Direito Civil Atual

Perdas e danos por exercício abusivo do direito de resilir

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23 de maio de 2022, 10h26

O direito de resilir unilateralmente o contrato, previsto pelo artigo 473 do Código Civil, é direito potestativo conferido ao contratante nos casos em que a lei permite a extinção do contrato por vontade de uma das partes somente e é instrumentalizado pela denúncia. Esse direito, contudo, não é exercido de maneira irrestrita.

ConJur
Nos contratos em que, por sua natureza, uma das partes tenha investido consideravelmente a fim de cumprir com o que foi pactuado, o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil restringe a eficácia da denúncia ao momento em que haja transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

O instituto da resilição unilateral é discutido em recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.874.358/SP, julgado pela 3ª Turma com relatoria da Ministra Nancy Andrighi. Esta coluna descreverá o teor do acórdão, realizando-se sucinto comentário ao julgado em seguida.

Descrição do REsp 1.874.358/SP
A 3ª Turma do STJ deu provimento ao REsp 1874358/SP[1], condenando uma tomadora de serviços de telemarketing ao pagamento de indenização por ter denunciado o contrato com a prestadora dos serviços, com fundamento no artigo 473, parágrafo único do Código Civil.

O Acórdão recorrido foi proferido pela 10ª Câmara do TJ-SP, que mesmo reconhecendo os investimentos feitos pela prestadora de serviços para a execução do contrato e que a denúncia do contrato pela contraparte lhe ocasionou prejuízos, manteve a sentença de improcedência sob o entendimento de que a norma do parágrafo único do artigo 473 do Código Civil "somente poderia ser aplicada em caso de silêncio das partes neste sentido".

Ao reformar a decisão, a 3ª Turma teceu as seguintes conclusões, as quais serão contempladas brevemente no presente texto:  (I) caso o tempo transcorrido na execução do contrato não tenha sido suficiente para que uma das partes recupere o investimento feito na intenção de cumprir a obrigação avençada, a denúncia configura abuso do direito de resilir, por força do artigo 473, parágrafo único, do Código Civil; (II) o abuso do direito de resilir pode ocorrer mesmo havendo cláusula contratual prevendo expressamente, a ambas as partes, a hipótese de resilição unilateral e as regras para sua invocação; e (III) o valor da indenização pelos danos causados por ato ilícito decorrente da denúncia prematura do contrato deve restringir-se a satisfazer aqueles custos estritamente necessários ao cumprimento do contrato.

Comentário ao REsp 1.874.358/SP
Quanto ao primeiro ponto, é certo que a possibilidade de indenizar por perdas e danos já era salientada pela 4ª Turma do STJ ao julgar caso similar ao qual ainda não era aplicável o Código Civil de 2002[2]. Nessa perspectiva, apesar de o parágrafo único do artigo 473 tratar somente da eficácia da denúncia, calando sobre a possibilidade de indenização por perdas e danos, tem-se que a configuração do ato ilícito, por meio da noção de que a denúncia em determinadas circunstâncias pode caracterizar abuso de direito, instrumentaliza a reparação de danos.

A noção de que o exercício do direito de resilição pelos contratantes pode ser abusivo em certos casos é difundida pela doutrina. Sobre o tema, Orlando Gomes ensina que "A resilição unilateral pode, todavia, acarretar prejuízo à parte destinatária da denúncia, em especial quando exercida abruptamente, o que pode configurar abuso de direito. É o que acontece, com frequência, nos contratos de distribuição".[3] No mesmo sentido, Silvio Venosa caracteriza como abusiva a resilição que não respeita o prazo necessário para que os investimentos sejam recuperados.[4]

Sob essa ótica, como indica Caio Mário da Silva Pereira, ora se considera que a responsabilidade pelos danos causados ao abusar-se do direito de extinguir unilateralmente o contrato é aquiliana, ora se considera a responsabilidade por abuso de direito como instituto autônomo[5]. De outro modo, é possível também defender que a obrigação de indenizar por perdas e danos é, na verdade, fruto de responsabilidade contratual, decorrente do descumprimento da obrigação pactuada por aquele que resiliu o contrato. Explica-se. 

