de um programa de educação para os direitos humanos, para a libert-ação integral, que vise tutelar intransigentemente a soberania nacional  tecnológica, petrolífera, econômica, histórica, etc , "não haverá país nenhum", segundo a distopia empregada pelo imortal brasileiro, Ignácio de Loyola Brandão, em obra profética (escrita nos 80) que percorreu o tempo pra entrar na eternidade ao trazer ao tablado os recônditos do modus operandi de uma política descompromissada com o "bem de todos" (CRFB/88, inciso IV, artigo 3º) culminando na eleição do governo senhor Jair Messias.

Não haverá país nenhum, tampouco patrimônio histórico a resistir, ante as constantes ameaças do presidente irrepúblico em voga. Não haverá país nenhum, tampouco meio-ambiente saudável, se prosperar as constantes vassalagens na contramão dos objetivos constitucionais, artigo 3º, da CRFB/88.

Para não sermos extenso, destacamos os seguintes episódios trágicos mais recentes: incêndio no Museu Nacional em setembro de 2018. Incêndio no Museu da Língua Portuguesa em dezembro de 2015. Em julho de 2021, a vítima da vez foi a Cinemateca Brasileira. Mais informações aqui.

E, detalhe, todos incêndios ocorridos na vigência do artigo 10, da Lei de Improbidade, nº 8.429/92, que tipificava como lesão ao patrimônio público (aqui, histórico cultural) a omissão culposa. Com a recente alteração promovida pela Lei nº 14.230/2021, restou somente o dolo, diga-se de passagem, o dolo específico.

Numa analogia com Jorge Luis Borges in "Ofício do Verso", o patrimônio histórico tem seu dialeto [1] próprio, possui uma linguagem materializada e edificada; constitui o espírito de um tempo (zeitgeist) irradiando no tempo por vir.

Nessa toada, destacamos o escritor Ítalo Calvino, ao dizer que o "clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de oposição, de antítese" (Calvino, 1993, p.13), aqui demonstrada no sentido de apresentar a tensão dialética  entre vida e morte  em curso, no afã de destacar a premonição do imortal Ignácio de Loyola Brandão.

É preciso dizer que a tutela patrimonial far-se-á tanto pela via da ação popular (LXXIII, artigo 5º, CF/88) regulada pela Lei nº 4.717/65, como pela ação dos conselhos de preservação do patrimônio cultural, sem prejuízo da ação do ministério público e das procuradorias municipais.

Para o bom manejo dessa tutela, diria numa linguagem benjaminiana, que ela impele o operador do direito a cavar a história a contrapelo. Segundo Benjamin apud Michael Löwy, "a história deve ser escovada a contrapelo". Passar a história da cultura patrimonial a contrapelo é um exercício de escavação memorial, documental; é uma atividade que nos move em direção às raízes históricas, da economia, da geografia desenvolvimentista, de como a política urbana da época foi planejada para os anos vindouros, das lutas de classes e todas essas lutas que dialeticamente ajudaram e ajudam a forjar a consciência patrimonial e cidadã dos citadinos.

É dessa linguagem materializada e edificada da arquitetura que buscamos arrimos no arquiteto Paulo Mendes da Rocha (prêmio Pritzker em Istambul 2006, o prêmio Nobel da arquitetura), como instrumento de dialogação interseccional no afã de forjar uma cidadania patrimonial; verbis:

"A arquitetura não se dirige a uma estética desvinculada de uma realidade social. Ela, ao contrário, só pode existir enquanto vinculada a essa realidade, só pode existir enquanto vinculada a essa realidade, e junto com vencer uma aventura terrível, que é a dor do viver. A obra de arte, de arquitetura, executada a cada instante, propõe, entretanto, o projeto maior, de ordem mais ampla. As técnicas que emprega não podem trair essas perspectivas. São essas perspectivas que nos interessam como possíveis de se reproduzirem e de se modernizarem" (Rocha, 2012, p. 24).

Posto as observações lançadas, diríamos que a tutela patrimonial está a serviço da preservação memorial e histórico-cultural do povo a ser manejada por cada município dentro de uma política de gestão sustentável das cidades (II, artigo 2º, do Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001), demandando do operador do direito e dos atores sociais compromissados com o escopo em testilha, forjar uma cidadania patrimonial ativa.

Como pensar numa cidade sustentável se esta não for compromissada com a zeladoria do patrimônio histórico?

Nesse sentido, recordamos o saudoso jurista Paulo Bonavides: "a cidadania há de ser compreendida, invariavelmente (…) como sujeito ativo e soberano da vontade governativa em todos graus" (Bonavides, 2009, p. 142).

Insta dizer que reconhecemos que o tombamento (§1º, artigo 216) por si só não garante a solução dos problemas no âmbito patrimonial, porém, sem ele como instrumento jurídico-político, tornar-se-á impossível forjar um "sentimento constitucional" (ADI, nº 1.444, min. rel. Celso de Mello, julg. em 3.11.2004; p. 29.04.2005) voltado à tutela patrimonial, à cidadania patrimonial.

Já alertava Norberto Bobbio que "os valores fundamentais, onde quer que estejam, não devem ser deixados à mercê da violência" (Bobbio, 2015, p. 86), seja da violência dos parricidas, seja dos epistêmicos, e até dos economistas, que se escondem sob a vulgata da impossibilidade-orçamentário enquanto geram o orçamento público às margens da transparência, da probidade, da ética.

O tombamento é meio pelo qual a política presta tributo ao direito em respeito ao ordenamento jurídico no planejamento urbanístico e paisagístico das cidades.

Referência bibliográficas
Aqui, acessado em 16 de maio de 2022, às 9h51.
Calvino, Ítalo. Por que ler os clássicos. 2ª ed., 4ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Borges, Jorge Luis Borges. Esse Ofício do Verso. 2ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Benjamin, Walter. A concepção dialética da cultura nas teses de Walter Benjamin, 1940. Organização de Michael Lowy. Lutas Sociais, São Paulo, nº 25/26, p.20-28, 2º sem. de 2010 e 1º sem. de 2011.
Rocha, Paulo Mendes da. Encontros. Organização Guilherme Wisnik. 1ª ed., Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.
Bonavides, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A derrubada da constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
Bobbio, Norberto. Política e cultura. 1ª ed., São Paulo: Editora Unesp, 2015.


[1] Jorge Luis Borges: "(…) a poesia é mais próxima do bem comum, ao homem das ruas. Pois o material da poesia são as palavras, e essas palavras são, diz ele, o próprio dialeto da vida", p. 27.

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