O parágrafo único do artigo 473 estabelece verdadeira condição à eficácia da denúncia pelo prazo compatível com o montante investido e sua natureza. Nas palavras de Paula Forgioni, "na prática, isso significa que o contrato continuará irradiando sua eficácia plena até o escoamento de tal prazo. (…) O eventual descumprimento da obrigação comporta os remédios previstos no ordenamento jurídico para a satisfação dos interesses do credor (por exemplo, execução específica, com todos os meios de apoio que lhe são próprios, ou mesmo perdas e danos)".[6]

Seguindo esse raciocínio, enquanto a denúncia é ineficaz, a parte que age como se o contrato houvesse sido extinto acaba por incorrer no inadimplemento das prestações subsequentes, que continuam exigíveis pela outra parte pelo tempo necessário à recuperação dos investimentos. Com o inadimplemento, por sua vez, a outra parte poderá requerer indenização por perdas e danos.

Sem adentrar à valoração das duas formas de conceber a responsabilização do contratante que denunciou prematuramente o contrato, é importante ressaltar que essa diferenciação tem repercussões relevantes quanto à disciplina da matéria. Um exemplo disso é a diferença dos prazos prescricionais nos casos de responsabilidade contratual e delitual.

O próximo ponto de reflexão é tocante à indiferença, para fins de aplicação do artigo 473, parágrafo único, do Código Civil, da existência de cláusula que preveja a possibilidade de resilição a ambas as partes. Nesta questão, o posicionamento da 3ª Turma foi ao encontro do anteriormente adotado pela 4ª Turma do STJ ao dar provimento ao REsp 1.555.202/SP[7].

No julgamento do REsp 1.555.202/SP, entendeu-se que a existência de cláusula prevendo a possibilidade de resilição imotivada a qualquer dos contratantes não afasta a responsabilização por ato ilícito, pois "A existência de cláusula contratual que prevê a possibilidade de rescisão desmotivada por qualquer dos contratantes não é capaz, por si só́, de afastar e justificar o ilícito de se rescindir unilateralmente e imotivadamente um contrato que esteja sendo cumprindo a contento, com resultados acima dos esperados, alcançados pela contratada, principalmente quando a parte que não deseja a resilição realizou consideráveis investimentos para executar suas obrigações contratuais".

Sobre essa questão, cabe ponderar se a previsão pelo contrato de incidência de multa destinada especialmente a coibir a resilição extemporânea por uma das partes, como permitido pelo artigo 409 do Código Civil, seria também indiferente para os fins de reparação de danos. Neste caso, a situação muda de figura. Isso pois, havendo cláusula penal estipulada pelas partes, a parte lesada pela resilição só poderá pleitear indenização suplementar por danos cujo valor exceda ao da multa pactuada caso isso lhe seja expressamente facultado e possa provar o prejuízo excedente, como prescreve o artigo 416, parágrafo único, do Código Civil.

Por fim, tanto a 3ª Turma, no julgamento do REsp 1.874.358/SP, quanto a 4 ª Turma, ao decidir a respeito do REsp 1.555.202/SP, tomaram como referência a obra de Cesar Santolim[8] ao analisarem a extensão do dano material a ser indenizado. Disso resultou que chegaram a conclusões idênticas, no sentido de que a indenização deve corresponder ao interesse positivo e deve restringir-se aos custos estritamente necessários à execução do contrato.

A equiparação da indenização ao interesse positivo parece ser acertada, pois significa que a parte lesada deverá ser conduzida à situação de cumprimento do contrato[9], o que se deduz da própria interpretação do artigo 473, parágrafo único, já que a previsão de ineficácia da denúncia visa prolongar o cumprimento do contrato pelas partes até ocorrer a recuperação dos investimentos realizados.

A restrição do valor a ser indenizado ao estritamente necessário para a execução do contrato conforme acordado afigura ser, por sua vez, medida necessária para evitar situações excessivas e que fogem ao escopo do artigo 473, parágrafo único, do Código Civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] STJ, Recurso Especial n. 1.874.358/SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 17.08.2021, DJe 19.08.2021

[2] STJ, Recurso Especial n. 534.105/MT, rel. min. Cesar Asfor Rocha, 4ª T., j. 16.09.2003, DJ 06.09.2004

[3] GOMES, Orlando. Contratos. 26 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 155

[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. v. 2. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 509.

[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 362 a 364

[6] FORGIONI, Paula Andrea. Contratos de Distribuição. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 471

[7] STJ, Recurso Especial n. 1.555.202/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª T., j. 13.12.2016, DJe 16.03.2017

[8] SANTOLIM, Cesar. A proteção dos investimentos específicos na resilição unilateral do contrato e o risco moral: uma análise do artigo 473, parágrafo único, do Código Civil. In: Revista Síntese: direito empresarial, n. 35, p. 9-13, nov./dez. 2013

[9] STEINER, Renata. Reparação de Danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018. p. 140

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